Em seu ensaio “As novas faces do fascismo (e novos fascismo sem rostos) na época “pós-fascista”, o pesquisador inglês Roger Griffin, no livro no qual dialoga com dezenas de estudiosos de vários países, usa a expressão “mentalidade Linha Maginot” para chamar a atenção sobre os pontos cegos nas teorias contemporâneas em sua incapacidade de identificar e compreender as novas ameaças do fascismo neste século XXI. A Linha Maginot, como se sabe, foi um conjunto de fortificações tidas como inexpugnáveis construídas pela França após a Primeira Guerra Mundial na fronteira com a Alemanha mas que foram rapidamente desbaratadas pela nova máquina de guerra de Hitler.
Roger Griffin, autor de “The nature of Fascism” (1991), “Fascism” (Oxford, 1995), “International Fascism (1998), “Fascism: Critical concepts in Political Science (cinco volumes, Routledge,2004), “Modernism and fascism: The sense of beginning under Mussolini and Hitler” (2007) e o impressionante volume “Fascism past and present, West and East – An international debate on concepts and cases in the comparative study of the extreme right” (2014), hoje com 70 anos, tem estado no centro dos debates internacionais sobre o tema nos últimos 25 anos. É preciso dialogar com suas reflexões para entender o que, como um pesadelo, se passa hoje no Brasil.
Aqui, só é possível apenas elencar algumas dimensões centrais de seu alerta. O “motor do fascismo”, diz ele em uma entrevista, “queima no combustível dos homens comuns”. E reitera que “de modo muito diverso de desvanecer-se na insignificância no pós-guerra, o fascismo tem demonstrado uma vigorosa capacidade darwiniana para uma mutação criativa”. Os EUA pós-Kennedy e a URSS pós-Gorbatchev seriam celeiros de novos experimentos e forças fascistas. Ele cresce em sociedades que apartam e isolam os indivíduos da simpatia mútua e do compartilhamento dos bens de civilização.
O trabalho de Roger Griffin é, sobretudo, de ordem conceitual. E, através de uma nova inteligência obtida pelo trabalho do conceito, consegue enxergar o que teorias fechadas e apaziguadas em sua normalidade não vêem.
O seu grande mérito é entender o fascismo como uma tradição política, assim como o liberalismo e o socialismo, e não como um evento extraordinário congelado no trauma de um horror. Busca, então, por décadas, o conceito de uma “fascismo genérico”, um núcleo permanente na variação histórica e contingencial, que permita historicizar, operar com estudos comparativos e análises empíricas.
O centro de sua definição de fascismo é o de uma ideologia de construção de poder que, em meio a uma sociedade em crise, mobiliza todas as energias para operar um renascimento que envolve uma regeneração (palingênese) tanto da cultura política, quanto da cultura social e ética que a sustenta. Um ideal de purgação, limpeza, recomeço e redenção legitimaria o uso da violência para extrair do organismo unitário, nacional e/ou racial, que se almeja construir, as partes não sadias. Auschwitz, símbolo maior do extermínio de seis milhões de judeus pelo nazismo, seria o “ânus da Europa” na linguagem hitleriana documentada. A partir deste núcleo conceitual, Griffin opera com cinco alavancas para criar um novo campo de estudos.
O primeiro seria o de entender o fenômeno do nazismo, como o caso historicamente mais singular e espetacular,da tradição do fascismo, uma espécie de um gênero, crescida na época do entre-guerras, em uma situação histórica de profundo sentimento de crise da Modernidade. Griffin quer aprender da experiência do nazismo lições universalizantes e atuais, não circunscrever o seu estudo em um caso historicamente datado , um “tronco morto”, uma ferida cicatrizada na memória.
O segundo seria o modo crítico de seu diálogo com as teorias dominantes no marxismo sobre o fascismo. De um lado, ele recusa entender o fascismo como um fenômeno meramente negativo e conservador diante das forças do progresso histórico ou ainda circunscritas a uma mera expressão de interesses econômicos dominantes. Para Griffin, o fascismo é modernista, inscreve-se na Modernidade, propõe um caminho alternativo para ela, compondo imagens de restauração com a proposta central de um novo futuro a partir de um recomeço. Ele é, pois, em seus próprios termos, revolucionário, mobiliza energias para uma nova utopia, faz convergir, com foco em setores classistas dominantes e setores médios que se sentem ameaçados, interesses muito diferentes.
Em terceiro lugar, ele recusa opor binariamente as dimensões nacionalistas e racionalistas do fascismo. O “nacionalismo” fascista pode se expressar de diferentes formas, inclusive em uma expressão pan-européia contra os imigrantes. Assim também o racialismo, que pode bem se adaptar em diferentes contextos neo-colonaiis ou coloniais. É um limite importante ainda dos trabalhos de Griffin uma parca reflexão sobre os novos fascismos para além dos países capitalistas centrais.
Em quarto lugar, ele busca entender o fascismo como promotor de uma “religião política”, laica mas não necessariamente em oposição a fundamentalismos religiosos. O crescimento do fascismo nos EUA, por exemplo,alimenta-se e cruza ideais da supremacia branca com fundamentalismos neopetencostais. O importante seria este caráter compreensivo: a higienização do estado, da sociedade,da família vinculam-se a um mesmo projeto orgânico.
Em quinto lugar, este trabalho conceitual permite identificar as novas formas do fascismo no pós-guerra e, ao mesmo tempo, a miríade de formas sincréticas dos fascismos contemporâneos, desde as estritas ao campo da disputa de valores até a adoção de táticas terroristas, de punks até a Front National de Le Pen, dos nacionalismos toscos até a Nova Direita européia (ENR).
Fascismo e neoliberalismo
Em um ensaio recente, apresentado no Congresso Nacional de Comunicação do PT, havíamos chamado a atenção sobre a diferença de identidade entre neoliberalismo e fascismo, assim como sobre as suas zonas de convergência e possibilidades de encontros em uma dinâmica, ao mesmo tempo, anti-democrática, anti-republicana e anti-socialista. Se o neoliberalismo propõe-se neutralizar a esquerda, em um sentido amplo, através do estreitamento e corrosão da democracia, o fascismo proporia eliminá-la por meio da violência. A ditadura Pinochet foi , de fato, o primeiro experimento neoliberal.
Mais do que isto, o neoliberalismo, em sua terceira geração, cria a ambiência para o fascismo: legitimando o discurso do ódio como parte da “liberdade de expressão”, aprofundando dinâmicas de apartação social que reclamam a execração dos que são alvo da fúria neoliberal, radicalizando as dinâmicas políticas de interdição das esquerdas e social-democratas. Uma ecologia da catástrofe: a desertificação da democracia abriria o caminho para o furacão neoliberal.
Mais recentemente, em uma antológica exposição em um seminário internacional organizado por Celso Amorim, em mesa com Noam Chomsky, Marilena Chauí deu um passo decisivo para vincar estruturalmente neoliberalismo e fascismo, a partir do campo conceitual de sua própria tradição, originada nas reflexões de Claude Lefort. Nestes termos, o neoliberalismo desinstitui a democracia ( visa eliminar o conflito na base da república e quer eliminar o regime e a dinâmica dos direitos da democracia) e, ao fazer isto, ao pretender reorganizar todas as instituições públicas em uma dinâmica empresarial e mercantil, cria o campo para o florescimento do fascismo. O programa contra esta dinâmica fascitizante seria exatamente o de reinstituir a democracia, (re) fundamentá-la em seus contratos, retornar a ordem dos conflitos à política pluralista, atualizar uma agenda de direitos.
O campo conceitual proposto por Marilena Chauí incorpora e ressignifica, portanto, toda a bibliografia internacional recente sobre a desconstrução neoliberal da democracia, dos franceses aos anglo-saxões. E dialoga certamente com a teoria sobre o fascismo de Griffin, na medida em que este em sua nova historicização deste fenômeno, entende o entre-guerras como o período de sua gênese histórica, o pós-guerra como um período de mutação e sobrevivência do fascismo, minoritário diante das dinâmicas keynesianas e do liberalismo social, o período contemporâneo de apartação e aumento das desigualdades como propício à retomada de sua audiência social.
Havíamos proposto em 2015 o conceito mais geral de contra-revolução neoliberal para designar o sentido e o programa do movimento histórico que operou o impedimento inconstitucional do mandato da presidenta Dilma Roussef. Não se tratava apenas de destruir um governo mas de desconstruir o próprio pacto republicano contido na Constituição de 1988. Este programa da contra-revolução neoliberal ganha agora na candidatura de Bolsonaro uma nova radicalização, envolvido em um programa de revolução – ouçamos Griffin – fascista! Bolsonaro está propondo ir além, em um horizonte fascista, dos limites do governo Temer e da “traição” do PSDB. É contra isto que estamos agora lutando neste segundo turno dramático – a esperança desesperada – das eleições presidenciais de 2018.
Um horizonte fascista
Como já nos alertou Dostoievsky, que a consciência do crime é o sinal de humanidade por parte de quem o cometeu, a coluna da ombudsman da Folha de S. Paulo, neste dia 14 de outubro, pergunta-se “o que é ser de extrema-direita”. Após se referir textualmente às orientações da chefia de redação do jornal, que orientou no sentido de não se referir à nenhuma candidatura como de extrema-direita nestas eleições realizadas no Brasil, ela estranhava que nas publicações mais importantes do mundo – The Economist, Financial Times, The Guardian, El País, The New York Times, The Washingotn Post, Le Monde, Clarin e La Nación, entre outras – Bolsonaro era claramente indicado como de extrema-direita mas esta caracterização não aparecia em nenhuma publicação da mídia empresarial brasileira. E, ao final, se colocava criticamente ao posicionamento do jornal.
Na verdade, para fazer justiça, a Folha de S. Paulo não apenas vetou a indicação de Bolsonaro como de extrema-direita mas um de seus colunistas mais importantes, Pablo Ortellado, em artigo no dia 25 de setembro, disse exatamente o contrário em um ensaio “Não é o que parece”. Bolsonaro não seria um fascista por não ser nacionalista mas um “soldado das guerras culturais”! Então, votar no capitão não parece tão mal assim… Para quem acompanha o Uol, é evidente que a Folha de S. Paulo faz como o PSDB: não suja as mãos mas, de fato, faz campanha pró-Bolsonaro.
A idéia sempre repetida de que Bolsonaro não é uma ameaça à democracia é funcional à sua campanha: não teria sentido, assim, uma frente democrática para impedir a sua eleição.
Foi, na verdade, o professor de filosofia da UFMG, Newton Bignotto, quem já em 2016, em ensaio na revista Cult intitulado “O fascismo no horizonte” chamou a atenção, prudencialmente e de forma equilibrada, como um mestre maquiaveliano, citando Griffin, para a ameaça crescente. Identificado como um fenômeno típico das classes médias, temerosa de perder os seus privilégios sociais na hierarquia social, o cultivo de valores fascistas era identificado antes mesmo do surgimento ascendente de Bolsonaro.
Como fenômeno tipicamente veloz, o horizonte fascista ganhou agora ares de sombria atualidade. Olhar nos seus olhos, identificar o fenômeno fascista, é fundamental para fazer frente à sua fatal sedução.
Juarez Guimarães é professor de Ciência Política da UFMG.
Artigo publicado originalmente no portal Carta Maior
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