Leia artigo de Flávio Aguiar, ex-docente da Universidade de São Paulo, sobre a ocupação da universidade pela Polícia Militarm a pedido da reitora, para enfrentar a greve que já dura semanas. “Não enveredar pela via da negociação equivale a ceder o espaço a quem atua na base da pedrada, ou então daqueles que, ocultos por trás da fumaça das bombas de gás lacrimogênio, atuam na base do ‘jogue a primeira pedra, por favor, que eu mando a tropa de choque’.”
Flávio Aguiar *
A reportagem da revista Carta Capital desta semana, mais a visão de vídeos disponíveis no Youtube, confirmaram as suposições deste colunista da Carta Maior de que há uma programação do confronto por detrás do lamentável episódio na USP, na semana passada, em que um batalhão da PM caçou estudantes, funcionários e professores dentro do campus do Butantã.
Vendo-se os vídeos, e lendo a declaração do Comandante do 4o. Batalhão da PM, Carlos Longo, chega-se à seguinte reconstituição dos fatos, que, de resto, apenas confirmam inúmeros outros que este colunista, na qualidade de dirigente sindical uspiano, presenciou e nos quais teve de intervir – sempre, de acordo com a minha filosofia pessoal e a da agremiação que eu então representava – na direção das negociações.
Os manifestantes dirigem-se aos portões da USP, ou adjacências. Nos vídeos, vê-se que alguns inclusive jogam flores aos pés dos policias que lá estão para guardarem os referidos portões. Outros fazem manifestações teatrais. De repente, junto dos estudantes, aparece uma fila de poucos PMs, desarmados (ainda bem!), encurralados junto a um muro, literalmente cercados pelos manifestantes.
Daí seguindo-se as declarações do Comandante (e não tenho porque não acreditar nelas, devo dizer), esses PMs são agredidos por pedradas (além de xingamentos, o que, imagino, deve chocar sobremaneira os ouvidos desses policiais desacostumados a esse tratamento…). Então é necessário socorre-los. Entra em ação a cavalaria a pé, ou seja, a tropa de choque, com seu cortejo de cassetetes, bombas, etc. Dão –lhe apoio cortejos de cavalaria motorizada (carros, motos) e aérea (helicópteros em vôos rasantes). Está em ação o primado das armas sobre a negociação. Depois, temos o silêncio da reitora sobre a agressão à FFLCH e a justificativa do governador Serra à ação da polícia, dizendo que ela cumpriu a lei e não cometeu excessos.
Esse é o script de uma crônica anunciada, a de enterrar as negociações que, mesmo que agora ocorram, estarão estigmatizadas como sendo a sutura de uma hemorragia.
Diante desse círculo viciado e vicioso, podem colegas nossos e outros analistas se debruçarem sobre a emocionante questão sobre o que veio primeiro, se o ovo ou a galinha, se o que começa a violência é a depredação de prédios por pseudo-revolucionários que usam dos nossos movimentos para angariar adeptos (esse é o objetivo político dessas ações “ousadas”) ou as seguidas intervenções armadas da polícia militar que degeneram em pancadarias vergonhosas para as instituições e a democracia.
Bom, o mal está feito, e agora devemos perguntar não só o que ele nos fez, mas o que podemos fazer com ele, ou a partir dele.
Pedir a renúncia da reitora não adianta nada. Com todo o respeito pela decisão da assembléia da Adusp, que dirigi tantas vezes, se eu estivesse lá teria encaminhado contra essa proposta. No meio desse tiroteio substituir a reitora e jogar no meio da fogueira o vice-reitor (porque é o que aconteceria) equivale a deixar a interlocução sem voz, o que não adianta nada para ninguém. Um reitor que assume tem uma longa fila de obrigações a cumprir e a executar – até as protocolares – e que querer impor isso em plena batalha de Stalingrado em que a USP se transformou, é se suicidar com vários tiros em vários pés, inclusive os próprios. Agora cabe exigir da reitora que está no epicentro da crise que aja no sentido de sair da crise. Depois veremos o que cumpre cobrar e descortinar como caminho futuro. Além disso, pedir agora a renúncia da reitora só reforça o lado mais conservador da USP na próxima escolha de reitor – que, quer queiramos ou não, gostemos ou não, vai ocorrer de acordo com as regras (pouco democráticas, é verdade) do estatuto universitário e da lei paulista.
Precisamos de interlocução – de todos os lados da questão, essa é a alternativa sem outra alternativa viável. Como vamos fazer? É necessário negociar a pauta salarial e de reivindicações da data base dos trabalhadores da USP, o que emoldura a crise e aponta para a solução.
Não que se trate de substituir agora cassetetes e pedradas de provocadores por propostas de índices salariais, ou outras propostas relativas à pauta. Mas trata-se sim de reconhecer que depois dessa ruptura restabelecer o canal, a interface, a realidade da negociação é o que conta e o que é decisivo para suturá-la.
Porque não enveredar por essa via equivale a ceder o espaço a quem atua na base da pedrada, ou então daqueles que, ocultos por trás da fumaça das bombas de gás lacrimogênio, atuam na base do “jogue a primeira pedra, por favor, que eu mando a tropa de choque”. Esse é o script da violência.
* Flávio Aguiar foi docente do departamento de Letras na Universidade de São Paulo, e é correspondente internacional da Carta Maior, onde este artigo foi publicado originalmente.
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