Esse é um artigo de difusão das ideias de Shoshana Zuboff (A era do Capitalismo de Vigilância, 2021). A primeira notícia sobre a obra saiu no jornal Valor (05/03/2021), que publicou uma entrevista com a autora. Trata-se de leitura obrigatória para todos(as) que se preocupam com o futuro da democracia frente à ganância das grandes empresas de tecnologia digital. O documentário O Dilema das Redes, disponível na Netflix, havia destacado os riscos da “economia da atenção”, onde vidas digitais são convertidas em estatísticas e, ao cabo, comercializadas para vender produtos e serviços aos consumidores… e candidatos da extrema-direita aos eleitores. Ao estudar o “fetichismo da mercadoria”, Karl Marx (O Capital, vol.1) alertou para a completa mercantilização do ser humano, sob a lógica de dominação total do mercado. A projeção realizou-se.
A inocência tornou-se mercadoria, hoje. A reprodução de vídeos no YouTube ou as curtidas no Facebook, no Twitter e Istagram transformaram-se em produtos comerciais que rendem dividendos. “A experiência humana privada virou fonte gratuita de matéria-prima, traduzida em dados comportamentais reivindicados como propriedade para manufatura e comercialização”. Toda busca na internet é capturada por aparelhos dotados de inteligência artificial para antecipar a conduta dos usuários. Mecanismos de direcionamento, pistas subliminares e microtargeting psicológico (algoritmos empregados no envio de anúncios específicos para o público-alvo) são acionados instantaneamente sempre que se bate na tecla de um computador, caracterizando uma invasão de privacidade, facilitada pelas ferramentas de recomendação úteis aos “mercados de predição”.
“O Facebook calcula trilhões de dados todos os dias e produz seis milhões de predições comportamentais, por segundo”, enfatiza a professora da Universidade Harvard. Uma escala monumental. As ferramentas on-line, desvelando as inclinações das personas, permitem mudar a direção de comportamentos e sentimentos. Coisa que indica uma violência contra o fundamento da democracia liberal: a capacidade de pensamento e escolha autônomos, com livre-arbítrio. Se a apropriação da subjetividade dos internautas corrompe o regime democrático, sua comercialização leva ao totalitarismo de mercado. Induz ações que não derivam de iniciativa própria. Com efeito, as estratégias de direcionamento fazem do conhecimento um poder totalitário. Esse é o modelo de negócios implementado pelo Facebook/WhatsApp, Google, Amazon e Apple. Urge uma legislação em defesa da democracia. O “capitalismo de vigilância” é o Big Brother da vida real.
“O que enfrentamos na atualidade não é consequência da tecnologia em si ou da tecnologia digital, mas de circunstâncias incomuns… São operações econômicas criadas por pessoas que podem ser desfeitas por pessoas”, registra Zuboff, sem fazer coro com a lenda do operário britânico, Ned Ludd, que, no crepúsculo do século 18, para salvaguardar do desemprego os trabalhadores teria destruído as máquinas do patrão que impulsionavam o desenvolvimento tecnológico durante a Revolução Industrial. A acadêmica não é adepta do luddismo. Prega, isso sim, que sociedades e governos têm de ser proativos ao invés de meros espectadores do filme que está passando nas telas, fixando marcos legais para proteger a democracia. “A Europa tem atuado para tanto. O parlamento europeu não apenas aprovará uma legislação, mas vai financiá-la de forma robusta. A regulamentação não resolverá 100% dos problemas. Mas pela primeira vez mudará a trajetória desde que tudo começou, no início dos anos 2000. Governos e legisladores terão poderes que nunca existiram”, celebra com razão.
A aprovação de uma legislação disciplinadora no Velho Continente vai pressionar por um novo padrão regulatório nos Estados Unidos e no Brasil. Sobre o cancelamento de Trump das social media, declarou-se favorável. O narcísico neofascista é responsável pela morte de milhares de estadunidenses em função do descaso com relação à pandemia. Também por conduzir a criminosa insurreição contra o Congresso dos Estados Unidos com base na falsa informação de que a eleição foi fraudada, o que nunca provou a exemplo do clone miliciano da Barra da Tijuca. Só seria de lamentar que o banimento tenha tardado. A pesquisadora acusa Mark Zuckerberg pela negligência. “Eu não digo Facebook. Eu digo Zuckerberg porque ele (o empresário) não é limitado por uma legislação pública. Essa é uma situação intolerável”, indigna-se. “As democracias liberais não conseguiram construir uma visão de futuro digital… As democracias legaram um vazio que foi preenchido pelo capitalismo de vigilância, com suas regras e imperativos”, lamenta.
Em suma: “A democracia está sitiada… Mas é um tipo de cerco ao qual apenas a democracia pode dar um basta… precisamos de um arcabouço legislativo que permita às instituições fiscalizar, intervir e proibir operações (antidemocráticas)”. A dinâmica neoliberal alavancada pelo capitalismo de vigilância separou o capitalismo, por um lado e, por outro, a sociedade. O business intelligence apartou-se de suas comunidades. As riquezas foram amealhadas pelas classes possuidoras. Os negócios não beneficiaram o conjunto social, a religião dos administradores exige a maximização do lucro e o retorno financeiro imediato aos acionistas, às expensas da crescente desigualdade societal. Se alguém pensou na Petrobrás, pensou corretamente. Shoshana Zuboff: “O neoliberalismo criou as condições para o capitalismo de vigilância se enraizar e prosperar como um capitalismo de elite”. De elite, pela elite e para a elite. Vivemos um oceânico divórcio entre a indiferença do establishment mundial e as urgentes demandas dos povos. Eis um tema que deveria reunir parlamentares progressistas no Congresso Nacional para discutir um Projeto de Lei.
- Luiz Marques é professor de Ciência Política da UFRGS
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