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Uma nova conjuntura no Brasil

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Fotos: Ana Maria Ribeiro

UMA NOVA CONJUNTURA NO BRASIL

1. Apresentação

A Democracia Socialista, tendência interna do PT, reuniu-se no Rio de Janeiro, em 22 de junho, em uma plenária que contou com a participação de militantes que atuam conosco na Mensagem ao Partido, na Kizomba e na CSD, para debater os recentes acontecimentos no Brasil e no estado. O texto que apresentamos é fruto da ampla e profunda discussão nesse encontro. Ressalvamos que em função das rápidas mudanças que vêem ocorrendo de cenários, tanto em plano nacional como estadual, é necessário um debate permanente para atualizarmos, periodicamente, essa inicial elaboração política. A discussão aqui exposta visa compreender os novos sujeitos que entraram em cena na conjuntura política, suas razões e motivos de indignação, que desencadearam uma explosão de manifestações contestatórias por todo Brasil. E visa analisar a disputa que se abre na luta de classes no país, assim como apontar a necessidade de mudanças no governo e em seu principal partido de sustentação, o PT, para um desfecho satisfatório desse processo.

Após a plenária, mais precisamente na última segunda-feira, dia 24 de junho, a presidenta Dilma Roussef, em pronunciamento histórico, alargou as possibilidades da luta política ao anunciar, entre outras medidas, o desejo de realizar um plebiscito para a realização de uma Constituinte Exclusiva para tratar da Reforma Política, colocando no centro da pauta a possibilidade de mudanças profundas na organização do sistema político-eleitoral brasileiro, inclusive através da ampliação de formas de participação popular. As medidas anunciadas não foram, obviamente, debatidas na plenária, mas dialogam com a crítica presente no texto e, em larga medida, legitimam a avaliação apresentada. No nosso entendimento, esse quadro reforça a orientação tática definida pela plenária, ou seja, a ocupação das ruas e praças como palco privilegiado da disputa de rumos do país.

Realizamos um bom debate e gostaríamos de dividir essas conclusões iniciais com toda a esquerda social com a qual a militância da DS convive no cotidiano das lutas estudantis, sindicais e nos movimentos sociais, esquerda essa mais ampla que o PT.

2. Novos atores entram em cena

A multidão que ocupou as ruas tem um rosto. É composta fundamentalmente de uma juventude entre 14 e 29 anos, em larga medida inserida no mundo do trabalho; possuem acesso à educação formal, sendo que, pelo critério da renda familiar, a grande maioria pertence às classes médias. Misturam-se, no entanto, jovens da primeira geração familiar que ingressa no ensino superior com uma expressiva parcela oriunda de famílias com capital cultural e/ou econômico mais elevado. Parte expressiva teve, nos recentes atos, sua primeira experiência de ação política, e conheceu o PT após nossa chegada ao governo federal.

Para este setor – que não viveu a resistência ao neoliberalismo, e não é alvo das políticas de transferência de renda desse governo – apesar de beneficiado pela expansão do ensino médio técnico e do ensino superior – a imagem mais forte é a do “Mensalão” e da política de alianças com Renan, Sarney e Maluf, no plano nacional, e com o PMDB de Cabral e Paes no RJ. O PT cometeu equívocos, foi duramente atacado pela mídia e pela oposição, condenado em um julgamento polêmico e desigual e perdeu a batalha na opinião pública (e não só na publicada) e, na defensiva, não soube dar respostas que reforçassem a idéia de um Estado democrático e republicano. Ao mesmo tempo, se burocratizou muito, limitou seu horizonte às possibilidades dentro de uma correlação de forças adversa, sem a menor iniciativa para alterá-la, afastando-se dos movimentos reais de conteúdo progressista e contribuindo muito pouco para o alargamento dos horizontes da própria ação institucional.

A rejeição aos partidos relaciona-se com uma crítica difusa à política “tradicional”. Parte muito expressiva das manifestações tem as seguintes características:  articulam-se em rede, possuem agendas políticas descentralizadas, negam a hierarquia e colocam em xeque todas as representações políticas, sejam elas partidárias, de entidades históricas do movimento social ou de governos. Pode-se dizer que existe um questionamento generalizado à política, de expressão mais radical do que o antipartidarismo presente em outros momentos históricos, como o Fora Collor.

Não é desprezível a presença da direita, não somente a infiltrada com o objetivo de acirrar conflitos, mas a que tem organicidade ideológica e capacidade de expressão pública. Essas expressões orgânicas da direita, aliás, sempre existiram e disputaram conosco. Participaram da reconstrução da UNE, em 1979, quando chegaram a apresentar chapa na primeira eleição direta da entidade, sendo que dirigiam a entidade geral estudantil no Rio Grande do Sul; tinham forte presença no sudeste em faculdades símbolo, como a Mackenzie, em São Paulo, e a Gama Filho, no Rio de Janeiro. Nos processos em curso, ela disputa a agenda, dialoga com a subjetividade do movimento, mas não se configura como setor hegemônico. A mesma multidão que vaia os partidos e, genericamente, brada contra a corrupção, manifesta-se contra a mídia e exige serviços públicos de qualidade.

Não há como falar em um único ato no Rio. A manifestação na Presidente Vargas pode ser descrita, por analogia, como um imenso mural do Facebook de carne e osso. Cada perfil, uma postagem, ou cada indivíduo, um cartaz. Multiplicidade de pautas, expectativas, níveis de consciência, ideologias e subjetividades. Assim como seria uma precipitação infantil enxergar uma “primavera brasileira” com possibilidades de ruptura revolucionária, enxergar uma conspiração golpista em cada esquina e jogar centenas de milhares de pessoas na vala comum do fascismo é muito equivocado.

Cabe maior precisão sobre a crescente participação nos atos de um setor oriundo das camadas mais pobres, inserido de forma precária no mundo do trabalho e excluído do consumo e da lógica das cidades dos mega eventos, cuja ação política é catártica. Parece-nos preconceituoso reduzir seus comportamentos mais violentos a meros atos de vandalismo.

3. A disputa em curso

Todos sabíamos que o assunto não se restringia ao aumento das passagens, indo além inclusive da pauta de transporte.  Essa juventude sente-se oprimida pelo modelo de desenvolvimento das grandes cidades: crescente privatização dos espaços públicos, negação de direitos, gastos exorbitantes com a realização de megaeventos cujo legado não é usufruído pela imensa maioria da população, controle das formas de produção e reprodução da vida. Logo, estamos falando de uma pauta macro profundamente articulada com a micropolítica, conectadas pela ideia de “viver a rua”, ou seja, da reapropriação do espaço público das cidades. Essas ações objetivas embutem muito simbolismo. Esse caldeirão efervescente e em disputa permanente é o motor dos processos que chacoalharam a agenda política das últimas semanas. É preciso compreendê-lo para organizar uma intervenção capaz de dialogar e influenciar os rumos deste amplo movimento.

A pauta apresentada pela direita tem como centro a corrupção na política, apresentada de forma genérica, sem questionar os lobbies ilícitos do capital privado e a forma como este se entranha nas instituições republicanas. O alvo é o governo Dilma. Não é uma tentativa de golpe stricto sensu, mas uma campanha de desgaste gradual, para favorecer a candidatura do PSDB. Como subproduto, fortalece também o híbrido novo partido capitaneado por Marina Silva, cujo discurso de negação da política “tradicional” tem mais capacidade de diálogo com essa juventude do que a direita orgânica. A direita age visando derrotar o PT nas eleições de 2014. O roteiro é traçado pela Rede Globo, ao vivo. Os alvos materiais do vandalismo são o Congresso, o Palácio do Planalto e o Itamaraty. O símbolo da República, livre das depredações, é o Judiciário.

Com o editorial do dia 22, no jornal O Globo, esta organização sinaliza para um recuo momentâneo que precisamos ainda entender melhor, mas, claramente, é um recuo, mesmo que tático. Provavelmente detectaram que as manifestações estariam tomando um caminho perigoso, extrapolando um possível controle. Outra preocupação que pesou foi o risco dos questionamentos à Copa do Mundo colocarem sua realização em risco, evento no qual a Globo detêm inúmeros negócios próprios e em parceria com outros grupos econômicos.

A disputa está aberta nessa conjuntura e ela se dará nas ruas. Não acabará rapidamente, mesmo que diminuam o tamanho das manifestações, e novos atores deverão entrar em cena. Os movimentos sociais tradicionais, em especial o movimento sindical, podem desempenhar um papel decisivo na disputa geral, articulando suas agendas com a dinâmica viva das ruas.

O modelo do governo Dilma, pautado no neodesenvolvimentismo e em um gerencialismo centralizador, dá claros sinais de esgotamento. A tecnocracia, esvaziada de política, demonstrou-se ineficiente. O Governo deve mudar a pauta e a agenda de forma radical e urgente. Novas políticas públicas se fazem necessárias para satisfazer uma nova demanda social, além de ampliação de mecanismos de participação popular, não apenas em nível federal, mas também nas esferas subnacionais da federação. O desfecho em aberto só terá suas potencialidades aproveitadas pela esquerda se a agenda do governo mostrar-se aberta a novas possibilidades de protagonismo cidadão na construção das suas ações. O pronunciamento da presidenta na última sexta-feira, 21 de junho, ensaiou passos nesta direção, o que foi reforçado pelo discurso do dia 24 de junho.

Na direção oposta, no entanto, comportaram-se os ministros da Justiça, Zé Eduardo Cardozo e das Comunicações, Paulo Bernardo, e o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad.  O primeiro, ignorando a forma criminosa como as polícias militares reprimiram as manifestações, veio a público para oferecer a Força Nacional de Segurança, legitimando a substituição do diálogo pela violência; o segundo, no dia seguinte ao pronunciamento da presidenta Dilma, ilustrando as páginas amarelas da Veja, colocando-se mais uma vez como um porta-voz dos interesses empresariais do setor e condenando a pauta da democratização das comunicações. Haddad, por sua vez, perdeu a oportunidade de revogar o aumento da tarifa de ônibus na reunião com o MPL para fazê-lo, com ar de contrariedade, ao lado do governador de São Paulo no dia seguinte. Essas atitudes reforçam a sensação generalizada de ver a política institucional-partidária como sendo a mesma coisa. Cabe destaque negativo também para a nota pública do presidente nacional do Partido, Rui Falcão, anunciando que o PT e seus militantes não tinham medo das ruas e iriam engrossar os atos de quinta com suas bandeiras e protagonizar uma onda vermelha. Além da natureza arrogante da fala, na contramão dos valores afirmados nas ruas, desconsidera o conjunto da militância petista que, antes do chamado “oficial”, já participava ativamente das manifestações.

Estamos ainda num momento de construção de uma plataforma, enxuta e precisa, que precisa ser respaldada pela maioria que participa ativamente dos atos e construir pontes entre a esquerda que está no governo e a que faz  oposição. É fundamental cravar no peito do movimento a bandeira da democratização das comunicações e o alvo concreto são as organizações Globo. O “fora Rede Globo” e suas variações foram palavras de ordem muito presentes em todas as manifestações. A reforma política também é uma pauta central. As políticas sociais, como saúde, educação e transporte público já entraram fortes e podem se fortalecer ainda mais. A proposta de 100% dos royalties para educação parece ser uma boa resposta. É preciso articular alguma proposta que dê conta do necessário combate à corrupção. Uma auditoria nas contas da Copa será inevitavelmente incorporada, dados os indícios de fraudes de proporções gigantescas.

4. Sobre táticas para o período

A esquerda deve disputar a hegemonia do conteúdo dos atos.  O objetivo é alterar a agenda do governo, aprofundar reformas estruturais e avançar em ferramentas de democracia direta.

Na grande maioria das cidades onde se realizam esses atos, ficou clara a rejeição aos partidos e entidades de sustentação social do governo, como a CUT e a UNE. Não é hora de perder tempo com lutas que nos distanciarão das massas, por mais justas que sejam. Elas terão o tempo certo de serem recolocadas com a devida intensidade. Por mais justo que seja o direito democrático das organizações empunharem suas bandeiras – e defendemos, por óbvio, que as organizações apresentem-se nos atos como desejarem – consideramos esta uma questão secundária. Não será “na marra” que iremos reconstruir a legitimidade das nossas organizações junto à multidão. Também compreendemos que é um equívoco grave puxar manifestações apartadas dessas, nos moldes de um “ato das esquerdas em defesa dos partidos”. Isso nos isolará de vez desse setor, bloqueando as possibilidades de interação e, pior ainda, mostrará a nossa fragilidade momentânea. Por outro lado, as manifestações ensaiaram alguma possibilidade de atuação conjunta do campo democrático e popular, do conjunto das esquerdas, seja contra os discursos e práticas autoritárias, seja a favor das políticas de bem-estar e de ampliação da democracia. Eventuais ações conjuntas que não impliquem em distanciamento das massas poderão ser encaminhadas, desde que ampliem a unidade das forças da revolução democrática.

A esquerda precisa compreender e utilizar melhor as redes sociais de forma coletiva. Parte significativa dos debates e da articulação dos processos se dá no ambiente virtual, e a direita tem nos derrotado sistematicamente nessa arena. Nas eleições presidenciais de 2010 não conseguimos fazer frente aos ataques sistemáticos, e nas últimas semanas as esquerdas ficaram atônitas com a blitzkrieg conservadora nas redes, o que influenciou em larga medida os acontecimentos dos atos do dia 20 de junho. Devemos entender que estas redes sociais são expressões de novas sociabilidades que se configuram no mundo concreto. Atuar nas redes sociais é entender também que novos paradigmas de sociabilidade abriram-se a partir das novas formas de organização do processo produtivo e do trabalho.

Na questão partidária, a partir do nosso campo político interno do PT, a Mensagem ao Partido, devemos reorganizar uma ação petista mais ampla, em conjunto com outros setores que manifestam uma análise semelhante à nossa e estão envolvidos com as lutas em curso, e dialogar também com outros segmentos partidários sensíveis ao momento atual, mas que vinham se acomodando frente a um perfil burocratizante em plena evolução. É preciso demarcar com os setores do partido que abdicaram da disputa política e manifestam verdadeira fobia das ruas, estigmatizando qualquer pressão popular como uma tentativa de desestabilizar o nosso governo. No momento, é mais proveitoso iniciar conversas com outras forças de esquerda, sem excluir um único setor, reforçando as plenárias unificadas do movimento e construindo pontes, em especial, com o PCdoB, o MST e o Levante, e também com os demais partidos de esquerda. Também devemos criticar duramente aqueles que acreditam que não há fascistas e direita organizada nestes atos. Precisamos dessa análise para disputar o conteúdo das mobilizações. Dizer que eles não são maioria não significa dizer que eles não existam. Inclusive, a presença da direita torna a questão de segurança da nossa militância nos atos um objeto freqüente de preocupação.

Resumindo, devemos manter e intensificar nossa presença nos atos com a preocupação necessária de disputar seu conteúdo e sua pauta. Não podemos descartar a possibilidade de saída das manifestações, caso elas ganhem um contorno clara e hegemonicamente de direita, o que ainda não está dado. No momento, o principal é a participação ativa na construção dos rumos futuros deste novo sujeito coletivo.

A pauta mudou e terá conseqüências para o PED do PT e nas eleições de 2014. Ganha importância no debate interno do partido a candidatura à presidência nacional do companheiro Paulo Teixeira. Mesmo para uma boa síntese partidária, será fundamental um amplo debate político, no qual a esquerda partidária precisará de um porta-voz à altura dos desafios colocados. Por outro lado, a elaboração mais ampla sobre a revolução democrática, nossa plataforma básica, deverá ser atualizada frente aos novos acontecimentos.

Vários aspectos deverão ser permanentemente atualizados, principalmente a política de alianças do PT. Não há como radicalizar nas ruas sem que toda essa mudança seja incorporada ao nosso debate mais geral. Parece-nos enterrada de vez a tentativa de alguns setores do PT contra a candidatura Lindbergh ao governo do estado. Cabral virou o principal alvo aqui no Rio. Cada vez é mais explícita a contradição da presença da esquerda nos governos Cabral e Paes. Não há saída que aponte pra uma reconstrução lenta da legitimidade do PT neste processo sem que alternativas institucionais sejam criadas, com ampliação do diálogo e novos espaços de participação direta, além da reconstrução do protagonismo político com uma identidade socialista e democrática mais nítida.

Coordenação Estadual da Democracia Socialista – tendência interna do Partido dos Trabalhadores. 25 de junho de 2013.

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