Por Flávio Aguiar, na Carta Maior
Uma pessoa dos meus conhecimentos aqui na Alemanha me confessou que, eleitora fiel dos Verdes há décadas, desta vez pretendia votar na CDU, ou melhor, na chanceler Angela Merkel. Na última hora recuou, porque os Verdes estavam indo mal nas pesquisas de intenção de voto. Mas minha intuição, confirmada no noticiário da segunda-feira (23), o day after da eleição de domingo (22), foi a de que milhares de tradicionais eleitores dos Verdes não recuariam. E assim, parece, aconteceu. A chanceler, uma política extremamente habilidosa e convincente, agiu como uma esponja, puxando para si votos de quase todo o espectro político alemão.
Mas se isto representou um perigo para seus adversários, foi mortal para seu aliado, o FDP, sempre apresentado como “business friendly”, o que, traduzindo livremente, significa “amigo do mercado”. Segundo a revista Der Spiegel, citando institutos de pesquisa, Angela Merkel e sua CDU/CSU literalmente “chuparam” 2,21 milhões de votos do FDP, além de terem ganho o voto de 1,25 milhão de eleitores que tradicionalmente não votam (o voto não é obrigatório na Alemanha). Além disto o FDP perdeu 450 mil votos para o novo partido Alternative für Deutschland, AfD, definido como “anti-Europa”, defendendo que os países endividados, como Grécia, Portugal, e outros saiam da União Européia ou pelo menos da Zona do Euro e só voltem depois de terem suas economias saneadas. Como resultado, o FDP estará fora do Bundestag pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra, por não atingir a cláusula de barreira, 5% dos votos. Ficou com 4,8% (contra 14,6% em 2009). O clima em sua sede, no domingo, era de velório ou missa fúnebre de corpo presente.
Já o AfD comemorava seu resultado, embora também tenha ficado fora do Bundestag. Fundado há poucos meses, disputava pela primeira vez as eleições, e ficou com 4,7%, um resultado mais que promissor. Como definir o conservadorismo deste partido? De um lado, é como se os professores universitários que votam no PSDB, no Brasil, resolvessem fundar o próprio partido. Algo assim que misture solenidade acadêmica, retórica pomposa e um nacionalismo conservador mas algo difuso, porque não se apresenta como tal. Pelo contrário, quer se apresentar como cosmopolita e bem pensante. É bom lembrar que “nacionalismo”, aqui, para grande parte da cultura política alemã, ainda é um palavrão inaceitável. O AfD, pelas pesquisas publicadas na segunda, tomou votos de todo mundo, até da Linke (360 mil). Da CDU, tomou 300 mil.
O SPD social-democrata tinha e não tinha o que comemorar. Melhorou seu resultado, indo de 23% na eleição de 2009 para 25,7%. Estes números lembram o que aconteceu com o FDP este ano. O SPD, formando o que se chama “Grande Coalizão” com a CDU/CSU, no primeiro governo de Merkel, definhou. Mas isto foi insuficiente, para um partido que aspirava chegar ao governo com os Verdes, batendo as coligações de Merkel. Agora o SPD está diante de um dilema: integrar ou não um novo governo de Merkel, repetindo a “Grande Coalizão” e arriscando definhar de novo diante da esponja Angela Merkel. Se integrar, poderá ter um poderoso instrumento de barganha, porque Merkel, a rigor, precisa formar uma coalizão. A CDU/CSU ficou com 311 cadeiras no Bundestag, contra 319 das oposições desunidas (192 para o SPD, 64 para a Linke e 63 para os Verdes). Para a chanceler, é muito arriscado fazer um governo “puro sangue”, coisa que não acontece na Alemanha desde os tempos de Konrad Adenauer. Quanto ao SPD, poderá cobrar caro pela coalizão, pedindo algo como o Ministério de Relações Exteriores ou até o das Finanças (este será mais difícil) e, certamente, a vice-chancelaria. Mas como já se disse, a coalizão poderá sair-lhe caro, mais uma vez.
A Linke caiu na votação, de 11,9% em 2009 para 8,6% este ano. Chegou até a perder votos para a CDU/CSU (120 mil). Ainda assim, o clima em sua sede era de moderada comemoração. Primeiro porque o partido enfrentou momentos difíceis no passado recente. Um de seus principais líderes, Oskar Lafontaine, chegou a anunciar que se retiraria da política por motivos de saúde. Chegou-se a pensar que a Linke poderia implodir. Mas o partido conseguiu sobreviver, com a afirmação da liderança de Sahra Wagenknecht, que vai ocupando o espaço aberto mas não abandonado por Lafontaine, ao lado do candidato a chanceler, Gregor Gysi. Conseguiram manter redutos importantes, como em Berlim, com 19% da votação. Além disso, com o fracasso, visto a seguir, dos Verdes, a Linke tornou-se a terceira força no Parlamento. Isto vai ajudar o partido a furar uma certa “invisibilidade” que parte da mídia lhe dedica. Por outro lado, esta maior visibilidade vai expor mais suas tensões internas.
Para os Verdes o resultado foi péssimo. Caíram de 10,7% para 8,4%. Perderam 550 mil votos para o SPD e 420 mil para a CDU/CSU. Ficaram em quarto lugar, atrás, ainda que por poucos pontos, da Linke. Teriam a opção – que pode ser suicida – de se oferecer para compor o governo de Merkel, mas isto parece altamente improvável, senão impossível. O que aconteceu? Em primeiro lugar, a campanha Verde foi muito fraca, sem conseguir definir bandeiras nítidas. Em segundo lugar, porque mais uma vez a “esponja” tomou-lhes uma das suas principais bandeiras, a luta contra a utilização de usinas nucleares para produção de energia. Quando estavam no governo com o SPD, os Verdes chegaram a aceitar o envio de tropas alemãs para o Afeganistão, em troca do compromisso de fecharem-se as usinas até 2018. Quando chegou ao governo, com o FDP, Merkel quis recuar na decisão. Mas aí aconteceu Fukushima, e na sequência Merkel constriuiu um grande acordão para fechá-las até 2021. Isto foi um tiro no ouvido para os Verdes, que já vinham perdendo pontos devido à ruptura com sua tradição pacifista. Outros fatores importantes foram a exposição de suas disputas internas (coisa de que a Linke conseguiu escapar), a falta de renovação de seus quadros e uma acusação exposta insistentemente na mídia de que no passado teriam favorecido “o sexo com e entre crianças”. Traduzindo para hoje em dia, isto assumiu uma conotação de pedofilia e exibicionismo. Claro: o contexto era outro, a discussão era outra, mas como sóe acontercer nestes casos, até provar-se de que tromba de elefante não é tomada, o leite se derrama e a reputação se perde.
Somando e diminuindo, podem-se afirmar, com cautela, os seguintes pontos:
1) Caso o SPD decida integrar o governo – e Merkel aceite – o resultado poderá ser ruim para… David Cameron, do outro lado do Canal da Mancha. Pressionado pela sua direita, Cameron quer renegociar a repartição de poderes com a União Européia. Merkel, com o FDP a tiracolo, vinha manifestando certo aceite desta renegociação. Agora, com o SPD na cadeira ao lado, isto ficará mais difícil, com a persistente política pró-européia dos social-democratas.
2) Mesmo que o SPD integre o governo, não haverá grandes, talvez nem mesmo pequenas mudanças nas políticas da Alemanha e do Banco Central Europeu, nem da Comissão Européia em relação aos “planos de austeridade” ora em curso. Muito provavelmente Jens Weidmann continuará sendo o diretor-presidente do Banco Central Alemão e, com seus 18% de votos, continuará influenciando basicamente, com seu ideário fortemente neo-liberal, as políticas do BCE, ainda que este, nos últimos tempos, tenha demonstrado maior independência em relação à Alemanha. Pleiteará o SPD o cargo, caso integre o governo? Não se pode ainda dizer, mas mesmo que peiteie, não haverá mudança de escola numa nova gestão.
3) Ainda caso o SPD venha a integrar o novo governo de Merkel, haverá uma maior aproximação com a França de François Hollande.
4) Último comentário: quais as razões do sucesso pessoal de Merkel? Bom, uma delas certamente é sua habilidade de isolar adversários, e também, é bom não esquecer devido ao caso do FDP, de enredar aliados em sua teia. Mas há uma outra razão, mais profunda. Merkel tem um estilo extremamente sóbrio de proceder e até de vestir-se. Ela encarna decididamente um ideal identitário da cultura social e política alemã. Desde muito tempo, Merkel é a primeira figura política alemã de grande presença e reconhecimento internacionais. Talvez desde os tempos mesmo de Adenauer e Willy Brandt. Helmut Kohl foi o primeiro-ministro da queda do Muro e da reunificação, mas nem ele nem Gehrard Schröder, o social-democrata que veio depois, eram figuras internacionalmente carismáticas. Merkel o é, e paradoxalmente, por encarnar o anti-carisma. Ela é a líder sem sex-appeal, sem a força aparente de qualquer sedução. Por isso mesmo ele parece continuamente “casada com a Alemanha”, ela personifica este ideal identitário alemão que implica também uma forma de cruzada continental, numa afirmação, sempre discreta, mas muito persistente, de que “o que é bom para a Alemanha é bom para a Europa”. Isto significa remoldar a cena européia, afastando-a do antigo estado do bem estar social, visto como perdulário e dissipador, e aproximando-a dos ideais de poupança e moderação nas contas públicas, como extensão das contas privadas, a cortina perfeita para recobrir, com o manto probo da respeitabilidade, a orgia financeira em que se transformaram vastos setores da economia europeia e mundial.
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