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Trotsky, a fuga da Sibéria | Luiz Marques

Acaba de ser publicado, na Espanha, La Fuga de Siberia en un Trineo de Renos (Siglo Veintiuno & Clave Intelectual), de León Trotsky (Ucrânia, 1879 – México, 1940). Depoimento que parece uma novela de aventuras. O herói conta o traslado forçado às colônias penais siberianas, pela atuação na presidência do Soviete de Delegados Operários, de São Petersburgo, e pelo lugar protagônico na Revolução de 1905, na Rússia. Nessa época, vaticinou: “Para o proletariado, a democracia é em todas as circunstâncias uma necessidade política; para a burguesia capitalista é, em certas circunstâncias, uma inevitabilidade política”. Assertiva, diga-se de passagem, que dialoga com a luta que se desenrola e condiciona as alternativas colocadas nas próximas eleições, no Brasil.

A primeira deportação do combatente pela igualdade e pela liberdade ocorreu entre 1900 e 1902, e foi proveitosa à sua evolução política e filosófica. Na ocasião, pegou do carcereiro o pseudônimo com o qual Lev Davídovich Bronstein ingressou no panteão do socialismo. Na prisão, assíduo frequentador da biblioteca, leu as peças de Shakespeare. Os livros subversivos entravam por meandros inventados pelos visitantes. Fez a própria defesa no tribunal que o julgou, com um forte discurso antimonarquia, baseado nos ensinamentos shopenhauerianos sobre “a arte da controvérsia” para tecer contra-acusações às autoridades imperiais. “De um lado existe luta, coragem, verdade, liberdade. De outro, falsidade, vileza, calúnia, escravidão. Cidadãos, escolham!” Ótimo orador, de verve sedutora e raciocínio ágil cativava a audiência, de pronto. No fundo, visava a atenção e a consciência política dos trabalhadores que acompanhavam o processo judicial, pelos jornais.

Perante o juiz, arguiu o governo conivente com os pogroms (ou seja, com práticas de destruição) contra as comunidades judaicas da Zona de Assentamento. Admitiu que o Soviete se armou, mas pela urgente necessidade de combater “essa forma de governar”. À medida que argumentava, lançava uma série de denúncias de caráter moral e humanitário ao inimigo, o Estado czarista.

Ao ludibriar a polícia para escapar, deu início as anotações. Não esqueceu de endereçar palavras às renas que puxavam o trenó. “Eram magníficas as que o guia escolhera num rebanho de talvez uma centena de cabeças. São criaturas fascinantes. Não passam fome, nem padecem cansaço. Em nossa odisseia, levavam dois dias sem alimentar-se e iam para o terceiro sem comer, com descansos breves de dois ou três minutos. O alimento procuravam-no por si. No local em que sentiam o musgo sob a neve, cavavam um buraco com os cascos, mergulhavam até o pescoço e comiam. No caminho, os animais iam bem juntos e eu me admirava de que não entrançassem as patas e tombassem”. Na liderança do Comitê Militar Revolucionário, trocou o trenó pelo trem na tarefa de organização do vitorioso Exército Vermelho, com os ideais que derrotaram o czar e o capital.

A narrativa possui duas partes, perfeitamente distintas: la ida & la vuelta. Abarca desde a saída (03/01/1907) do cárcere da Fortaleza de Pedro e Paulo, em São Petersburgo, que serviu de gabinete durante um ano para escrever, até a chegada ao povoado de Beriózov (12/02/1907), penúltima parada antes de chegar ao destino – a remota localidade de Obdorsk, nos confins da esperança.

Em sua autobiografia, em 1930, Trotsky ao se debruçar sobre a contingência relembra: “Para mim, foi um período de trabalho intenso, científico e literário. Estudei a teoria da renda da terra e a história das condições sociais na Rússia. Um trabalho meu, muito desenvolvido mas não terminado, sobre a renda da terra, perdeu-se nos primeiros anos após a Revolução de Outubro. O estudo sobre a história social russa condensou-se no artigo ‘Resultados e Perspectivas: as forças motrizes da revolução’ que é, nesse intervalo, a exposição mais completa da teoria da revolução permanente”.

Em Minha Vida (Paz e Terra), registrou: “Ainda não se podia ver bem se a revolução estava num refluxo definitivo, ou estacionava para logo recomeçar. Em ambos os casos era preciso lutar contra os céticos, rever teoricamente a experiência de 1905, educar os quadros para a nova ascensão ou para a revolução seguinte. Lenin numa conversa aprovou o trabalho que eu tinha desenvolvido na prisão, mas me censurou por não tirar dele as consequências necessárias, vindo para as fileiras dos bolcheviques. E tinha razão”. Nos parágrafos que encerram a lembrança da evasão, observou: “Aqui, termina minha ‘heróica’ fuga através da taiga (paisagem com árvores de porte maior) e da tundra (paisagem com espécies vegetais rasteiras). Na trama mais arriscada, a fuga resultou mais fácil e prosaica do que eu imaginara”. Em retrospectiva, depois, a adrenalina desmanchou no ar.

Em Beriózov, Trotsky simulou uma crise do ciático para não prosseguir o calvário. “Como se sabe, a dor ciática não pode ser verificada”. Dali, empreendeu o retorno à civilização. “Eu vestia duas peliças, uma com o pêlo para fora, outra com o pêlo para o lado de dentro, meias de pêlo. Em suma, o equipamento de inverno de um ostiak (habitante da Sibéria, famoso pelo excessivo consumo de bebidas alcoólicas). Na maleta eu tinha algumas garrafas de álcool, a moeda mais segura no deserto de neve”. Conforme o futuro fundador da Quarta Internacional: “A viagem durou oito dias. Havíamos percorrido 700 quilômetros e nos avizinhávamos dos Urais. Fazia-me passar por um engenheiro da expedição polar do barão Toll. Tinha alcançado a linha de ligação com a estrada de ferro”. Sinal da libertação no horizonte. Na sequência, exilou-se por vários países, na Europa.

Se na ida as cartas à querida companheira serviram de eixo epistolar para a crônica; na volta, o estilo adotado é de suspense sobre o sucesso da fuga em marcha, sem ainda adivinhar o desfecho. Era de conhecimento geral, porém, que “de quatrocentos e cinquenta presos em determinada área de Tobolsk, restavam só cem”. O fato era auspicioso. Na região, se costumava considerar o frio suportável aos -25 ou -30 °C, conquanto pudesse chegar a -50 °C. “Todo dia descemos um degrau para o reino do frio e da selvageria”. O percurso era um castigo, que a incerteza aumentava.

Mais tarde, em uma famosa trilogia (Civilização Brasileira) o biógrafo Isaac Deutscher destacou La Pluma, alcunha de Trotsky pelo talento como escritor. “Encarnava o grau mais alto de maturidade a que o movimento tinha aspirado ascender, até então. Ao formular os objetivos da revolução, ia mais longe que Mártov (líder dos mencheviques) e Lenin (líder dos bolcheviques). Estava melhor preparado para jogar um papel ativo nos acontecimentos. Um infalível instinto político o havia levado, nos momentos oportunos, aos pontos nevrálgicos e aos focos da revolução” (O Profeta Armado, volume I). Foi portador de “compromissos grandes demais com o proletariado”.

Na história do movimento trabalhista e do marxismo nenhum ciclo foi tão sombrio e problemático, como nos anos do último exílio de Trotsky, que o acharam desarmado. “Foi um tempo em que, para citar Marx, ‘a ideia tendia para a realidade’, mas como a realidade não tendia para a ideia, formou-se um abismo entre elas. Em tempo algum, o capitalismo esteve tão próximo da catástrofe quanto durante as depressões e colapsos da década de 1930; e em tempo algum mostrou uma elasticidade tão selvagem. Nunca tão grandes massas foram inspiradas pelo socialismo; e nunca foram tão impotentes e inermes”, aponta Deutscher (O Profeta Banido, volume III). Um indivíduo fez falta.

Com clareza, Trotsky previu o desastre da substituição das classes trabalhadoras pela vanguarda. “A organização partidária tende a colocar-se no lugar do partido como um todo; o comitê central no lugar da organização e, para completar o cenário, um ditador no lugar do comitê central”. Com o que a pretensa “ditadura do proletariado” se converte na ditadura sobre o proletariado. O trágico destino, que culminaria na picareta de alpinista, prenunciava-se. A profecia se realizou, por inteira.

O “profeta”, que na acepção bíblica do Primeiro Testamento significa “o que indica caminhos alternativos”, derrotado em vida, foi um vencedor depois do covarde assassinato num fatídico 20 de agosto. O comando stalinista achou que o faria cair no esquecimento sepulcral, mas sucedeu o contrário. Estátuas do burocrata despótico foram derrubadas e pisoteadas no chão; o mausoléu do ex-seminarista retirado da companhia de Lenin. E um desenhista pôs ali o de Trotsky, sem o culto.

O corpo se decompõe, com a morte. As ideias se recompõem, com a memória. Trotsky sobreviveu ao fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que auxiliou a fundar e, com Che Guevara, tornou-se no imaginário contemporâneo um digno expoente da utopia pós-capitalista, frente às deformações do regime sediado em Moscou. Hoje, ambos são mitos que condensam a disposição para uma socialização efetiva do poder e a abertura para inovações artístico-culturais.

Josef Stalin, o “militante anônimo”, de início foi visto como um administrador moderado, sensato e disciplinado o suficiente para manter o script delineado no precipitado fechamento da Assembleia Nacional (Duma), um caso premonitório de desgraças. Rosa Luxemburgo, que concebia o socialismo de forma indissociável da democracia, foi uma voz lúcida ao formular o alerta que teria feito a diferença. “A eliminação da democracia, como tal, é pior que a enfermidade que se supõe curar; pois detém a fonte viva que pode propiciar o corretivo aos males das instituições sociais. Essa fonte é a vida política ativa, sem travas, enérgica, do conjunto das massas populares”, lê-se no balanço, A Revolução Russa (Vozes), escrito em 1918 e publicado postumamente em 1922.

Para Michael Löwy, “um dos textos indispensáveis não só para a compreensão do passado, mas para uma refundação do socialismo (ou comunismo) no século 21”.Trata-se de um libelo a favor da soberania popular, contra o autoritarismo. Isabel Maria Loureiro teve o mérito de traduzir e introduzir, entre nós, a paradigmática reflexão de outra brilhante personagem com fim sinistro.

O erro de avaliação sobre Stalin e sobre a importância dos organismos representativos custou caro. Em sete décadas, a URSS não produziu nenhum pensador original. Grande parte da esquerda mundial, por osmose, foi congelada e embalsamada na escolástica, que consagrou o enxame de citações oficialistas para impedir o livre pensar e impor a verdade do “farol dos povos”. Os hereges foram perseguidos, excomungados. Saltou-se do “socialismo em um só país” para o pastiche teórico em todos os países. A simplificação do materialismo histórico implicou o abandono, em nome de interesses chauvinistas, do conceito central na aplicação do método dialético, a “totalidade”.

O mago dos sovietes teve também um biógrafo na língua portuguesa, Paulo Leminski, autor de Leon Trostky: a Paixão Segundo a Revolução (Brasiliense). Sob influência freudiana, o poeta de Curitiba tomou o romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamázov (Abril), escrito quarenta anos antes do fenômeno insurrecional, como prelúdio do episódio que continua assombrando o Ocidente. “Quando um dos Karamázov mata o pai, começa a Revolução Russa, esse terremoto histórico, onde Trotsky teve um papel decisivo”. Ruía o totem das estruturas da opressão. Novas surgiriam, hélas.

Já, sob influência libertária, o samurai das letras reporta uma fala das memórias de Górki, a quem Lenin teria confidenciado uma impressão sobre Trotsky. “Ele sabe organizar. No entanto, não é dos nossos. Está conosco, mas não é dos nossos”. Com toda certeza, o comentário lacônico exprimiu o diagnóstico que perpassava a mente dos altos dirigentes do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), o que explica a posição dos notáveis quadros formados pela escola leninista, na disputa pela hegemonia do aparelho estatal, após a morte física de Vladimir Ilitch Ulianov (1924).

Leminski celebra em versos o reconhecimento crescente ao camarada redivivo no poema que dedica a uma das combativas frações do movimento estudantil brasileiro, Liberdade e Luta / Libelu, sob a ditadura das casernas: “me enterrem com os trotskistas / na cova comum dos idealistas / onde jazem aqueles que o poder não corrompeu”. Ergue ainda um poema para brindar o velho León e Natalia, no exílio do casal em Coyoacán: “nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia / nada como um dia indo atrás do outro vindo”. O totalitarismo não é a única alternativa ao capitalismo.

La Fuga de Siberia en un Trineo de Renos, em suma, é a “história pessoal e dramática, que nos entrega um Trotsky observador, profundo, humano, por momentos irônico, que explora os arredores e expressa um estado de ânimo ou tira a fotografia de um ambiente que, sem dúvida, se revela extremo, exótico, quase inumano”. A sentença, na apresentação do precioso relato, é do literato cubano Leonardo Padura, autor de O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo). A saga de Trotsky, na idade de 27 anos, é uma leitura obrigatória. Aguarda-se a tradução, no idioma pátrio.

 

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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