Por Lidiane Samara
O feminismo da MMM é construído cotidianamente a partir das experiências de vida concreta das mulheres, busca olhar para as relações sociais como um todo e, portanto, como se entrelaçam o racismo, o capitalismo, o patriarcado e a opressão da sexualidade. Por isso, antes mesmo da realização da nossa virada Feminista Agroecológica e Cultural podemos afirmar que será uma atividade antirracista e que contribuirá para enegrecer o feminismo.
A Virada Feminista, entre 15 e 17 de outubro de 2015, irá afirmar e fortalecer um movimento feminista que reúne várias mulheres trabalhadoras negras e brancas: pescadoras, indígenas, quilombolas, do campo e da cidade, dos bairros populares e universidades e tantas outras. A construção dessa ação expressa a trajetória realizada a partir de um processo de auto-organização e incorporação de uma ampla diversidade, em que todas as mulheres podem se sentir parte dessa trajetória e elaborarem juntas suas resistências e alternativas.
Pensar ações a partir das experiências concretas das mulheres nos leva a debater a organização das mulheres negras baseada no seu local de trabalho, no seu território e no seu lugar de mulher. Queremos mudar a vida das mulheres por inteiro e transformar todas as relações de poder existente na sociedade que impedem as mulheres negras de serem sujeitos de sua história. Por isso é importante ver como nosso movimento fortalece a presença das mulheres negras e ao mesmo tempo incorpora as demandas concretas da luta antirracista.
Serão mais de trinta atividades que ocorrerão na virada feminista de fortalecimento das mulheres negras, como, por exemplo, a caravana feminismo antirracista e as atrações culturais.
A caravana intitulada: Feminismo Antirracista visitará a experiência do grupo de mulheres da Associação Quilombola de Jatobá, na zona rural do município de Patu/RN, primeira comunidade a ser reconhecida como comunidade remanescente de Quilombo no RN. Nessa visita teremos a oportunidade de conhecer a contribuição das mulheres negras daquela localidade, papel decisivo na luta pela terra. A história de auto-organização e de luta das mulheres de Jatobá pela terra será contada para as companheiras vindas de várias partes. Falarão sobre seus costumes e mostrarão sua cultura através de fotos, danças, músicas e falas. Esta atividade tem o objetivo de fortalecer os territórios na nossa região do RN e dar visibilidade para a importância do quilombo de Jatobá e da resistência negra na construção de alternativas de convivência com o semiárido, elaboradas pelas mulheres negras através da auto-organização. Aqui, podemos observar que construímos alternativas em contraposição a opressão e dominação: na luta pela terra, estamos enfrentando o latifúndio tão presente nesta região do quilombo jatobá; quando falamos de auto-organização das mulheres negras estamos falando de romper com o patriarcado e a divisão sexual do trabalho e quando falamos de organização quilombola estamos falando de romper com racismo ainda latente em nossa sociedade. Olhando para essa experiência e para as experiências que construímos nas universidades e nos espaços urbanas percebemos a importância de cada uma delas na luta antirracista.
Outro exemplo dessa luta antirracista que está presente na Virada Feminista Agroecológica e Cultural é nosso palco antirracista com a valorização dos nossos cantos, da nossa raça. Todas as expressões e apresentações culturais terão a nossa cara de luta e muitas terão a nossa cor. Ellen Oléria com seu saravá e Krystal com seu canto popular e com “.. .sangue é mel é mel de rapadura e minha pele é um gibão de couro e eu vou lhe mostrar…” nos encantará com seu sotaque nordestino e a alma do povo negro.
Na nossa luta, no Oeste Potiguar, protagoniza a nossa cor, nossa beleza, nossos valores. Mais que isso, nós construímos, na nossa prática feminista, uma luta que ao mesmo tempo é feminista, antirracista e socialista.
Contudo, ainda temos muitos desafios teóricos e práticos na construção deste feminismo antirracista. Isso passa por enfrentar contradições, como as que as mulheres negras apontam de que, se por um lado muitas vezes encontram dificuldades de serem reconhecidas no movimento de mulheres, ao mesmo tempo se confrontam com o machismo dos homens dos movimentos negros. Em nosso cotidiano, nós, mulheres negras, sofremos, ainda, com a criminalização do aborto, pois, muitas mulheres negras perdem suas vidas ou ficam com sequelas em sua saúde por praticar o aborto inseguro.
O racismo, o capitalismo e o patriarcado estabelecem formas de negação de nossa identidade que se materializa na prática social e são propagadas e legitimadas pela grande mídia. Essas práticas concretas de descriminação e desqualificação existem com o intuito de impedir nossa autodeterminação para agir com liberdade e desenvolver nossas potencialidades. São práticas sustentadas e incentivadas por preconceitos, ancoradas nas representações sobre o que é ser negra. Um exemplo disso é a ideia construída que as mulheres negras são fortes, que aguentam dor. Ambos ligados a intenção de extremar os aspectos biológicos de fêmeas (não humana) que também é presente na naturalização da opressão das mulheres como um todo sejam elas brancas ou negras. Esse segundo aspecto legitima formas de super exploração no trabalho e a destinação das atividades mais pesadas desvalorizadas nessa sociedade.
O feminismo sempre denunciou as práticas dos meios de comunicação de massa de tratar as mulheres como objetos e de atuarem como um dos principais atores na imposição de um padrão de beleza hegemônico e uniformizado que estabelece o modelo de mulheres brancas, loiras, magras e jovens.
Em relação ao racismo, esses grandes meios de comunicação reforçam os preconceitos e estereótipos, principalmente na banalização da sexualidade que tem raiz nas práticas seculares de abuso e estupro das mulheres negras. Também são explorados e reforçados os estereótipos das mulheres negras como servis, no emprego doméstico vindo desde os tempos de utilização das negras como amas de leite e hoje sem vida própria cuidando dos filhos das brancas, muito utilizado nas novelas, por exemplo. Nosso questionamento não se resume a dizer que a mídia não nos representa, mas inclusive denunciar os mecanismos que incorpora parte do discurso antirracista para transformar em mercadoria e vendem produtos vinculados a negritude.
Para as mulheres a pressão em relação a beleza e estética é constante sabemos que a forma como isso corre no dia a dia tem diferenças determinadas pela classe e pela raça. No RN, as jovens negras de bairros populares e do meio rural vivem a dimensão do racismo a partir de questões básicas em relação ao projeto de vida e de sua autonomia. São meninas pobres que se angustiam quando pensam onde conseguir trabalho: Que lugares e trabalhos estão destinados para elas? Ou o que vai fazer quando terminar o ensino médio? Será que conseguirei entrar universidade? No seu imaginário social estão valores de juventudes que vivem em uma sociedade do espetáculo. Como ser aceita com determinadas roupas ou com determinado cabelo, como ter recursos pra ir a balada, para se divertir.
No entanto, quando vivemos o cotidiano dessas meninas percebemos que seus desejos e vontades vão além de uma beleza fabricada, passa pela busca de sua autonomia e a conquista de seu espaço. Só uma luta feminista antirracista e anticapitalista conseguirá emancipar as mulheres negras. O desafio é conseguir realmente articular as lutas, sem nos afastar ou setorizar. Se buscarmos apenas a luta pelo protagonismo das mulheres negras, corremos o risco de cair nas garras do capitalismo e do mercado e ver transformadas nossas bandeiras de lutas em mercadoria; se buscarmos apenas a luta feminista sem um coextensividade da luta de classe e antirracista caímos no risco de aceitarmos o status quo e mudarmos a vida de algumas mulheres. Acreditamos que é possível construirmos nossa autonomia e identidade de classe, gênero e raça sem nos segregar, mas sempre no princípio de que juntas estamos mais fortalecidas e empoderadas sendo protagonista de nossas vidas.
Neste sentido, para barrar a articulação do capitalismo, do racismo e do patriarcado é necessário apostar na construção de um movimento feminista antissistêmico. A Marcha Mundial das Mulheres consegue, em sua curta trajetória, apresentar ações que encaram a luta feminista, antirracista e de classes de forma conectadas e co-extensivas. A virada feminista, agroecológica e cultural tem esse sentido e, sem dúvidas, a sua realização é uma contribuição para enegrecer o feminismo.
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