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Um novo capítulo na reforma agrária

Em Porto Alegre, evento se abriu para a sociedade civil.

A hegemonia neoliberal dos anos 90 seqüestrou da agenda internacional os temas da reforma agrária e do desenvolvimento rural e apresentou a liberalização como a panacéia para todos os males das nações.

O ajuste estrutural significou a redução do horizonte possível – do desenvolvimento e da justiça social para o mero alívio da pobreza e da fome -, a redefinição do papel do Estado e o desmonte de estruturas e políticas públicas voltadas para a democratização do acesso à terra, o apoio à produção e ao  abastecimento alimentar. Em alguns países africanos, por exemplo, o vazio decorrente do desmonte do pouco (mas importante) que havia foi preenchido pelos programas internacionais de distribuição de alimentos, que inviabilizavam as poucas chances de manutenção de uma produção local, já duramente afetada pela redução dos preços dos produtos agrícolas por conta dos pesados subsídios bancados pelos Estados Unidos e pela União Européia.

Mas a combinação da persistência das crises econômica, ambiental e social com a força das resistências, que se espalharam e se encontraram, gerou um ambiente mais propício para a gestação de alternativas, para mexer em profundidade na própria agenda internacional. A Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRADR) é expressão desses novos ares. Foi uma iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Agrário, acolhida pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura), e ocorreu em Porto Alegre, – eterna anfitriã do Fórum Social Mundial – entre 6 e 10 de março de 2006.

A agenda da conferência foi construída a partir da idéia do caráter contemporâneo das questões envolvendo a reforma agrária e o desenvolvimento rural. Cerca de 52% da população mundial vive no meio rural (algo em torno de 3,3 bilhões de pessoas). Destas, cerca de 840 milhões vivem abaixo da linha da pobreza. Segundo dados da FAO, do total da população em estado de má nutrição, 75% vivem nas áreas rurais do planeta. Além disso, aproximadamente 634 milhões de pobres moram em terras marginais, áreas de baixa potencialidade agroecológica.

Esses números mostram que pensar uma estratégia de desenvolvimento, de geração de trabalho, de superação da pobreza e da fome em escala mundial, obrigatoriamente exige pensar uma estratégia para o desenvolvimento rural.

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Novos ares. Ganha espaço idéia de reforma agrária enquanto
democratização da estrutura fundiária.

Participação ampla
A decisão da FAO de realizá-la aqui decorreu do reconhecimento das ações do governo brasileiro para consolidar em âmbito internacional, com a centralidade necessária, a agenda do combate à fome e à pobreza, e ainda, o reconhecimento da importância da experiência em curso na reforma agrária, nas políticas de fortalecimento da agricultura familiar e das comunidades tradicionais.

Uma conferência de governos, mas que, desta vez, se abriu de forma inédita, no âmbito do sistema das Nações Unidas, à participação da sociedade civil, por meio de presença de seus e suas representantes em todas as sessões; elaboração e apresentação de um dos cinco documentos-base; ampliação do tamanho das delegações oficiais dos países de 9 para 25, para contemplar seus representantes; da realização de um fórum mundial.

No Brasil, essa participação foi ainda mais ampla. Constituiu-se um comitê responsável pela preparação brasileira composto por 37 entidades, sendo 5 órgãos federais, 2 conselhos nacionais e 25 movimentos sociais (de quilombolas, mulheres rurais, luta pela terra, sindicalismo rural, indígenas, seringueiros…) e organizações não-governamentais. Dele, saíram sugestões e orientações ao representante brasileiro na FAO; um importante documento consensual (“Contribuição Inicial do Comitê Brasileiro à CIRADR” – ver www.mda.gov.br/ciradr) e indicações para as posições a serem adotadas na Conferência. A delegação oficial brasileira será, também de forma inédita, composta majoritariamente por representantes da sociedade civil (13 em 25).

Além disso, um fórum mundial da sociedade civil, intitulado “Terra, Território e Dignidade”, ocorreu simultaneamente em Porto Alegre, contando com as mesmas condições de infra-estrutura oferecidas à conferência oficial. Organizado pelo Comitê Internacional de ONG/OSC para a Soberania Alimentar – CIP (www.foodsovereignty.org), o fórum contou com a presença de mais de 300 delegados e delegadas de todas as regiões e de todos os setores, tendo sido um espaço privilegiado para ampliar e fortalecer as redes e agendas internacionais dos movimentos, e em especial, para preparar a intervenção na CIRADR.

Depois de 27 anos da conferência anterior, abre-se uma boa oportunidade para a FAO recuperar um protagonismo perdido nos anos 90, especialmente para o Banco Mundial. Um papel renovado, por um lado, pelo novo conjunto de referências produzidas pelos diversos movimentos sociais e suas lutas, por alguns governos nacionais e por uma série de conferências internacionais que incorporaram novos parâmetros para promover o desenvolvimento das nações.

Vale destacar, entre outras, as Conferências Mundiais de Alimentação, do Desenvolvimento Sustentável e os Objetivos das Metas do Milênio. Por outro lado, um papel a ser renovado pelo balanço crítico do receituário dos organismos internacionais, que tentou deslegitimar a importância da ação redistributiva do Estado e das próprias lutas sociais, mas que apenas agravou a desigualdade social.

Novas referências
Estas novas referências possibilitam recompor um campo político e programático orientado para integrar nas suas formulações e nas suas ações o direito à terra, o direito à alimentação, a promoção da igualdade de gênero, raça e etnia, a defesa da biodiversidade, a sustentabilidade ambiental e a valorização das comunidades tradicionais. Uma compreensão que parta do reconhecimento da diversidade dos regimes de posse da terra, das modalidades de uso e gestão dos recursos naturais, e da própria diversidade de sujeitos e situações, de identidades políticas e de formas de luta.

Um desafio que não é pequeno quando se sabe que são pouquíssimos os países em que a reforma agrária e o desenvolvimento rural integram, de fato, as atuais agendas nacionais.

Um debate bastante atual versa acerca da redefinição dos horizontes das nações e o papel da reforma agrária. Há a possibilidade de um novo desenho na agenda internacional, de forma a superar uma visão anterior centrada em minimizar os efeitos inevitáveis da globalização por meio de políticas compensatórias, para a qual a liberalização comercial e as políticas de ajuste estrutural são o duro e necessário caminho para o desenvolvimento dos países do sul. Assim, ganharia espaço a visão da reforma agrária enquanto democratização da estrutura fundiária, principalmente por meio da ação redistributiva do Estado e de reconhecimento das terras e territórios tradicionalmente ocupados – e as políticas voltadas para a agricultura familiar e as comunidades tradicionais se constituem, com diferentes graus de consolidação e explicitação, em elementos fundamentais de projetos nacionais de desenvolvimento.

Uma síntese por fazer: o que os movimentos acumularam, bem como algumas experiências de governo, é muito importante para iluminar alternativas e para apresentar um contraponto à agenda neoliberal, mas ainda é pouco para superá-la.


 

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