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Uma arma na cruzada do Vaticano contra as mulheres

Lúcio Costa *

Em 1994, foi fundada a Academia para a Vida, da qual, atualmente, o cardeal Sgreccia é o presidente emérito, com o objetivo de monitorar os avanços na biomedicina e no direito que “afetem a moral cristã e o Magistério da Igreja”. Em 2005, o cardeal fundou Academia Pontifícia pela Vida. Ademais, foi o responsável pela criação do Instituto de Bioética da Faculdade de Medicina e Cirurgia da Universidade Católica de Roma bem como se lhe atribui a iniciativa de constituir outros 45 institutos de bioética católica ao redor do mundo. Em 2008 o papa Benedito XVI declarou o Ano da Bioética.

O objetivo da hierarquia católica é conferir legitimidade científica ao discurso do Vaticano frente aos temas da bioética e, em especial, àqueles que envolvem a autonomia do Ser Humano e das mulheres na tomada de decisões sobre sua vida e seu corpo.

No terreno da disputa social, o Vaticano almeja formar militantes católicos alinhados à cúria romana e aptos a impulsionarem os ditos “movimentos em defesa da vida”, verdadeiras tropas de choque do conservadorismo, com a missão de impedir a consagração dos direitos sexuais e reprodutivos. Operando a retaguarda, mesmo diante de diplomas legais restritivos, como o Código Penal da República Argentina, que prevê a interrupção não punível da gravidez apenas nos casos em que se destine a evitar danos à vida ou à saúde da mulher e face a estupro de mulher mentalmente incapaz (2), a hierarquia da Igreja Católica impulsiona a constituição de redes de profissionais da saúde que obstaculizem e impeçam a consolidação e o exercício dessas possibilidades legais.

A matéria abaixo, publicada no jornal argentino Pagina 12, dá conta de como conspira o Vaticano contra os direitos das mulheres.

(1)  O cardeal é autor do “Manual de Bioética” e de “Aborto o Ponto de Vista da Bioética”, obras que expõe a doutrina do Vaticano sobre a bioética e os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
(2)  Código Penal, art. 86 : El aborto practicado por un médico diplomado con el consentimiento de la mujer encinta, no es punible: 1º. si se ha hecho con el fin de evitar un peligro para la vida o la salud de la madre y si este peligro no puede ser evitado por otros medios; 2º. si el embarazo proviene de una violación o de un atentado al pudor cometido sobre una mujer idiota o demente. En este caso, el consentimiento de su representante legal deberá ser requerido para el aborto.
IMPEDIRÁS OS DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS

Por Mariana Carbajal
Pagina 12, em 03/01/2011

A Igreja Católica formou um exército de especialistas em bioética que trabalham em hospitais públicos, com o propósito de influir através dos comitês de bioética (3) nas decisões que dizem respeito as normas que estabelecem o inicio e o fim da vida, a reprodução e os limites da ciência. Particularmente, lhes interessa obstruir o acesso ao aborto legal, entre outras práticas sobre saúde sexual e reprodutiva, com o argumento de que é a Igreja Católica e não o Estado quem deve estabelecer as regras do que seja admissível em relação à vida dos indivíduos.

Enfermeiras formadas pela Pontifícia Universidade Católica Argentina (UCA) e da Universidade Austral, ligada a Opus Dei, alertam quando uma mulher solicita a interrupção voluntaria da gravidez com base nas hipóteses previstas em lei. A tropa se completa com médicas e médicos, outros profissionais de saúde e advogados, que são os mesmos que participam dos debates parlamentares sobre a regulamentação dos casos de aborto legal e litigam nos tribunais federais e estaduais contra o Programa Nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva bem como, judicializam os casos de aborto não punível.  É significativo que os currículos dos que se  formam nestas instituições, tenham sido avaliados pelo Estado, através de sua aprovação pela Comissão Nacional de Avaliação e Certificação Universitária (CONEAU).

O tema esta sendo investigado desde o CEIL-Piette-Conicet, dirigido por Fortunato Mallimaci, ex decano da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA) e presidente da Associação de Cientistas Sociais da Região do MERCOSUL.

Para enfrentar a influência dos especialistas em bioética que defendem os preceitos morais do Vaticano e que pretendem que os mesmos sejam impostos a toda a população, desde a Secretaria de Direitos Humanos da Nação, o médico e especialista Juan Carlos Tealdi, Diretor do Comitê de Bioética do Hospital de Clinicas, esta trabalhando na constituição de uma rede de especialistas em bioética com foco em direitos humanos. No momento, a rede conta com 76 membros que trabalham em hospitais públicos de distintas partes da Argentina.  Os participantes da rede já têm formulado uma série de consensos a serem defendidos e, entre estes o direito de acesso ao aborto legal.

A ESTRATÉGIA

“A alta formação é a estratégia que possibilita vencer concursos e ocupar postos de decisão no espaço da saúde pública”, explicou à Pagina 12 um investigador do CONICET que esta investigando os passos dos bioeticistas católicos a dois anos, mas que refere manter-se no anonimato para evitar obstáculos a sua pesquisa, uma tese de doutorado, posto que costuma participar das aulas, jornadas e seminários em que se realizam os processos de capacitação.

Pagina 12 teve acesso a algumas das conclusões preliminares de sua investigação. “Desde a academia confessional, docentes universitários, investigadores e intelectuais, formam profissionais de saúde, advogados e interessados em bioética para dotá-los das ferramentas teóricas e conceituais que lhes permitam tomar decisões em sua prática profissional”. Um dos principais interesses é que estes “interessados em bioética” integrem comitês hospitalares no sistema de saúde pública, explicou o investigador à Pagina 12.

A formação implica não somente em mestrados e especializações de pós-graduação, mas também cursos curtos em que, conforme um paper, são analisados casos de aborto, eutanásia, transplante de órgãos e reprodução assistida.

Uma das estratégias que utilizam para impedir a realização de abortos nos casos previstos em lei é a demora: postergam as decisões com a idéia de que a gravidez avance e seja cada vez mais complicada sua interrupção. Igualmente, tratam de influenciar as mulheres ou familiares que a acompanham, sobretudo nos casos de menores de idade, transmitindo a falsa idéia de quem um aborto pode por em risco a vida da mulher quando se sabe que esta é uma intervenção cirúrgica  segura – inclusive mais que um parto – se é realizada em condições adequadas.

A UCA e a Austral são as instituições encarregadas da capacitação e formação de agentes católicos especializados em bioética. Os docentes, que se consideram “mestres”  formando “discípulos” – descreve a investigação –, são geralmente filósofos e médicos que realizaram cursos de pós-graduação em universidades da Europa e dos Estados Unidos.

“Atualmente, as primeiras turmas de formados em cursos de pós-graduação em universidades confessionais locais começaram a realizar seus próprios cursos”, informou o investigador. Se caracterizam, por falar “desde a ciência”, ainda que os mova uma “missão celestial”:“eles estão convencidos de que assim irão para o Céu, acreditam que estão praticando um bem par a Humanidade”, agregou. Inclusive, recordou que numa jornada de estudos da UCA se chegou a analisar o caso de uma mulher que tinha uma gravidez de um feto com uma má formação genética em decorrência da qual morreria ao nascer. O feto, que tinha cerca de quatro meses de gestação e um quilo de peso era chamado de “paciente”.

Os cursos incluem uma forte formação em filosofia e teoria genéticas e até em história do feminismo e teoria de gênero. Em algumas jornadas, inclusive, falam de Simone de Beauvoir.

Em geral, são contra as práticas de saúde reprodutiva que impliquem em utilizar métodos anti-conceptivos que não sejam autorizados pelo Vaticano, como o DIU, as pílulas que tenham levonorgestrel – por segundo eles impedem a fixação do ovulo no útero, ainda que não existam estudos  científicos reconhecidos internacionalmente que sustentem esta crença – entre elas, a anti-concepção de emergência – a chamada “pílula do dia seguinte”. Igualmente, rechaçam o aborto legal, apesar de que, de acordo com as exceções previstas no Código Penal esteja legalizado na Argentina desde 1921 e, de que a interpretação das Cortes superiores do país contemple os casos em que a gravidez coloque em risco a vida ou a saúde da mulher, em que a gravidez decorreu de estupro, possua ou não a mulher plena capacidade mental.

Conforme a investigação levada adiante desde o CEIL-Piette, vários bioeticistas formados na linha de pensamento do Vaticano, especialmente aqueles que respondem a OPUS DEI, são chefes de serviços de Ginecologia e Obstetrícia ou de Cuidados Paliativos.

Há uma clara divisão de gênero, as mulheres “trabalham territorialmente”, são enfermeiras e médicas que identificam rapidamente os casos nos quais devem incidir. Os advogados em geral são homens e são os quem litigam contra a venda de anticonceptivos nos caos de aborto legal ou participam dos debates parlamentares. Durante os anos de 2008 e 2009, por exemplo, os advogados tiveram presença nos debates e audiências sobre a regulamentação do aborto não punível na Assembléia Legislativa da Província de Buenos Aires. Distintas vozes de agentes católicos especializados em bioética manifestaram seu rechaço ao projeto promovido por distintos blocos parlamentares da oposição, que não chegou a ser aprovado este ano ainda que já leve mais de três anos de discussão. O machismo sempre se valeu de diversas estratégias para freá-lo.

(3) Os comitês de bioética foram criados em 1996. Conforme, a legislação argentina suas decisões não tem efeito vincualtivo, mas sim orientador da prática profissional.

Tradução e notas: Lúcio Costa.

* Lúcio Costa é advogado especialista em Direito Civil.

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