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Trump novamente ou ‘é a política, estúpido’ | Erick Kayser

Donald Trump será o próximo presidente dos EUA. Este retorno à Casa Branca promete ser um elemento a mais de crise em um planeta já em convulsão. Mas deixemos exercícios de projeção para depois. Neste momento, talvez seja mais útil darmos um passo atrás e tentar compreender um pouco as razões que culminaram neste resultado e seus sentidos políticos.

Foto: Wikipedia Commons

            Após o impacto com o resultado eleitoral, muitas análises buscaram fazer variados paralelos entre as eleições nos EUA e o cenário brasileiro. Para além de ser um elemento anímico importante para mobilizar a extrema-direita local, alguns paralelos entre a conjuntura norte-americana e a nossa devem ser traçados com cautela ou mesmo evitados. Para nós do sul global, nunca é demais lembrar que, nas eleições da autoproclamada “maior democracia do mundo”, pouco mais de 40% da população costuma participar e o voto é indireto. O princípio de “um cidadão, um voto”, que remonta a antiga democracia ateniense, ainda não foi conquistado pelo povo norte-americano.

            Por lá, através de um complexo sistema eleitoral baseado no voto distrital, são eleitos delegados com o poder de escolher a presidência do país. Permeado por inúmeras distorções, o resultado é uma eleição onde o voto de alguns pesa mais que o de outros. Além de contar com regras que distorcem a vontade popular, as eleições norte-americanas são historicamente marcadas pelo poder do dinheiro. A disputa deste ano foi a mais cara da história, com contribuições totais declaradas que chegam a US$ 15,9 bilhões (R$ 91,9 bilhões). Enquanto Kamala Harris liderou nas pequenas doações, a campanha de Trump foi turbinada por magnatas dispostos a investir no futuro butim do Estado, como Elon Musk e outros tecno-oligarcas que arrecadaram centenas de milhões de dólares para a campanha Republicana.

            Se paralelismos diretos entre a política dos EUA e a do Brasil não são recomendados; contudo, com a devida mediação, certos aspectos gerais merecem um olhar atento. Em sua dimensão política, foi muito menos uma vitória de Trump e dos Republicanos e muito mais uma derrota do partido Democrata de Kamala Harris. Esta situação fica nítida quando observamos os números. Trump venceu fazendo praticamente os mesmos 74 milhões de votos da eleição anterior. A diferença ocorreu pelo declínio dos votos Democratas. Se com Joe Biden, em 2020, foram mais de 81 milhões de votos, nesta eleição a votação caiu para pouco mais de 71 milhões de votos nos Democratas. Qual será o motivo desta queda?

            Mesmo os erros cometidos na campanha de Kamala Harris, a começar pela escolha tardia de seu nome para a disputa, talvez não sejam suficientes para explicar um declínio tão grande na votação. Em disputas acirradas, não raro se evoca a famosa frase do ex-conselheiro político de Bill Clinton, James Carville, “é a economia, estúpido”. Ela tem sido empregada ad nauseam como busca de explicações de processos eleitorais cujos resultados parecem não ter uma explicação lógica. Mas, a economia dos EUA vai mal? Com o PIB aumentando 2,9% no último ano, o desemprego a 4,1% e os salários com um crescimento de 3,9%, não é o que os números parecem indicar. Se uma leitura mais tecnocrática fica frustrada para entender a derrota dos Democratas, melhor tomarmos outro caminho, como um brado de ‘é a política, estúpido’.

            Para além da frieza dos números e sua superficialidade, devemos analisar este cenário sob um olhar político, qualificando nossa percepção. A luta de classes nos EUA se agudizou nos últimos anos, distorcendo a economia do país sob uma dinâmica de ultra concentração de renda. Assim, os resultados econômicos do governo Biden foram insuficientes para reverter o processo de aprofundamento das desigualdades. A renda dos trabalhadores tem sofrido perdas contínuas, contrastando com o aumento exponencial nas fortunas de um pequeno grupo. Este contraste fomenta insatisfações e desilusões em uma massa de excluídos do “sonho americano”. Esses setores empobrecidos têm sido um dos combustíveis sociais do trumpismo, que habilmente manipula suas frustrações. Incapaz de romper com a “camisa de força” das políticas de austeridade, as gestões democratas, não raro, aprofundaram essas políticas. Apesar deste histórico, o governo Biden ensaiou algumas medidas alternativas, que recolocavam o Estado em um papel mais indutor na economia, mas se mostraram tímidas diante da magnitude do problema.

            Um outro sinal importante desta disputa é que a defesa da democracia, em si, não é suficiente para assegurar vitórias eleitorais. Kamala Harris e os Democratas buscaram ao longo da campanha apelar para um sentido de urgência frente aos riscos de uma guinada autoritária com o retorno de Trump. Foi subestimado o alcance da crise da democracia, não sendo apenas uma questão de mau funcionamento das instituições, como costumam afirmar estudiosos liberais. A luta pela defesa das instituições democráticas, para muitas pessoas, soa como uma defesa do status quo, uma preservação de uma ordem das coisas que lhes é intolerável. O discurso disruptivo de Trump, mesmo que se trate de uma demagogia performática, sugere uma possibilidade de mudança. Numa democracia de baixa intensidade e com um sistema político elitista, não deveria surpreender que a bandeira democrática tenha perdido muito de seu apelo.

            Não se trata  de sintomas de uma “guinada conservadora” na sociedade, como por vezes se busca simplificar a questão. O tema do aborto é um exemplo. A questão entrou na cédula de votação em dez estados e em sete deles o resultado foi favorável pelo direito ao aborto. Destes estados onde o direito ao aborto foi aprovado, Trump foi o mais votado para presidente em cinco deles – Nebraska, Missouri, Montana, Arizona e Nevada.

            A derrota do partido Democrata se explica fundamentalmente pela política. Mas não de um equívoco tático ou de linguagem, como, por exemplo, a ideia de que o erro foi do partido abraçar a “agenda woke”, como alguns se apressam a dizer; na verdade, o problema é mais profundo. Um partido que aderiu ao ideário neoliberal, que prioriza as oligarquias e o sistema financeiro, perde muito de sua legitimidade. O apoio dado pelo governo Democrata a Israel na guerra de Gaza e acenos na campanha para políticos conservadores, serviram para ampliar a perda de votos ou gerar desmobilização do engajamento na campanha de setores identificados à esquerda. Como bem sentenciou Bernie Sanders, senador de Vermont e uma das principais lideranças da esquerda nos EUA, “não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou”.

Erick Kayser é historiador.

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