Contribuições ao debate do PT. Num contexto de crescentes dificuldades do imperialismo estadunidense, é na América Latina que têm surgido os processos políticos capazes, a uma só vez, de questionar a ordem mundial imposta pelo imperialismo dos EUA no pós “Guerra Fria” e apontar para a superação do neoliberalismo, retomando a perspectiva pós-capitalista, socialista.
GUSTAVO CODAS
Nos duzentos anos em que nossa região tem vida como nações independentes, esta conjuntura é a mais alvissareira em termos de seu potencial emancipador. No primeiro ciclo (1810-30), nossos países conquistaram sua independência política “formal”, mas ficaram presos à dominação econômica do imperialismo ascendente – o da Inglaterra. No segundo ciclo (1930-50), houve esforços pela industrialização, mas acabaram se esterilizando na estratégia do “desenvolvimento associado” ao imperialismo – fundamentalmente, o estadunidense. Houve ainda um terceiro ciclo aberto pela revolução cubana (1959) que chegou a seu ponto mais alto com a vitória na eleição para presidente do Chile de Salvador Allende (pela Unidade Popular em 1970) que, no entanto, não conseguiu superar o cerco de sangue e repressão que as oligarquias e os governos dos EUA impuseram à região através das ditaduras militares.
Os atuais processos, iniciados com a vitória eleitoral do Chávez na Venezuela em 1998 e alavancados com a eleição do Lula em 2002, abriram um conjuntura regional inédita com um grande potencial emancipador. A recente vitória de Fernando Lugo, candidato da Aliança Patriótica para a Mudança (APC, na sigla em castelhano) na eleição para presidente do Paraguai no passado 20 de abril mostra que esse ciclo ainda está em fase ascendente. Porém, não devemos desprezar os impasses estratégicos e programáticos não resolvidos que enfrentam. Há demasiados temas em aberto, entre os quais talvez um dos fundamentais é que se todos esses processos se iniciam com vitórias eleitorais nos marcos de democracias restringidas, então, enfrentam o desafio de radicalizar a democracia e inaugurar formas de democracia participativa que tenham potencial político transformador das estruturas econômicas e sociais, num sentido pós-neoliberal a curto prazo, com um horizonte socialista.
Em relação ao imperialismo há duas dimensões que devem ser consideradas. De um lado, as dificuldades do imperialismo norte-americano no plano econômico (a crise dos créditos sub-prime que se espalha por todo seu sistema financeiro) e no político (grande desgaste do Bush, que faz com que todos os pré-candidatos tentem tomar distância de sua herança). De outro, o ataque das Forças Armadas da Colômbia, com apoio dos EUA, a um acampamento das guerrilhas das FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)** em território do vizinho Equador no passado 1º de março abriu uma crise regional que ainda não superada. Pode ter se tratado do primeiro episódio da inclusão da região andina (e da América do Sul) em um marco similar ao com que os EUA tratam o Oriente Médio, o da “guerra preventiva”. Colômbia tem acumulado conflitos com três países importantes no bloco dos governos progressistas (Venezuela, Equador, Nicarágua) e tem relativa superioridade militar em relação a seus vizinhos graças ao financiamento, treinamento e apoio logístico militar do governo dos EUA. O governo Uribe manipula a opinião pública para aumentar seu apoio interno com a justificativa da “guerra ao terror” (das FARC), por isso não lhe interessa a negociação para o fim do conflito armado interno. O governo colombiano se alimenta politicamente da guerra interna; os conflitos com seus vizinhos são a continuação dessa manipulação política em escala regional. Está posto um cenário em que em defesa dos “interesses nacionais colombianos” (os interesses do governo da Colômbia), os EUA poderão fustigar os governos progressistas com os que Uribe tem conflitos.
Cenário regional novo
As novidades do processo atual são: acontece em vários países latino-americanos ao mesmo tempo; envolve algumas das principais economias da região (Brasil, Argentina, Venezuela); e suas forças motrizes (governos, partidos, movimentos sociais) compartilham um campo político comum. Como em outros momentos históricos similares, neste há também um elemento econômico propiciador: a alta (conjuntural) dos preços de matérias-primas e recursos naturais e energéticos existentes na região. Há um forte sentimento nacional de que é justo que nossas sociedades se beneficiem mais dessa vantagem – o que não é possível sob o programa neoliberal e a dominação imperialista. Malgrado os impactos que a crise financeira dos EUA está tendo na economia mundial, tudo indica que esse cenário terá continuidade (puxado pela Ásia) e com ele as possibilidades postas para os países exportadores desses produtos.
Falamos de uma conjuntura e um processo regional, mas isso não deve ocultar que estamos falando de países e processos nacionais que têm profundas diferenças:
– Brasil e Argentina são economias semi-industrializadas complexas e têm burguesias locais mais fortes e enraizadas que países como Venezuela, Bolívia e Equador, nos quais o Estado tem condições de controlar a principal atividade econômica (exploração de hidrocarbonetos, minérios, etc.), a qual suas burguesias parasitam.
– Esses processos políticos tiveram diferentes pontos de partida. Em alguns – Brasil, Uruguai, Nicarágua – foram vitórias eleitorais em um ambiente de normalidade institucional. Em outros – Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador – as conquistas nas eleições foram precedidas e pavimentadas por profundas crises institucionais.
– Há casos em que as forças motrizes estão claramente lideradas por partidos políticos constituídos há tempos – Brasil, Uruguai, Nicarágua -, enquanto, em outros, a liderança do processo não é dos partidos – Venezuela, Equador, Argentina, e mais recentemente Paraguai. Se analisarmos esses casos nacionais pelo viés das relações entre governo, partido(s), movimentos sociais e participação popular, teremos outro tanto de diferenças. Também são diferentes as perspectivas do desenvolvimento de formas participativas de poder.
– No Brasil e na Nicarágua, conquistou-se a presidência, mas não uma maioria no parlamento – e esse será também o caso do Paraguai com o início do governo de Fernando Lugo em 15 de agosto próximo. Em conseqüência disso, a questão da governabilidade coloca o dilema de como conseguir maiorias legislativas. Na Venezuela, no Uruguai e na Bolívia, os setores progressistas conseguiram ambas. No Equador foi conquistada num avassalador processo constituinte posterior à eleição presidencial***.
– Outro problema é o da relação com as classes médias, conceito vago que abrange tanto profissionais liberais, empresários médios e pequenos e até setores da classe trabalhadora com melhores níveis de remuneração. Em processos anteriores (Cuba, 1959 e Chile, 1970), o imperialismo estadunidense manipulou amplamente o caráter ambíguo das classes médias (inicialmente democráticas, mostram pavor frente à emergência política dos setores populares mais pobres). Nos processos atuais, em alguns casos (Venezuela, Bolívia e em menor medida Brasil) há uma ruptura delas com o governo progressista. No caso equatoriano o presidente Correa tem origem e força nas classes médias urbanas que competem em protagonismo com o movimento indígena liderado pela CONAIE (Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador) que não se sente representado pelo governo.
No plano econômico há traços comuns, por cima das diferenças nacionais, tais como: programaticamente as principais medidas parecem apontar para um fortalecimento da economia pública (nacionalizações em alguns casos, fortalecimento da capacidade de gasto e investimento estatal, maior controle público do mercado, aumento de impostos sobre setores oligopolizados que exploram recursos naturais etc.). Os maiores recursos estatais são orientados a financiar políticas públicas em áreas chave (saúde, educação, saneamento, acesso a serviços, complementação de renda, melhoria de sistemas de previdência social etc.) Em todos eles há uma melhoria das condições médias de vida (salário, emprego, renda) da população, o que fortalece o ciclo econômico interno e amplia o apoio eleitoral para a continuidade do projeto (como foi testando recentemente na Venezuela, Brasil e Argentina). Em todos eles há políticas de fortalecimento da pequena produção urbana e rural, da economia solidária e cooperativada etc., e em alguns deles há políticas de fortalecimento das negociações coletivas e da capacidade de atuação dos sindicatos; por ambas as dimensões, são claramente políticas pós-neoliberais.
Até aqui não estávamos discutindo o caso cubano, que vem do ciclo anterior, mas que está em estreita aliança com os atores principais do atual. Mas há uma novidade: a mensagem de Fidel de 18/02/2008 abrindo mão de se postular para cargos ao governo cubano e a assunção do Raúl Castro como chefe do Estado cubano. Ainda substituindo Fidel na fase anterior, Raúl tinha lançado publicamente o debate sobre a renovação do socialismo cubano. O ponto de partida é o dos grandes impasses que estão sendo vividos na ilha. Pelo peso que a experiência revolucionaria cubana tem sobre toda a esquerda latino-americana isso passará a ser parte da nossa pauta.
A tentativa – realizada simetricamente tanto por analistas conservadores como por setores esquerdistas – de “blocar” as experiências por meio de dicotomias do tipo “revolucionários X reformistas” ou “atrasados/populistas X modernos/adaptados neoliberais” impede a compreensão correta da situação e, se levada a sério, bloquearia o processo e não o desenvolveria. Contrariamente a esse tipo de visão temos insistido na necessidade de se alcançar novas sínteses estratégicas e programáticas na esquerda latino-americana buscando superar os erros e limitações que bloquearam os processos revolucionários no passado. Para tal síntese, cada um dos processos nacionais tem contribuições positivas a dar e evidencia impasses que devem ser analisados criticamente. Não há “linearidade ascendente” em nenhum caso (nem nos que alguns proclamam como os ‘autenticamente revolucionário’: Bolívia, Venezuela, Equador) mas isso não pode nos impedir de enxergar as imensas potencialidades que se abriram com todos esses processos.
Integração necessária
O elemento que reúne todos esses processos é a necessidade da integração regional. Somente a complementaridade entre todos esses países poderá criar as condições para que se desenvolva uma dinâmica de superação do neoliberalismo e da dependência, para que se enfrente o imperialismo com chances de vitória, e se estabilize um projeto alternativo. A integração regional pode somar as capacidades técnicas e científicas dos setores de trabalhadores mais especializados, a base tecnológica e industrial construída nos períodos anteriores (sobretudo de Brasil e Argentina), a enorme disponibilidade de recursos naturais e energéticos, criando um bloco econômico e político em condições de afirmar uma política própria.
Defendemos que, para ser conseqüente, a luta pela superação do neoliberalismo e da dependência, bem como a luta para derrotar o imperialismo, têm de ter uma perspectiva socialista. Contudo, a maneira como essas dimensões vão se combinar dependerá de cada processo nacional, suas peculiaridades, suas forças motrizes, sua história.
Não está dada, nem está resolvida teórica e programaticamente a questão da superação do neoliberalismo e a perspectiva do socialismo. A reivindicação de um “socialismo do século XXI” é importante como parte da batalha ideológica contra as forças conservadoras, mas per se não resolve os imensos desafios que temos pela frente (para se refrescar a memória do tipo de questões que temos que tratar ainda e de novo, estão a impossibilidade do socialismo em um só país, a necessidade de uma acumulação socialista originária etc.)
A questão-chave para que o atual ciclo de lutas por emancipação nacional e social tenha êxito é a construção de um amplo movimento político e social em âmbito regional. Temos as ferramentas iniciais para isso, elas foram construídas no período anterior, na resistência. No plano partidário, o Foro de S. Paulo vem, desde 1990, reunindo um amplo leque de partidos progressistas e de esquerda, e inclui todas as forças políticas que impulsionam os processos acima citados. No Fórum Social Mundial/Fórum Social das Américas, têm-se reunido também os mais diversos setores sociais (e parlamentares e autoridades locais) que rechaçam o neoliberalismo. Em ambos os casos, no entanto, faz-se necessário ir além da cultura de fóruns, de funcionamento de tipo “espaços” (aberto, como o FSM/FSA ou delimitado, como o FSP), para um grau de aprofundamento dos debates, das convergências concretas e dos compromissos sobre um programa e uma agenda de lutas. Redes e movimentos continentais (Via Campesina/CLOC, Marcha Mundial das Mulheres, Aliança Social Continental/Campanha Continental contra ALCA, Confederação Sindical das Américas/Fórum Sindical das Américas, etc.) apontam para essa direção.
Porém, devem-se descartar tentações que esterilizaram o internacionalismo no século passado. Não há nem deve haver “partido-guia” ou “país-farol”. A construção deve ser de uma direção política coletiva e compartilhada, respeitosa dos diversos ritmos e da diversidade político-ideológica que compõe esse ciclo.
Temos um calendário desafiador pela frente que muito bem pode ajudar a responder essas questões. Entre os vários momentos nos próximos meses, o FSM de 27 de janeiro a 01 de fevereiro de 2009 em Belém do Pará coloca-se como um primeiro ponto de chegada para nossa discussão estratégica e construção de convergências amplas (entre movimentos sociais, partidos políticos progressistas e de esquerda e governos progressistas e de esquerda) no plano programático de superação do neoliberalismo com uma perspectiva socialista.
Gustavo Codas é da coordenação do Fórum Social Mundial
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