Em março, chegará a todos estados do Brasil o número Zero da nova revista impressa da Democracia Socialista. Queremos escolher um nome que melhor represente o compromisso histórico da nossa militância com a democracia, o socialismo e as grandes lutas da classe trabalhadora. Um nome que sintetize os nossos mais caros ideais de igualdade social, de defesa do meio ambiente, do feminismo, da juventude, da igualdade racial, da livre orientação sexual, de participação popular.
Para isso o Grupo de Trabalho Nacional conta com a sua opinião. Criamos um email – democraciasocialistapt@gmail.com – especialmente para receber sugestões da militância. A sugestão pode ser enviada também pelo Facebook. O prazo para enviar propostas de nomes encerra no dia 1º de março. Uma dica: antes de enviar a sugestão verifique nos portais de busca e pesquisa se já existe publicação com o nome que você pensou. Estamos trabalhando para construir uma grande revista e contamos com a sua participação para que ela tenha um nome a altura do seu conteúdo.
Leia abaixo o texto de apresentação da revista.
Revista da Democracia Socialista
A revista da Democracia Socialista pretende organizar um debate programático sobre os rumos da Revolução Brasileira. Neste sentido, insere-se numa trajetória e busca resgatar a tradição marxista e revolucionária da qual nos reivindicamos.
Nestes últimos dez anos ousamos dizer que tentamos produzir uma teoria revolucionária em tempos não revolucionários. Partimos de uma tradição onde o conceito de disputa do poder (e não só “pelo poder”) pressupõe a construção de partidos socialistas revolucionários. Mantemos a firme convicção que para destruir o velho sistema é necessário conquistar o poder político, em um processo democrático em que a natureza mesma desse poder seja colocada em questão.
Para desenvolver uma teoria revolucionária é preciso ter um terreno social. No nosso caso, esse terreno é, sobretudo, a experiência brasileira, sem isolá-la de suas relações com outras. É possível buscar universalidades a partir de uma experiência concreta e, ao mesmo tempo, buscar contrapontos e aproximações com o debate internacionalista. Nossa contribuição funda-se na compreensão de que não há teoria sem prática política, praxis, que precisa partir de acontecimentos históricos e da inserção ativa neles. Essa visão não é exclusivista: felizmente, desde a nossa origem, não nos consideramos os únicos a desenvolver o marxismo, nem no Brasil e nem, muito menos, no mundo.
O primeiro ponto de uma contribuição a uma teoria revolucionária, a partir do Brasil, é a concepção de partido, a construção do PT como partido socialista e revolucionário. Essa grande experiência nos fez nascer e crescer, nos mostrou impasses e temos desafios a responder em torno a ela. Desenvolvemos uma concepção, ao longo dos anos de fundação e implantação do PT, de que a construção de um partido revolucionário no Brasil basear-se-ia em um partido de classe e de massas e na construção simultânea de uma corrente marxista-revolucionária no seu interior. Hoje temos o desafio de enfrentar impasses e explorar potencialidades dessa construção teórica-prática
A conquista da Presidência da República em 2002 nos apresentou novos dilemas, mas em meio a novas potencialidades. A recomposição econômica e social da classe trabalhadora e os vínculos dela com o PT, manifestados sobretudo pela via eleitoral, é o fator objetivo mais favorável à concepção partidária que defendemos.
A crise do neoliberalismo reacende centelhas e atiça a nossa esperança revolucionária. O pensamento único ruiu, a globalização encalhou. Entendemos a abertura de um novo período que permite retomar ousadias utópicas. Permite propor a luta pela hegemonia do socialismo democrático nas transformações em curso no país, na esquerda e no PT.
Sendo o PT dirigente do governo brasileiro, exige pensar a transformação do Brasil, o que chamamos de revolução democrática. A questão fundamental é combinar reformas com a formação dos sujeitos revolucionários da transformação, vale dizer, com a hegemonia socialista-democrática. Nossa revista deve evidenciar e denunciar o estreitamento conservador da democracia política brasileira em contradição profunda com a ampliação da base social de uma democracia real em potencial. A luta pelo aprofundamento da democracia e pela democracia direta e participativa é orientadora do que fazemos. E sem ela é impossível propor superações dos limites atuais. A democracia – socialista em sua perspectiva – organiza nossa abordagem face à sociedade, ao desenvolvimento econômico, ao fortalecimento social da classe trabalhadora, à disputa dos setores médios, à construção partidária. A construção dos sujeitos da revolução social exige o combate pela democracia direta e participativa. Democracia direta e participativa liga-se à luta pela igualdade, questiona mudanças estanques e apenas indiretas, questiona a hipótese de uma revolução democrática passiva.
Isso já delineia um amplo campo de trabalho para a revista.
Ele também se relaciona com contrapontos críticos necessários a uma despartidarização que corroeu nosso meio. O PT passou a ser considerado por muitos uma espécie de instrumento útil, incapaz de ser sujeito. Política sem partido, governo sem partido, movimento sem partido, programa sem partido, revolução democrática sem partido: essas formas diversas de redução do papel histórico do PT devem ser combatidas pela nossa revista.
Uma repartidarização socialista-democrática – e petista – é fundamental e nossa revista deve estar a esse serviço. Ela tem implicações internas de reconstrução da identidade do nosso partido, como viemos salientando em nossas conferências. Uma conquista fundamental dessa luta – o novo Estatuto do PT – deve merecer toda nossa atenção e esforço de transformar em prática uma nova política organizativa.
Socialismo e democracia são marcas fundadoras da nossa corrente, Democracia Socialista, que precisa elevar-se, ela mesma, ao potencial programático daquilo que historicamente propõe. O patamar comum de ativismo em torno a uma tradição mantida pela coesão programática e pela democracia interna tem sido exuberante, mas é insuficiente. Uma corrente marxista-revolucionária deve buscar um nível de consciência no limiar do horizonte ideológico do programa. A revista deve, portanto, ser um instrumento para a própria formação da corrente.
Uma revista marxista para a revolução democrática
Ao aprovar em sua X Conferência Nacional “diretrizes de um programa para a revolução democrática”, a tendência Democracia Socialista do PT propôs para si e em diálogo com o Partido dos Trabalhadores um novo e promissor período de possibilidade de fusão entre o marxismo revolucionário e a cultura do partido.
As teses aprovadas na X Conferência Nacional da DS identificaram um novo período da luta de classes a partir de quatro vitórias estratégicas estabelecidas contra o neoliberalismo no país e da crise internacional, sem perspectivas de solução no horizonte, do neoliberalismo, como expressão política de um período de globalização.
A partir deste diagnóstico, as teses propuseram o esforço histórico da construção do programa da revolução democrática, entendida como um período de superação dos impasses estruturais capitalistas e dos limites liberais da democratização do Estado brasileiro, diagnosticados após os grandes anos de transformação do Brasil a partir dos governos Lula. Propunha diretrizes exatamente por conceber que a elaboração do programa da revolução democrática deveria ser fruto da própria práxis transformadora dos trabalhadores e do povo brasileiro, das mulheres e dos negros, com o protagonismo do PT e das forças de esquerda em seu pluralismo de tradições e experiências.
Em seu item 14, as teses da X conferência conclamavam: “Um programa da revolução democrática dialoga e propõe a construir um novo ascenso dos movimentos sociais, um novo protagonismo da cidadania ativa, uma nova consciência cidadã afim aos valores do socialismo democrático no Brasil. Este novo e mais alto ascenso reclama um novo ethos socialista democrático do PT e dos partidos da esquerda brasileira, dos próprios movimentos sociais que estruturam este bloco histórico. É este novo bloco histórico em formação que pode sustentar um processo de revolução democrática no Brasil”.
É com este novo ascenso dos valores do socialismo democrático que a fundação pela Democracia Socialista de uma revista marxista revolucionária quer se relacionar, como espaço de diálogo e criação, de teoria e prática, de tradição revolucionária e abertura para os novos desafios do século XXI, de reflexão sobre a experiência nacional e interlocução com as grandes experiências internacionais de emancipação em curso, em particular as latino-americanas.
Se os tempos de cólera do neoliberalismo foram anos sombrios de resistência do socialismo e de uma infinita pressão sobre as culturas do marxismo, os tempos do pós-neoliberalismo podem e devem ser os tempos criativos de um socialismo democrático e de um marxismo revolucionário renovados e enriquecidos em seu esforço de auto-crítica e reelaboração teórica, em sua indignação com as opressões capitalistas e em sua esperança que uma nova ordem mundial é possível.
Um marxismo-revolucionário para os tempos do pós-neoliberalismo
Como tendência marxista revolucionária, a Democracia Socialista tomou consciência logo no início dos anos noventa, após a queda da URSS engolfada em uma direção neoliberal, da pressão inaudita aberta sobre a cultura do socialismo e, em particular, sobre o marxismo enquanto uma teoria explicativa do capitalismo e propositora de sua revolução.
De acordo com os liberais, o marxismo estaria morto, seria um passado e um erro brutal. Apesar das intenções libertárias de seu criador, a sua teoria, que os seus desdobramentos históricos teriam aclarado, seria a principal responsável por legitimar as opressões totalitárias e seus crimes históricos contra a humanidade.
O valor da liberdade e da emancipação que pulsa tão forte em toda a obra de Marx e Engels, todas as imensas contribuições históricas das tradições marxistas à formação dos direitos que compõe o núcleo mesmo do que entendemos como conquistas civilizatórias da democracia, em todos os campos, dos direitos do trabalho aos direitos da mulher, do direito à auto-determinação nacional à soberania popular, todas as dignas e riquíssimas tradições anti-estalinistas do marxismo, clássicas e contemporâneas, tudo isto foi esquecido neste período histórico de máxima saturação liberal, com seus dogmatismos e seu estreitamento intelectual.
Mas era apenas o início dos tempos neoliberais, em sua pretensão de ter finalizado a história, de ser o alfa e o ômega da civilização, de ter proscrito da história todas as culturas alternativas ou adversárias. Durante este período, com seu domínio mercantil e de poder político, os liberais exerceram com intolerância e obscurantismo os procedimentos de censura e exclusão, de perseguição e anátema – até mesmo ao ponto de reescrever a história – para negar ao marxismo e ao pluralismo de suas tradições o direito à cidadania cultural.
Nestes tempos de perseguição cultural e de crise, muitas editoras marxistas fecharam suas portas, cursos universitários marxistas ou marxizantes foram proscritos, jornais e revistas socialistas sob pressão deixaram de existir, circuitos internacionais foram interrompidos, tradições de dignidade histórica sofreram descontinuidade. Tornado refrão propagandístico, o anti-marxismo ocupou totalitariamente a mídia empresarial, calou vozes, censurou jornalistas e articulistas, pregou a intolerância como método.
Em meio a esta pressão anti-pluralista e intolerante, mesmo os partidos de esquerda, que ainda continuavam a se reclamar das tradições marxistas, até as tendências que faziam desta relação uma auto-identidade, sofreram graves recuos na organização interna e pública de sua cultura marxista.
Muitos partidos, movimentos sociais e intelectuais deixaram de ter o marxismo como referência. Pior: muitos ex-marxistas passaram a desafinar o coro do anti-marxismo. Novos movimentos sociais, mesmo alguns que se inscrevem certamente em um horizonte da emancipação e até com algumas perspectivas anti-capitalistas, passaram a se nomear como pós-marxistas. Jovens militantes socialistas, formados em um tempo de escassez ou retrocessos da cultura marxista, adaptaram-se à escola do pragmatismo. Mesmo a linguagem pública da esquerda, passou a evitar ou substituir conceitos e termos chaves que compunham a linguagem das correntes marxistas como classes dominantes, exploração, alienação, mais-valia, imperialismo, etc.
Como teoria e cultura, no entanto, que nasceu, deu os seus primeiros passos e formou as suas primeiras identidades públicas sob a censura e o exílio, sob a proscrição legal e sob brutal repressão, o marxismo, em sua história, sempre soube sobreviver aos tempos difíceis. Faz parte da sua própria identidade revolucionária crescer e se enriquecer através da crise e da crítica. Não foi diferente nos tempos do neoliberalismo.
Por três razões singulares à esta época histórica, a cultura do marxismo sobreviveu e se enriqueceu neste período, alimentando e alimentando-se das lutas de resistência ao neoliberalismo:
– a cultura do marxismo desprendeu-se, de modo mais radical e generalizado, da âncora pesada do estalinismo, que por sua irradiação histórica longa, havia se difundido e impregnado profundamente a cultura do marxismo nas várias regiões do mundo;
– a revisitação da obra dos fundadores do marxismo se fez com um conhecimento mais histórico e informado de seus limites e, por isso mesmo, de seu imenso potencial emancipatório ainda a ser desenvolvido;
– o pluralismo da cultura marxista incentivou uma série de incursões teóricas novas sobre realidades emergentes do capitalismo mundial e também sobre novas perspectivas anti-capitalistas.
Ao contrário do que pretendeu o chamado “pensamento único”, a cultura do marxismo nestes princípios de tempos pós-neoliberais está mais viva do que nunca, pulsa e reclama por um novo período de desenvolvimento como linguagem da emancipação.
Hoje se conhece mais a obra de Marx (há inclusive uma nova edição integral em curso, que amplia em muito o universo de escritos até agora disponível), o seu processo de formação com seus diálogos e rupturas, as fronteiras de sua pesquisa ao final da sua vida e as tensões criativas de sua teoria. Valoriza-se e compreende-se mais a singularidade das contribuições de Engels.
Coleções, antologias e estudos monográficos sobre a história do marxismo permitem hoje uma visão muito mais ampla, profunda e sistemática sobre a história do marxismo e suas relações com os movimentos operários, com os movimentos feministas e de libertação nacional. Sabe-se hoje muito mais, inclusive com a abertura dos arquivos da antiga URSS, sobre a história dos descaminhos da revolução russa sob a égide do estalinismo. Em particular, o lugar do marxismo na história cultural do mundo pode ser hoje mais avaliado e apreciado.
Os estudos sobre a relação entre república, marxismo e democracia, que devem muito aos desenvolvimentos contemporâneos da filosofia política, em suas tradições do humanismo cívico, permitem entender melhor toda a singularidade, a pertinência e a reposição plena da atualidade da crítica de Marx ao capitalismo para uma cultura contemporânea da emancipação. Experiências inovadoras de democracia participativa e deliberativa, por sua vez, incentivam novas sínteses sobre as formas de transição democrática ao socialismo.
Novos estudos de longa duração histórica e de visão muito ampla e sistêmica sobre a formação da chamada modernidade capitalista permitem um olhar renovado sobre as tendências atuais do capitalismo. Em particular, toda uma cultura de novos estudos econômicos sobre as dimensões de financeirização do capitalismo possibilitam identificar o centro disruptivo de suas atuais contradições. Além disso, toda uma gama de estudos sociológicos sobre as novas configurações das classes trabalhadoras, a partir dos impactos das mutações tecnologias recentes, permitem e incentivam reelaborações sobre os sujeitos históricos das transformações.
Amplos desenvolvimentos da cultura do feminismo – de sua história, de suas tradições operárias e populares, de seus questionamentos à cultura patriarcal, da formação de novos direitos – cobram e esperam do marxismo revolucionário novas sínteses libertárias. Sem o diálogo com a capacidade crítica do marxismo ao capitalismo, inclusive às suas estratégias contemporâneas de opressão, nenhuma teoria feminista plena da emancipação poderá se construir.
Novos estudos históricos que permitem entender, de modo mais profundo e central, o impacto da escravidão na formação do sistema capitalista, a elaboração de culturas democráticas multiculturais e, principalmente, um estágio mais avançado das lutas dos povos africanos, inclusive com a histórica luta de derrubada do apartheid na África do Sul, colocam na ordem do dia novas sínteses teóricas da cultura do marxismo com as tradições de luta anti-racistas.
Sob a pressão da crise ecológica mundial, uma promissora formação de uma cultura eco-socialista, como releituras e atualizações da obra de Marx e de clássicos do marxismo, constituem os elementos de uma nova economia ecológica marxista ou de um marxismo ecológico. A crítica à valorização do capital, à sua lógica de predação imanente da natureza, da mercantilização e da privatização dos bens públicos, de suas crises cíclicas permitem às vertentes marxistas da ecologia diagnosticar mais profundamente os impasses das vertentes liberais ecológicas.
Da crítica histórica à mercantilização da cultura e da formação dos meios de comunicação mercantis de massa ao diagnóstico da “sociedade do espetáculo” contemporânea, passando pela rica tradição dos estudos culturais inspirados no marxismo, formou-se toda uma literatura promissora da democratização da cultura e da formação de uma opinião pública democrática.
A luta pelos direitos dos gays, lésbiscas e transexuais certamente expandem e trazem novos desafios para certas culturas do marxismo que sempre se propuseram a criar uma nova moral sexual, modos libertários e anti-tradicionalistas de viver.
Um balanço histórico das relações entre as várias teologias da libertação e a cultura do marxismo é imensamente positivo no sentido de superar certas tendências redutoramente racionalistas do marxismo, inaptas a compreender que certos motivos religiosos, certas instâncias da fé, algumas tradições cristãs igualitárias ou mesmo cosmológicas, podem formar perspectivas anti-capitalistas e emancipatórias. A partir daí, criou-se todo um rico diálogo entre marxismo e teologias da libertação, motivadora de novas transcendências e reconhecimentos de dignidades.
Por fim, a partir das experiências do Fórum Social Mundial, uma nova agenda de lutas para o século XXI foi se formando, desde a luta pela paz até o direito dos povos à soberania alimentar, desde a crítica às instituições mundiais que dirigem a globalização neoliberal até a experimentação de novas formas comunitárias de produzir. Em particular na América Latina, experiências recentes de governos progressistas têm renovado os programas de unidade latino-americana, mobilizado exigências históricas dos povos originários da América, renovado a relação da cultura do marxismo com as tradições históricas nacionalistas e emancipatórias do continente. Na Europa, a crise da social-democracia, em suas vertentes contemporâneas, tem permitido aflorar novas experiências de movimentos sociais, de coalizões de partidos e programas à esquerda. A cultura e as bases de um novo internacionalismo anti-capitalista, mais plural e multi-continental, parecem estar se formando.
Pela força social e institucional de seus partidos e correntes de esquerda contemporânea, que se formaram nas tradições do anti-estalinismo e sobreviveram aos períodos dominados pelo neoliberalismo, pela riqueza das tradições que formam a história das lutas dos oprimidos e explorados, pela qualidade de sua história intelectual, pela sua inserção na história mundial, ao mesmo tempo européia, latina, índia e africana, o Brasil é hoje um lugar propício para contribuições significativas a uma nova síntese do marxismo revolucionário do século XXI em diálogo com as experiências internacionais de emancipação.
O socialismo petista do século XXI e o marxismo revolucionário
No item 3 da Resolução “Socialismo petista”, aprovada pelo PT em seu 7º Encontro Nacional em 1990, se afirmava: “ Outra dimensão visceralmente democrática do PT é o seu pluralismo ideológico-cultural. Somos, de fato, uma síntese de culturas libertárias, unidade na diversidade. Confluíram para a criação do PT, como expressão de sujeitos sociais concretos, mais ou menos institucionalizados, diferentes correntes de pensamento democrático e transformador: o cristianismo social, marxismos vários, socialismos não-marxistas, democratismos radicais, doutrinas laicas de revolução comportamental, etc.”
E acrescentava: “O ideário do Partido não expressa, unilateralmente, nenhum desses caudais. O PT não possui filosofia oficial. As distintas formações doutrinárias convivem em dialética tensão, sem prejuízo de sínteses dinâmicas no plano da elaboração política concreta. O que une essas várias culturas políticas libertárias, nem sempre textualmente codificadas, é o projeto comum de uma nova sociedade, que favoreça o fim de toda exploração capitalista”.
Apoiadora e mesmo co-elaboradora desta histórica resolução do PT, a tendência Democracia Socialista é certamente a corrente petista marxista revolucionária mais longeva e de maior influência. A sua relação com a tradição do marxismo revolucionário não se dá no plano da eleição de uma doutrina oficial, nem através da escolha unilateral e dogmática de uma tradição marxista exclusiva e muito menos na opção por uma determinada experiência de construção do socialismo tida como paradigmática.
Na medida em que esta relação é concebida como um processo histórico em curso de síntese de uma cultura marxista do socialismo democrático, esta identidade é plural (se reivindica das várias tradições e autores clássicos do marxismo anti-estalinista), não dogmática (incentiva uma relação criativa, historicizada e crítica, com estas tradições), praxiológica (ela será desenvolvida em relação com as lutas anti-capitalistas e libertárias do PT e dos movimentos sociais) e principalmente dialogal ( estabelece uma interação permanente com outras experiências e tradições emancipatórias).
Daí que a defesa e desenvolvimento das tradições do marxismo revolucionário no interior do PT é para a DS, sem atribuir-se o monopólio ou o exclusivo desta missão, um imperativo da sua própria identidade e razão de ser. A própria relação da DS com o PT pode e deve ser pensada a partir dos diferentes períodos desta relação.
Como corrente nacional, o seu nascimento é praticamente simultâneo ao nascimento do PT. Podemos identificar aí, então, um primeiro momento genético: iniciava-se a relação entre a DS como corrente marxista- revolucionária e a construção do PT como partido classista, tendencialmente socialista e revolucionário.
O período entre a fundação do PT e o documento Socialismo Petista, de 1990, pode e deve ser compreendido como o de uma relação virtuosa entre o PT e o marxismo revolucionário. O contexto de grande ascenso das lutas classistas, a relação forte do PT com os movimentos sociais em um marco de institucionalização inicial, o próprio posicionamento histórico decisivamente crítico à transição conservadora que culminou na campanha épica de Lula à presidência da República em 1989, formaram uma cultura do PT receptiva ao desenvolvimento de teses e conceitos caros ao marxismo revolucionário. Noções como auto-determinação dos trabalhadores, poder popular, programa marcado por reformas estruturais de sentido anti-capitalista em uma dinâmica de revolução permanente, feminismo, solidariedade internacionalista aos processos revolucionários em curso, foram amplamente desenvolvidas nos Congressos petistas.
Já o período entre 1990 e 2002, quando a coalizão liderada pelo PT chega ao governo central do país, pode ser caracterizado como de disputa de rumos estratégicos do PT. Neste período, marcado internacionalmente pela massificação da crise do socialismo e pelo domínio do neoliberalismo, acabou prevalecendo, a partir de meados dos anos noventa, uma direção que afirmava nitidamente a prioridade do caminho da disputa institucional, o alargamento das alianças do PT para além dos marcos da esquerda mas também um horizonte programático de resistência às políticas neoliberais. Houve neste período, sem dúvida, rebaixamento da cultura socialista do PT e, de forma mais clara, da presença das culturas marxistas em seu interior. Assumiu neste quadro grande importância uma série de seminários realizados pela Fundação Perseu Abramo sobre a atualização do socialismo petista. Em meio a contradições, o PT reafirmava, a partir de seus laços aprofundados e mais nacionalizados com os movimentos dos trabalhadores e setores populares, a sua condição de principal pública referência da esquerda brasileira.
De 2003 até hoje, o PT continua a expressar valores de esquerda, embora em um quadro de forte institucionalização da vida do partido e de crescimento do pragmatismo, tensões obviamente decorrentes de sua condição de governar um país no seio de um estado capitalista, portanto profundamente marcado por instituições e leis liberais e conservadoras. Neste quadro, foram muito importantes as resoluções do III Congresso do PT em 2007, reafirmando que “as riquezas da humanidade são uma criação histórica, coletiva e social” e que “o socialismo que almejamos só existirá com efetiva democracia econômica. Deverá organizar-se, portanto, a partir da propriedade social dos meios de produção.” E também a resolução política do IV Congresso Nacional Extraordinário, realizado em 2011, a qual afirma que o partido deve “aprofundar seu compromisso com outra visão de mundo e com outro modelo de desenvolvimento, reafirmando a defesa da construção do socialismo.”
Ao defender para o PT a tarefa central de desenvolver o programa da revolução democrática, o que a tendência Democracia Socialista está propondo é inaugurar um novo período de fusão entre a cultura petista e o marxismo revolucionário.
A revolução democrática e o marxismo revolucionário
A retomada e o desenvolvimento de um corpo teórico que tem nas tradições do marxismo revolucionário a sua raiz é condição necessária para o pleno desenvolvimento de um programa da revolução democrática. Esta condição de necessidade – que não tergiversa sobre a atualidade do marxismo revolucionário – não é uma declaração dogmática: ela pode ser demonstrada por três razões substantivas.
Em primeiro lugar, o marxismo revolucionário originou-se e tem por vocação uma busca de totalidade – que está no centro de sua condição potencialmente hegemônica – que concebe a unidade da história em suas dimensões políticas, econômicas, culturais e sociais, propondo-lhes a construção de um sentido dinâmico.
Ora, a coincidência entre a crise do socialismo e da cultura do marxismo e o domínio neoliberal provocou uma fortíssima e ainda não superada cisão entre as várias dimensões da emancipação. Há hoje um abismo não superado entre novos movimento sociais e partidos, entre lutas institucionais e lutas culturais, entre reivindicações econômicas e lutas pela democratização do poder. Formaram-se, no contexto destas cisões, culturas da emancipação que dialogam pouco entre si ou que têm encontrado dificuldades recorrentes para convergir. Dinâmicas parciais e estanques acabaram criando tradições organizativas próprias. Novas teses passaram a transformar esta dinâmica de cisão em virtude, propondo horizontes de transformação social descentrados da disputa do próprio poder.
Precisamos de uma teoria coerente e unificadora da emancipação e para isto os conceitos e relações de sentido desenvolvidas pelo marxismo revolucionário são fundamentais.
Em segundo lugar, a cultura do socialismo democrático não pode prescindir do conceito chave de revolução democrática que deve contribuir para toda uma nova fase de desenvolvimento do marxismo revolucionário. Este conceito democrático de revolução pode vir a ser antídoto e superação dos impasses históricos na construção do socialismo, quando revoluções anti-capitalistas não conseguiram criar uma nova dinâmica real de socialização do poder.
Se em sua primeira fase de formulação, o marxismo revolucionário, na época de seus fundadores, não pôde se relacionar com a atualidade plena da revolução, a partir do impasse reformista da II Internacional e da degeneração da revolução russa, o marxismo revolucionário pôde desenvolver a sua identidade defendendo, ao mesmo tempo, a revolução social e a revolução política, o combate ao capitalismo e a luta pela superação da burocracia ou autonomização do poder revolucionário em relação a seus fundamentos democráticos. A noção de revolução democrática pode ser vista como consciência e antídoto contra a perda de sentido emancipatório da revolução, em um sentido crítico e negativo.
Isto foi decisivo para a construção do PT, pois foi a confluência das várias tradições anti-estalinistas que formaram o partido que possibilitou a sua sobrevivência política frente à crise final da URSS. Nesta conjuntura, o partido pôde, então, coerentemente reafirmar a sua proposta de um socialismo democrático. Partidos que ainda carregavam em sua tradição a herança estalinista, mesmo já em processo avançado de crítica como no caso do eurocomunismo italiano, não conseguiram resistir: ao expor a dignidade fraturada de sua própria história, foram conduzidos a dar razão histórica ao liberalismo democrático, perdendo a raiz de sua identidade de esquerda.
Agora, o desafio é o desenvolvimento afirmativo do conceito de revolução democrática. Através do marxismo revolucionário, é possível compreender que a democracia não é um valor universal no sentido de que ela foi historicamente reinterpretada pelo liberalismo, que tornou-se a visão de mundo dominante nos países capitalistas centrais. Através do conceito de revolução democrática é possível desenvolver uma dinâmica que coloca em questão os limites intransponíveis que o liberalismo impõe à liberdade, à universalização simétrica dos direitos, à justiça social, à emancipação das mulheres e à convivência pacífica dos povos em relação de mútuo respeito e dignidade. Enfim, para desenvolver plenamente a liberdade e a democracia é preciso fazer o contrário do que se acomodar aos valores, às instituições, à ordem dos direitos e deveres, pregados pelas correntes liberais, em seu pluralismo histórico e doutrinário. É preciso, pois, superar os limites liberais da democracia em uma direção socialista, no sentido de criar uma liberdade qualitativamente profunda, plural, universal.
Mas há uma terceira razão para defender a firme opinião de que a retomada e o desenvolvimento do marxismo revolucionário é fundamental para desenvolver o programa da revolução democrática. É porque apenas através das tradições do marxismo é possível desenvolver uma análise e uma perspectiva internacional dos desenvolvimentos do capitalismo enquanto sistema mundial. As décadas da globalização financeira, para além de seus mitos, corresponderam efetivamente a uma maior integração política, econômica, financeira e cultural do mundo. A dialética entre emancipação nacional e emancipação internacional ganhou certamente uma relação mais combinada embora também mais desigual.
Na experiência de governar o Brasil, na reiterada internacionalização das conjunturas, na evolução muito nítida das conjunturas políticas, inclusive no plano continental, fica claro que a perspectiva internacional não está apenas no horizonte da emancipação mas está inserida mesmo em sua dinâmica. Há certamente uma relação de efeito mútuo entre o precário desenvolvimento do marxismo revolucionário nos anos recentes e os impasses da experiência internacionalista do Fórum Social Mundial. Como experiência rica de diálogo, encontro e convergências, o Fórum Social Mundial teve e tem que enfrentar as cisões das culturas anti-capitalistas.
Defender a centralidade do marxismo revolucionário para o desenvolvimento do programa da revolução democrática não é advogar, de forma auto-proclamada, a sua razão. Pelo contrário, é na medida mesmo que souber dialogar, através do pluralismo de suas tradições, com as vertentes do eco-socialismo, dos feminismos radicais e anti-capitalistas, dos movimentos antirracistas, dos movimentos sociais comunitaristas e anti-mercantis, com as correntes da Teologia da Libertação, com as experiência radicais de participação democrática, com as novas configurações internacionalistas, que este marxismo revolucionário pode exercer a sua potência histórica de síntese, de unidade na diversidade, de hegemonia no pluralismo.
Cinco fundamentos e um futuro
A partir destas considerações, seria possível elencar cinco fundamentos centrais para a criação de uma revista marxista revolucionária hoje.
O primeiro fundamento é o da identidade: neste período ainda marcado pro graves retrocessos da cultura pública do marxismo e de larga difusão do pragmatismo na cultura do PT, é fundamental firmar a identidade da revista como de uma tendência historicamente vinculada ao PT e, ao mesmo tempo, marxista revolucionária. Isto é, que se proclama marxista revolucionária exatamente por ser construtora do PT desde as suas origens. Há aqui um valor para a própria cultura socialista democrática do PT; mas há também um valor necessariamente crítico às correntes sectárias que se servem muitas vezes doutrinariamente do marxismo para negar o imenso valor histórico de esquerda do PT, não apenas para os trabalhadores do Brasil mas do mundo inteiro.
O segundo fundamento é o sentido praxiológico da revista: ela não pretende ser uma revista de teoria marxista, em um sentido prioritariamente acadêmico ou historicamente descentrado, mas exatamente o inverso. Inserida na rica tradição da dialética petista, a sua agenda prioritária, o seu trabalho coletivo de elaboração, os seus diálogos serão voltados exatamente para o desenvolvimento do programa da revolução democrática no Brasil. É ao procurar responder aos problemas históricos da transformação no Brasil que a revista poderá ir desenvolvendo uma teoria coerente da revolução democrática, em diálogo com a tradição e com as experiências internacionais.
O terceiro fundamento é o sentido plural e dialogal da revista: ancorada na tradição da tendência Democracia Socialista, ela buscará sempre o diálogo, a interlocução, a polêmica construtiva, a colaboração sistemática com os militantes e intelectuais marxistas e com os propositores de uma perspectiva do socialismo democrático. Este diálogo será feito prioritariamente com os companheiros do partido. Nem todo o espectro do marxismo revolucionário nem todos os militantes socialistas, no entanto, se inserem organicamente no PT e, a partir de sua identidade petista, a revista buscará também a contribuição destes companheiros e companheiras.
O quarto fundamento é o caráter internacionalista da revista: sem estarem vinculados organicamente, há muitos partidos, correntes e movimentos socialistas hoje no mundo, em particular na América Latina. Núcleos de estudos marxistas, vinculados a revistas independentes e a universidades ou fundações também se fazem presentes. Dentro dos marcos das relações internacionais do PT, diversos níveis de conhecimento, cooperação ou diálogo podem se estabelecer, naturalmente a partir de aproximações e de perspectivas comuns.
O quinto fundamento é contribuir para a continuidade e renovação às tradições do marxismo revolucionário. Como a revista não se propõe a inaugurar uma tradição mas identificar a sua descontinuidade, estabelecer pontes entre o passado e o futuro, encorpar e colorir os sentidos das experiências vividas, fazer o cultivo da memória, presentificar vidas e pensamentos revolucionários, ela terá sempre o trabalho de revisitar as tradições. Há o diagnóstico, pela força corrosiva dos tempos neoliberais recém vividos, de um déficit público da dignidade e inteligência histórica do marxismo revolucionário e do socialismo democrático. A dignidade e inteligência desta revista estará sempre exposta à dignidade e inteligência da tradição que visa encarnar e atualizar.
Cumprido o desafio de reunir estes cinco fundamentos, não temos dúvida que a revista que ora se inicia poderá vir a ser um marco histórico da luta pelo socialismo democrático no Brasil e no mundo.
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