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REFUNDAR O PT

caparaul_site2A desistência não é uma opção. A injustiça não desaparecerá porque a esperança foi traída. A tarefa de reconstruir o partido não pode ser delegada a uma nova direção. Tem que ser feita pelo conjunto dos petistas, através de um congresso de refundação do PT, uma constituinte petista. E quem traiu o PT não pode permanecer no PT.

Refundar o PT

RAUL PONT

Atravessados pela dor, vergonha e decepção milhares de militantes eleitores petistas acompanham diariamente a avalanche de revelações no processo de investigações em curso no País. Não se reconhecem neles. Não reconhecem o partido que construíram. Não reconhecem sua história neste espetáculo de horrores que se transformou o noticiário político brasileiro. Como fomos capazes de chegar a isto? Como foi possível que um grupo transformasse o partido no seu exato oposto? Como foi possível que nós, defensores intransigentes do controle social sobre o estado e da ética republicana fôssemos revelados, agora como fisiológicos operadores de mensalão?

A desistência não é uma opção e nem são opções as saídas de caráter meramente eleitoral ou defensivo. Não desaparecerá a injustiça ou a desigualdade porque a esperança foi traída. A esquerda é desesperadamente necessária e a militância para transformação uma imposição ética desta compreensão.

Construímos ao longo de 25 anos um grande e valoroso coletivo militante chamado Partido dos Trabalhadores. Nossa resposta à crise atual também será construída coletivamente com milhares de companheiras e companheiros.

Desvendar a gênese da crise, compreender seus mecanismos para poder reinventar nossa utopia: a isto chamamos refundação socialista do PT.

A anatomia da crise

A crise hoje vivida pelo PT é resultado da ruptura com seus princípios e sua história.

Essa ruptura vinha expressando-se até a crise recente em três pontos cruciais:

– Na diluição dos valores socialistas na cultura petista;

– Em práticas políticas e alianças que perderam o sentido de enfrentamento com o neoliberalismo e de participação popular que deram conteúdo aos diversos programas de governo definidos pelo partido, inclusive no seu último encontro nacional, em Olinda, 2001;

– Na dominação do partido por um “campo majoritário” que asfixiou a democracia interna e implementou uma organização partidária sem controle pela base.

Os conflitos no interior do partido deram-se recorrentemente em torno a esses três pontos e intensificaram-se com a conquista do governo federal.

A explosão de denúncias de corrupção veio acrescentar um novo elemento a esse quadro, a existência de setores no interior do campo majoritário que agiam em função de projetos próprios, nunca declarados ou debatidos no partido. A afirmação do PT exige a separação dos que agiram contra ele e o expuseram à sua maior crise. Não cabem mais no partido.

Ao mesmo tempo, não há superação da crise sem ir ao fundo de suas raízes ideológicas, programáticas e organizativas. Quando voltamos aos três pontos cruciais que deram origem à situação crítica de hoje e pensamos sua superação é na própria história e nas definições do PT que encontramos as melhores respostas, que, certamente, devem buscar novas sínteses em compasso com as lutas libertárias contemporâneas.

A este duplo momento – de separação e de superação – chamamos refundação do PT. Seu tempo é agora; da sua resolução depende não só o futuro imediato do governo Lula, mas o futuro daquela que foi a mais bela experiência de esquerda no país.

A crise do PT é de ruptura e não de origem

Rapidamente setores de imprensa e mesmo setores do nosso partido passaram apontar que a crise do Partido tem débitos importantes com sua cultura de esquerda. Seria uma filha bastarda do estatismo, da ética “bolchevique” e aparelhista típicos da esquerda. A saída da crise exigiria uma conversão final do PT aos princípios do mercado e da democracia liberal. Nós afirmamos exatamente o oposto. Esta crise não foi gerada pelas bandeiras petistas do controle da sociedade sobre o Estado, da democracia direta, do Orçamento Participativo, das iniciativas republicanas de justiça social, de transparência e, muito menos pela nossa antiga e intransigente defesa da ética. Todos os temas que são a ossatura do PT, dialogando com sua razão de existir. Nenhum deles tem algo a ver com o quadro que aí está. Pelo simples motivo de que a crise não é de origem, mas de ruptura com a tradição do partido. Quem está no olho do furacão não é o projeto historicamente acalentado pelo PT e os petistas, mas justamente o avesso: a conseqüência mais constrangedora de um rompimento com tudo o que o PT sempre representou.

Na genética da crise está a fratura entre discurso e prática, o distanciamento das bases e dos movimentos sociais, a hegemonia da lógica eleitoral, a despolitização da política, as alianças não-programáticas e, especialmente, a auto-suficiência das decisões de cúpula.

O problema, portanto, não é o partido ou seus fundamentos teóricos. A crise não foi parida pela sua biografia. Não deriva da essência do PT. Antes, provém de ações e omissões que representam justamente a sua negação. Não são os 800 mil filiados e os milhões de simpatizantes que devem fazer sua autocrítica. Enquanto o partido sangra, são eles que, moídos pela decepção, enfrentam nas ruas o escárnio da direita que, agora, numa história repetida como farsa, se arvora guardiã da moral e dos bons costumes.

O PT seqüestrado

Quem deve explicações é um grupo que praticou o seqüestro do partido e assassinou suas melhores esperanças. Agindo em nome do PT, mas sem compartilhar estas decisões com o conjunto do partido ou sequer comunicar-lhe suas deliberações, afogou uma história de 25 anos num lodaçal de suspeições. Um comportamento autoritário, que cortou o contato com a realidade exterior para fabricar uma segunda e patética realidade. Onde a vida real, das pessoas reais, é substituída por uma fraude, povoada de fantasmas, saques milionários e papéis queimados.

Afirmamos que a crise por que passa o PT é a crise da direção constituída em 1995 e desenvolvida por 10 anos. E que essa crise tem origem no rompimento sucessivo por essa direção de princípios caros à história do PT: democracia interna, militância social, perspectiva socialista.

O “campo majoritário” não pode se auto-reformar

A resposta do “campo majoritário” à crise do partido foi uma redobrada aposta na arrogância. A eleição da nova direção para suceder a antiga, retirada à força de denúncias dos seus cargos, não foi fruto de uma síntese da pluralidade partidária representada na instância do Diretório Nacional. Foi mais uma vez uma decisão em separado e apresentada pronta para a instância partidária. Com esta genética, não demorou a mostrar seus limites para enfrentar a crise. O anúncio de uma “refundação” limitou-se a uma patética solicitação de que os envolvidos em escândalos encaminhem cartas de explicação ao diretório nacional, a promessa de “ação rigorosa de punição a todos os envolvidos” acabou em uma constrangedora inação, em que nem sequer os militantes confessos de terem traído a confiança do partido tiveram seus afastamentos aprovados.

Ocorreu uma falência do chamado Campo Majoritário que dirigiu o partido desde 1995. É todo um ciclo histórico da direção que se esgotou, com seu programa, seu modo de dirigir o partido, suas principais lideranças públicas. A expressão deste esgotamento é a quebra da relação básica de confiança do chamado Campo Majoritário com os petistas, com a sociedade democrática brasileira. Toda proposta de renovação da direção partidária que for construída a partir principalmente de uma relação com o chamado Campo Majoritário está fadada a fracassar por se apoiar principalmente em compromissos com o que tem de ser superado.

Quem traiu o PT não pode permanecer no PT

Contrariamente às decisões do “campo majoritário” nós afirmamos claramente que quem traiu a confiança do Partido não pode permanecer no Partido dos Trabalhadores. Não será possível refundar um projeto de esquerda sem que façamos um rigoroso ajuste de contas com nosso passado recente. Não será possível restabelecer uma relação de confiança com a população se não formos capazes de punir nós mesmos aqueles que traíram a nossa confiança. Qualquer relativização desta verdade clara e singela lança dúvidas justificadas sobre a extensão das irregularidades no partido e sobre a sinceridade de nossos propósitos.

Uma nova direção deve emergir da democracia partidária

Toda a dificuldade da situação atual está em que um sistema de direção partidária está falido e outro ainda não foi criado.

Seria um grave erro pretender substituir o campo majoritário por outro, nos mesmos termos. Não se trata de encontrar uma liderança pública capaz de sintetizar a resolução da crise. Não existe tal liderança hoje e seria personalizar e mediocrizar a resposta aos desafios colocados pretender criá-la artificialmente.

A síntese necessária deve nascer da democracia partidária, do valor da nossa militância.

Mais que eleger uma nova direção, o que o PT precisa é uma verdadeira refundação organizativa e programática. Da qual fazemos parte, mas não pretendemos ser de forma alguma sua única síntese.

Constituinte Petista: a refundação socialista do PT

A tarefa de reconstruir o partido, sua estrutura organizativa, seu programa e suas utopias não podem ser delegadas a uma nova direção por mais qualificada que seja. É uma tarefa a ser feita pelo conjunto dos petistas e lutadores sociais do Brasil.

Para isto propomos a imediata convocação de um congresso de refundação do PT, uma constituinte petista, com papel e poder para reencontrar o partido com suas origens, seus militantes, seu programa e sua base social.

O processo de refundação socialista do PT envolve três objetivos conjugados:

– A renovação e atualização do socialismo petista;
– Uma nova síntese programática de transformação do Brasil;
– A reconstrução da democracia petista, inclusive de suas organizações de base.

Porque refundação do PT?

Primeiro, pela necessidade de uma nova síntese programática.

O princípio de que a cultura política de um partido não conhece vácuo tem sido amargamente experimentado pelo PT. Se a cultura da emancipação não é permanentemente renovada, os valores mercantis dominantes na sociedade vão ocupando terreno.

Assim, o processo de refundação ou renovação das perspectivas do PT passa sobretudo e em primeiro lugar por renovar as fontes da utopia petista. Vivemos a sólida necessidade da utopia.

O último grande momento de síntese da utopia petista deu-se em 1990 com o documento “socialismo petista”. De lá para cá, o partido e o movimento antiglobalização capitalista viveram experiências ricas que podem alimentar um novo ciclo de renovação das utopias

Segundo, pela necessidade da de um novo sistema de organização partidária.

Como já dissemos a atual crise não expõe apenas a falência política, ética e individual de um conjunto de quadros dirigentes, seus métodos e suas plataformas. È sem dúvida isto, mas é, também o resultado de toda uma transformação organizativa do PT nos últimos anos alijou a militância da vida orgânica quotidiana do partido e lhe retirou qualquer condição de controlar a direção do partido. Convertendo-os de militantes construtores do projeto político em meros eleitores convocados  a cada quatro anos para votar em uma nominata.

Terceiro, pela necessidade de uma reconstrução da relação do petismo com sua base histórica.

Há hoje uma forte crise pública de sua identidade programática (seu compromisso real de realizar as transformações que prometia), de sua integridade ética e mesmo da veracidade de seu discurso. As relações de diálogo e interação com a intelectualidade progressista e de esquerda do país, com as lideranças dos movimentos sociais, estão sob risco de ruptura.

Por que refundar o PT e não criar um outro partido?

Porque estão ainda no campo petista, de sua história, de seus valores, de suas raízes sociais, de suas lideranças os principais fundamentos da esquerda brasileira. A crise do PT é uma crise da experiência mais avançada da história da esquerda brasileira. Entender a crise do PT como terminal seria assumir de partida um horizonte histórico de grave redução da acumulação programática, social e internacional da esquerda brasileira. Por outro lado, seria negar a priori a possibilidade de renovação do petismo antes da experiência ter chegado ao seu limite. Antecipar artificialmente este desfecho implicaria em iniciar um novo período histórico de diferenciação e fragmentação da esquerda brasileira em vários projetos partidários concorrentes. A luta pela renovação do petismo é um processo público de disputa programática que terá no desfecho da crise atual o seu momento inicial.

Mudar o governo Lula

No seu terceiro ano, o potencial transformador do governo Lula está estruturalmente contido por três dimensões: a força crescente da oposição liberal-conservadora, a presença de posições liberais na gestão da macroeconomia, e a sustentação da governabilidade em alianças conservadoras no Congresso Nacional. Foi à falência a proposta dominante no governo de conjugar o conservadorismo liberal na gestão macroeconômica com processos moleculares de transformações setoriais nas políticas sociais e administração de uma base político social que ia da esquerda a posições conservadoras. Enquanto a oposição liberal-conservadora já se encontra com força para disputar a reunificação de sua base político-social, o governo Lula está em contradição evidente com sua base histórico social. Sem conquistar um novo horizonte programático de transformações para o governo Lula, ele será desmoralizado ou derrotado. O fundamento desta renovação programática só pode ser o PT.

No âmbito do sistema político, devemos reforçar a luta por reformas democráticas do sistema eleitoral (financiamento público de campanha), do funcionamento dos partidos (fidelidade partidária), de novos modos de gestão pública (com participação ativa da cidadania, controle externo e transparência) e de iniciativa popular (plebiscito, entre outras).

Estas reformas não devem ser pensadas como originadas pelo próprio sistema político que resistirá a elas: só podem vir de uma ampla campanha pública pela ética na política e na gestão pública.
A defesa do governo Lula dos ataques da oposição liberal-conservadora só terá efetividade política se o PT tiver a coragem histórica de defender – como partido, nas suas bancadas, nas manifestações públicas e no apoio aos movimentos sociais – que o governo se coloque à altura de suas possibilidades históricas, que transite para um novo compromisso programático, ressoldando a sua governabilidade junto a sua base histórica e social e abrindo novas perspectivas para a disputa política no país, incluindo a disputa eleitoral de 2006.

Na linha da “Carta ao povo brasileiro”, o governo Lula deve se movimentar em direção ao cumprimento de suas grandes metas de transformação do país, superando os constrangimentos impostos pela gestão da macro-economia, recompondo a sua legitimidade e base de apoio com os movimentos populares e a sociedade democrática brasileira.

A história do PT vive seu momento mais decisivo em 25 anos. É certo que o partido não sairá desta crise igual ao que era. As nossas decisões nos próximos dias decidirão se termina melancolicamente o período mais rico da história política brasileira que tinha o PT como protagonista ou se este será capaz de se revigorar ajustando contas com seu passado recente.  Refundar o PT, reinventar a utopia. Este é o nosso desafio.

São Paulo, 13 de agosto de 2005.

Raul Pont é deputado estadual PT/RS e candidato a presidência nacional do PT.

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