Apresentação
Trazemos o editorial (15 de julho de 2021) da revista digital “La Tizza”, que surge a partir da Rede de Jovens Anticapitalistas de Cuba. Define-se como um espaço para pensar e construir o socialismo desde Cuba.
Boa leitura.
Lúcio Costa
Soam novamente as campanhas pelo “fim” do socialismo em Cuba. Certas bocas seguramente salivaram desde os balcões do império – e além ou aqui do mar que separa esta ilha do resto do mundo – e também de alguns esgotos. Aqueles que continuam lendo Cuba como se o Caribe fosse o Báltico compartilham em suas redes imagens jubilosas de Berlim ou Praga, daqueles dias de naufrágio. Não sabem que a Revolução Cubana não pode ser “desmerengar”, porque nunca foi merengue. Não porque não fosse doce, mas porque também bebeu suas bebidas amargas, que até agora pudemos transformar em força.
Os que saíram a protestar contra o Estado e o socialismo em Cuba eram povo. Podemos até assegurar que muitos pertencem à parte do povo que mais sofreu com os efeitos da crise, a pandemia, o bloqueio, as novas sanções americanas e a gestão desesperada e insuficiente do que podemos alcançar em meio a tanta escassez e problemas acumulados. São também parte da população mais prejudicada com o inevitável aumento da desigualdade social com que o avanço das reformas de mercado machucou e fraturou nossa sociedade. Ousamos inclusive assegurar que essas múltiplas desigualdades, às vezes invisibilizadas, mas sempre sentidas e tão prejudiciais à justiça social, produziram uma desconexão. Uma desconexão entre quem gritava “Pátria e Vida” nas ruas e o projeto revolucionário. E essa desconexão, que sempre deixa um certo sentimento de abandono, de orfandade política e econômica, mais cedo ou mais tarde se transformou em ressentimento e até ódio.
Se ignorarmos esta complexidade, se simplesmente pensarmos que são “criminosos” ou “marginalizados“, se resistirmos a compreender os processos de marginalização e se não reconhecermos as dívidas com os mais humildes da nossa sociedade, nunca iremos compreender o que aconteceu naquele domingo.
Este setor popular mais marginalizado – pelo menos em Havana – foi ativado pela agenda política da contrarrevolução. Essa soube catalisar seu desconforto e projetar seu desejo como desejo capitalista. Não surpreendentemente, os manifestantes da “fome” saquearam não apenas alimentos, mas eletrodomésticos suntuosos, para satisfazer os desejos dos consumidores há muito tempo postergados, para construir a vida que aprenderam a imaginar e sem desejar qualquer contrapeso efetivo de uma cultura distinta, emancipada.
Houve espontaneidade e houve um efeito cascata e de contágio nos acontecimentos de 11 de julho, mas pensar que surgiu “puro” é algo que só verão aqueles para quem a verdade não importa. Houve espontaneidade, mas também uma operação política e de inteligência, realizada por atores que entendem perfeitamente a agenda em questão.
Por acaso a repentina preocupação de vários influenciadores em relação a Cuba parece casual para alguém? E o pedido do prefeito de Miami? A campanha articulada nas redes? A simultaneidade das ações?
No entanto, falar do golpe “brando” e da guerra não convencional como as únicas causas dessa revolta reacionária é um erro. Uma perspectiva que se limita a isso colocaria o bloco da Revolução em um fatalismo (des) confortável: ela transforma tragédias em destinos inevitáveis. Além disso, pode levar a crer que estamos apenas diante de um problema de segurança do Estado.
Se o que aconteceu fosse problema apenas de Estado – com letras maiúsculas – quem acredita – ou quer fazer crer – que no dia 11 de julho houve um confronto entre o povo e o Estado estaria certo. Nada mais falso.
No domingo não houve confronto entre o povo e o Estado como um ato definitivo – embora mais de um teórico gaste tinta tentando comprová-lo -. No domingo houve um confronto entre duas partes do povo, entre dois projetos: uma parte que sucumbiu, que se rendeu, à agenda daqueles que sempre tentaram justamente derrotá-los pela fome e as necessidade, e que estão dispostos a renunciar à soberania e ao socialismo porque entendem, ou percebem, não só que não têm mais nada a perder, mas que não têm mais nada a ganhar e, por outro lado, a parte do povo que não quer renunciar ao projeto revolucionário que eles construíram por gerações e nem com a legalidade da Constituição socialista pela qual votaram democraticamente, nem com a sociedade emancipada que eles imaginam em seu futuro além do atual Estado herdeiro da Revolução, e suas deficiências. Engana-se quem acredita que só os militares, os dirigentes e os titulares de MLC têm motivos para defender o socialismo. Milhões de pessoas em Cuba hoje não estão dispostas a perder uma sociedade de paz, um projeto de justiça social e uma dignidade nacional que só deu a este povo, a todos eles, uma Revolução que não se esgota no que foi conquistado, mas que deve abrir novos caminhos.
Alguns ideólogos da restauração liberal propõem a formação urgente de mesas de diálogo entre as forças da contrarrevolução e o bloco revolucionário – que eles apenas entendem como Estado.
Talvez eles pensem nisso como uma oportunidade de ganhar uma fatia do bolo no contexto de uma disputa aberta pelo espaço público. Como se nota suas varandas ficam muito longe das ruas! Nas ruas reais, os manifestantes mostraram sua total falta de disposição para o diálogo. Aí ficou claro que o seu programa, é exclusivamente a destruição do socialismo, é inconciliável com o aprofundamento de toda a justiça social, e que, intoxicados pela euforia da dissolução e da destruição, não foram capazes de ver as sombras de uma intervenção nascente ou sua miséria, provavelmente em uma Cuba totalmente devastada pelo capitalismo. Afinal, esses manifestantes eram agentes de um programa que não era deles.
Nos anos 2000, diante da desconexão e marginalização produzidos pelos anos mais difíceis da crise dos anos 90, Fidel lançou a Batalha de Idéias. Nesse processo, logo desdenhado por alguns que falam apenas de seus fracassos e perdem completamente o sentido, milhares de jovens que viviam em ambientes marginalizados, como os que povoam as fotos deste dia 11 com seus rostos, conseguiram estudar ou reinserir-se no mundo do trabalho.
Foi então que a universidade realmente alcançou todos os lugares, e não foi reservada para o seleto grupo de pessoas que passam nos exames e recebem uma “autorização de estudo”. Instrutores de arte, assistentes sociais e professores se empenharam em resgatar e reconstruir uma cultura diferente, geral, para todos: tarefas com as quais Fidel elevou a autoestima dos jovens, especialmente dos mais desfavorecidos, e conseguiu reconectá-los ao projeto revolucionário.
Fidel regenerou então parte do tecido social desta Revolução que tem procurado ser dos humildes, pelos humildes e para os humildes. Sem uma batalha de ideias, talvez, o que experimentamos no domingo teria acontecido uma década antes. Em horas como estas, muitos revolucionários pensaram em Fidel, e não só por causa daquele episódio já antológico de agosto de 1994, mas também por causa desse. Pensamos em Fidel porque ninguém como ele soube transformar os reveses, as múltiplas derrotas, em novos caminhos, em vitórias. Se os revolucionários cubanos, se os comunistas cubanos querem vencer, não podemos deixar os olhos fixos no que foi, nem caminhar pelos caminhos antigos.
Se quisermos vencer, teremos que voltar para Fidel; ou seja, de volta ao futuro.
Publicação original : La Tizza
Acesse aqui: La respuesta no es policial, es política: https://medium.com/la-tiza/la-respuesta-no-es-policial-es-pol%C3%ADtica-d2cecf6da003
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