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Sujeitos da transformação | Luiz Marques

“Segue o teu destino / Rega as tuas plantas / Ama as tuas rosas / O resto é sombra / De árvores alheias” – Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa.

– A constituição dos sujeitos

Herbert Marcuse acreditava que o proletariado perdera o papel revolucionário depois dos anos 50 e 60. Naturalizado nos Estados Unidos no pós-guerra, o filósofo julgava que o operariado havia sido cooptado pelo capitalismo: seu sonho já não era a revolução, senão um carro zero na garagem e uma casa na praia. Marcuse via no lúmpen-proletariado (“a seção degradada e desprezível do proletariado, sem nada a perder”) e nos estudantes universitários (“que se situam no limbo entre a família e a produção”) os sujeitos de substituição da classe tida por redentora no marxismo clássico. Avaliava a condição de sujeito da transformação pela renda e o consumo.

David Harvey, um dos maiores pensadores vivos no universo da esquerda, buscou refletir sobre o processo de industrialização (o ritmo econômico-producente da sociedade) e o processo de urbanização (o padrão físico-estrutural das vivências na cidade). Mostrou que nos últimos duzentos anos os movimentos transformadores ocorreram no âmbito das cities. Fato que alerta para a complexidade e a indubitável importância da “questão urbana”. Palco da luta de classes na modernidade. Para o geógrafo britânico, o envolvimento objetivo e subjetivo dos sujeitos mobilizados na luta para a humanização da cidade é o que define a condição de sujeito da transformação na história. A ação é o determinante para uma conceituação.

A crítica ao planejamento urbanístico de tecnocratas a serviço dos interesses do mercado e às intervenções autoritárias de eugenia para limpar as cidades possuem um óbvio caráter classista. Mobilizar-se em defesa da região onde as habitações estão instaladas é prova de consciência de classe. Batalhar no interesse do coletivo, um ato de rebeldia. Há um entrelaçamento orgânico nos embates que se desenvolvem nos planos industrial e urbano. As cidades são metáforas do exercício do controle contínuo pelo poder do Estado. O “capitalismo de vigilância” é uma antiga utopia das elites, hoje executada com recursos tecnológicos sofisticados pelas Big Tech.

– A questão urbana

Seguem dois exemplos de lutas que tecem uma dialética entre a cidade (o urbano) e a sociedade (o industrial), opondo os interesses coletivos aos interesses do mercado:

1) A batalha travada pela preservação de áreas públicas no perímetro urbano impacta a lógica de expansão imobiliária, que orienta a dinâmica capitalista de apropriação privada dos territórios mais equipados nas urbes. Em Porto Alegre, é ilustrativo o que os governos estadual (PSDB) e municipal (MDB) – mercadologicamente – tencionam fazer com o Cais do Porto no centro histórico da Capital gaúcha. Sem discussão.

2) A criação de ciclovias, por questionar a entrega de avenidas e viadutos à majestade absoluta, os automóveis, contraria o American way of life ao mexer com os elos da cadeia automobilística (autopeças, construção civil, etc). Em São Paulo, o ex-prefeito Fernando Haddad (PT) sofreu ataques virulentos do conservadorismo, reverberados na mídia comercial, por ampliar quilômetros de ciclovias. Verdadeiro terrorismo.

A questão urbana é expressão prático-teórica dos processos de urbanização sob a égide da ganância imobiliária e de industrialização sob a égide da modernização dos espaços que impõe limitações à criatividade (do habitat), em nome da lucratividade e da funcionalidade. As lutas empreendidas por lazer, entretenimento, praças esportivas, atividades artísticas e culturais servem para denunciar e pôr em xeque os paradigmas econômicos estabelecidos pelo mercado. As cidades realizam a síntese das contendas entre os interesses coletivos e os interesses privatistas, a cada momento. Sua configuração é objeto de disputas permanentes pelo território.

Os que pleiteiam melhorias na qualidade de vida humano-ambiental, a preservação da memória patrimonial e a apropriação dos espaços (para habitar) afiguram-se sujeitos modernos nas lides para alterações no modo de produção imperante na sociedade. O “habitat” que o mercado oferece não é sinônimo de “habitar”: não implica uma deliberação da coletividade em prol do bem comum, com uma visão voltada ao humano e não ao cifrão. Nem a vontade do povo, nem a cobiça do capital logram realizar-se sem enfrentamentos renhidos pelos ricos espaços das cidades.

Na América Latina, também os povos originários integram o rol dos sujeitos das transformações na atualidade. Presentemente, mudanças nos países seja de ascendência espanhola seja portuguesa consideram a participação das diversas etnias indígenas, bem como as demandas das etnias afrodescendentes para formatar uma plataforma progressista. Ao que se deveria juntar os movimentos sociais pela igualdade de gênero e pela diversidade (sexual, cultural, linguística, etária) na unidade dos respectivos povos. Com efeito, a alavanca mudancista não é una. Trata-se de uma tarefa programática que desafia as forças do avanço no arco democrata.

– Lide Precária + Proletariado

Para que haja modificações estruturais em um país, é preciso que emerjam em termos político-organizativos na luta de classes os sujeitos que fazem a economia girar e os poderosos escutarem a voz das ruas. De meados do século XIX até fins do séc. XX, o aríete das mutações radicais foi sobretudo o “proletariado fabril” de macacão azul. Ainda que o conceito de proletariado, em Marx, seja ambíguo, porque engloba desde o operário ocupado na linha de produção até o motorista do caminhão que faz circular as mercadorias, sabia-se que os agentes de superação do status quo social tinham vínculo estreito e inarredável com o setor produtivo industrial. A paisagem do capitalismo foi redesenhada com novas cores na década de 80.

Por essa época, coincidindo com o Consenso de Washington (1989), criou-se o termo “precariado”, que combinou as palavras “precário” e “proletariado”, para designar a massa de trabalhadores sem garantias, realizando atividades a um tempo subvalorizadas, classificadas como socialmente invisíveis, e fora do alcance organizacional das ações sindicais. O processo acelerado de mercantilização do trabalho aprofundou as formas de espoliação e abalou os alicerces identitários das classes trabalhadoras tradicionais. Para alguns, é como se o sujeito das transformações houvesse desaparecido num passe de mágica. Não demorou para que o livro do norte-estadunidense Francis Fukuyama, The End of History and the Last Man (1992), se tornasse um grande best-seller traduzido em vários idiomas.

No período, na perspectiva de ganhos materiais, o ideal de sociedade justa e próspera era representado pelos valores da liberdade e da igualdade, compartilhados – ao menos nos palanques – pela esquerda / direita, e concretizados na Europa Central por intermédio do Estado de Bem-Estar Social. A situação política se altera com a hegemonia do neoliberalismo, tornado vetor dominante da dinâmica capitalista. Os ataques às conquistas dos trabalhadores foram intensificados e acompanhados de políticas que, de modo deliberado; a) de um lado, provocaram desemprego massivo e; b) de outro, precarizaram o conjunto dos laços empregatícios. Era indispensável esvaziar os sindicatos para celebrar a morte do sujeito das transformações, vestisse o uniforme da fábrica ou perambulasse de porta em porta à procura de um labor.

Muitos têm se debruçado sobre o fenômeno. O sociólogo brasileiro Ruy Braga analisou o surgimento do precariado em países semiperiféricos (Portugal, África do Sul, Brasil), em três continentes diferentes. Observou as mesmas tendências mercantilistas constituindo-se em “razão do mundo”. Já o economista inglês Guy Standing, ao estudar esse contingente populacional “alienado, anômico, propenso à raiva”, concluiu que a “Boa Sociedade” deve pautar-se por políticas de redistribuição e assegurar uma renda mínima aos que vivem a insegurança do trabalho incerto e mal remunerado. Urge atenção aos medos e aspirações do precariado, que converteu-se em central para uma estratégia progressista. Significa dizer que um novo sujeito irrompeu na luta de classes, exigindo interlocução mais atenta e adequada hoje.

– Interlocutar o precariado

O Maio de 68 assistiu o empoderamento de uma multiplicidade de sujeitos sociais (jovens, mulheres, negros, ecologistas…) ao levantar bandeiras libertárias. Àqueles novos sujeitos somou-se o precariado ou, como sugere a equipe do GregNews, o “emprecariado”, para sublinhar a fragilidade dos terceirizados sob o governo usurpador de Michel Temer. Esses segmentos ganharam relevância numérica superior aos trabalhadores com empregos formais. O neoliberalismo espalhou miséria, pobreza, necessidades sem satisfação, e expandiu a precarização nas lides laborais.

Para o cientista político e coordenador da Rede Meu Rio, Miguel Lago (Piauí, maio 2021), isso coloca um problema a mais para uma candidatura popular nas eleições de 2022. Como dialogar com a fração majoritária dos trabalhadores, as dezenas de milhões que sobrevivem na informalidade recebendo pequenas comissões por serviços prestados? Como unificar os desorganizados? Como politizar sua vida?

Getúlio Vargas, a partir de 1930, construiu a semântica do “povo brasileiro” ao abranger na designação “o caldeirão de diferenças – regionalismos múltiplos, trabalhadores urbanos, burguesia industrial, mulheres, negros, imigrantes europeus, entre outros”. Os discursos iniciavam com a oração: “Trabalhadores do Brasil”. Em 1950, depois de um lapso afastado do palco dos acontecimentos, retornou nos “braços do povo”. Não mais “chefe de partido”, mas “líder de massas”, procrastinando o golpe militar até 1964. Foi virtuoso na construção da nação.

Bolsonaro articula uma narrativa de liberalização total da microfísica do poder, no cotidiano. “Todos que se interporem entre o ‘cidadão de bem’ e a realização de seus desejos são inimigos. As feministas, os movimentos negros, os sindicatos, os processos legais, o Código de Trânsito, o professor que reprova, qualquer construção coletiva que funcione como freio. A simples existência do inimigo é um cerceamento à liberdade. O inimigo deve ser desconstituído, exterminado, eliminado… Faz sentido que a prioridade do Ministério da Educação seja o homeschooling – a educação domiciliar que, infensa à esfera pública, poderá imunizar os filhos dos ‘cidadãos de bem’ da influência do sistema educacional comandado por comunistas e pedófilos (sic). É o gozo sem nenhum interdito. Esse é o sujeito da contra-revolução, conforme a Weltanschauung do neofascismo.

A liberdade individual é o mantra neofascista. Se quiser: anda sem máscara, aglomera nos bares e festas, dirige acima do permitido, pratica a tortura no porão das delegacias policiais e chacina nas periferias das metrópoles. O bolsonarismo ilustra a teoria de Michel Foucault, para a qual o poder na sociedade insere-se nas “relações sociais”, em vez de alojar-se num suposto Código de Endereçamento Postal (CEP) como a Bastilha no Ancien Régime. Ou o Palácio de Inverno na Rússia czarista.

Para combater tal apelo há que “deslocar-se ao nível das microinterações sociais e estabelecer uma nova fronteira alternativa à explorada pela extrema-direita”. Continua. “A nova fronteira deve ser estabelecida entre quem se esforça para superar as dificuldades da vida e quem simplesmente se aproveita do trabalho e do esforço alheios. Um é o batalhador. O outro é o encostado.” Lago chega a insinuar que Lula da Silva adeque as interpelações à formulação dicotômica batalhadores vs. encostados. “Batalhadores do Brasil…” é o título do artigo publicado na Piauí.

– Retorno à comunidade

A insistência metonímica em trocar o chamamento aos trabalhadores – para além da herança getulista – por batalhadores, não é essencial à práxis política. Já o neologismo “cuidadania” tem o mérito de apontar um projeto com cuidados e garantias à subsistência do precariado, em meio às adversidades do desgoverno neofascista e neoliberal. Reatualiza a premência da Renda Básica, se não universal, ligada ao setor informal da economia. E a Taxação das Grandes Fortunas, como fez a Argentina.

É hora dos mega-encostados darem, nas palavras do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, retorno à comunidade, isto é, “aos que se sentem e sabem pertencendo uns aos outros, fundados na proximidade natural de seus espíritos” (Gemeinschaft und Gesellschaft / Comunidade e Sociedade, 1887). Coisa que a priori prescinde da liberdade e igualdade na sociedade. Não é a lição deixada pelo vírus na pandemia?  

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

 

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