A manhã do dia 25 de outubro de 1998 nasceu ansiosa e tensa. Ao final daquele dia, o Rio Grande teria escolhido entre dois caminhos radicalmente diferentes. Vivíamos o apogeu do consenso de Washington, do neoliberalismo e do fim da história de Fukuyama. No Brasil, FHC anunciava o fim da era Vargas com privatizações selvagens, reformas constitucionais, retirada de direitos trabalhistas e um câmbio artificialmente rebaixado que quebrou a indústria e colocou a agricultura de joelhos. Era a momento do liberalismo triunfante que varria países de norte a sul e nada parecia capaz de detê-lo. Aqui no Rio Grande do Sul tínhamos o mais aplicado aluno da escola de Washington. Antônio Britto tinha realizado um governo devastador: vendeu estatais como a CEEE e a CRT, apoiou a Lei Kandir que até hoje quebra o estado, privatizou serviços públicos, espalhou pedágios, e fez um desastroso acordo da dívida que triplicou o endividamento gaúcho. Nunca mais o Rio Grande se recuperou destes golpes.
Se hoje temos claro este desastre, na época tudo era diferente. A Zero Hora estampou na capa: ”Acabou a dívida gaúcha”. A Lei Kandir era apresentada como a solução para o campo gaúcho, as privatizações prometiam uma modernidade espetacular feita de estradas boas, energia barata e serviços acessíveis a todos. Esta forma de engodo tinha conquistado corações e mentes em todos os países do mundo, por que não daria certo no RS?
Pois na improvável aldeia gaulesa do Sul do Brasil uma poderosa resistência popular se erguia contra este modelo de sociedade sem serviços públicos, sem solidariedade, sem inclusão. Uma enorme mobilização de movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos de esquerda, sob a liderança de Olívio Dutra, tinha sido capaz de impedir sua vitória no primeiro turno. Apesar do poder econômico, apesar da maior frente eleitoral já constituída pela direita, apesar do apoio maciço e militante da mídia, apesar das pesquisas que apontavam a vitória fácil de Britto já no primeiro turno, apesar de tudo, os tínhamos detido. Agora era o momento do desempate.
Naquela manhã de 25 de outubro recordávamos toda nossa trajetória. Os dias frios e chuvosos em que percorremos cada canto do estado reunindo dezenas de pessoas em cada local. Os dias da primavera… as dezenas se tornaram centenas e nos davam a certeza de que, debaixo da superfície triunfante do neoliberalismo, a cidadania gaúcha se movia. Os milhares de militantes que aproveitavam cada final de semana para, pacientemente, fazer caravanas no interior nas áreas mais resistentes. Até que chegamos aos dias da reta final e as cidades se vestiram de vermelho. Pessoas faziam suas compras nos supermercados com as bandeiras vermelhas com a naturalidade de quem desfila com um chimarrão. As bandeiras de pano nas janelas em todos os bairros contrastavam com as bandeiras de plástico nos carros de luxo dos bairros ricos. Os comícios que reuniam dezenas de milhares e eram muito mais que comícios, eram celebrações. Naquela manhã, toda esta lembrança nos dava a certeza de que o Rio Grande estava pronto para a mudança. Olívio foi eleito governador do RS, numa virada histórica!
Foi aquela energia que contagiou e alimentou cada dia da Administração Popular. O sentido de urgência e compromisso nos fez administrar um estado quebrado (o líder da oposição dizia que não pagaríamos o salário do funcionalismo já no terceiro mês) sem vender um parafuso do serviço público, sem atrasar salários e com investimentos recordes. Foi com esta energia que mobilizamos o estado inteiro no maior orçamento participativo que o mundo assistiu. Foi assim que criamos o Família Cidadã, referência para o Bolsa Família; o seguro agrícola, base para o seguro agrícola nacional; criamos a UERGS, agora sucateada por Leite; criamos a Sulgás, privatizada por eles; o Programa Primeiro Emprego para nossa juventude; a Municipalização Solidária da saúde; os investimentos na CEEE que afastaram o risco de apagão no estado; o investimento em centenas de quilômetros de estrada sem instalar um só pedágio; a interiorização da cultura, levando a todo o estado programas antes concentrados em Porto Alegre. Tudo isto fazendo que o estado crescesse mais que o Brasil. Foram anos intensos e fecundos. Anos que mostraram que o estado pode, sim, ser governado para as maiorias com justiça e eficiência. Tamanho foi o impacto que o Rio Grande foi escolhido para ser a sede do Fórum Social Mundial, principal fórum do planeta para discutir as alternativas para um novo mundo.
Hoje, passados vinte e cinco anos, olhamos para nosso estado com dor e apreensão. Tudo aqui é destruição. Serviços públicos, finanças, futuro: tudo é escombro, nada é criação.
As semelhanças entre aquela manhã e esta são assombrosas. Leite prometeu não vender estatais como Britto. As vendeu. Leite, como Britto, fez um acordo da dívida desastroso. Leite, como Britto, devasta os serviços públicos. Leite, como Britto, sacrifica os servidores públicos e desorganiza a gestão do estado. Não havia futuro com Britto. Não há futuro com leite.
Mas a esperança é uma planta teimosa e resistente. Já renasceu no Brasil depois das trevas de um governo genocida. Vai renascer no RS. Relembrar estes fatos de 25 anos atrás faz bem aos nossos sentimentos por nos reencontrarmos com tamanha vitalidade, mas faz ainda melhor à nossa esperança ao lembrar que tudo era quase impossível e ainda assim fizemos. Chegou a hora de fazermos de novo.
Miguel Rossetto é deputado estadual (PT-RS) e vice-governador de Olívio Dutra.
Comente com o Facebook