O desprezo pela democracia
As eleições de 2018 se darão em um momento crítico da democracia brasileira. A destituição de Dilma Rousseff da presidência da República foi realizada em um processo eivado de casuísmos processuais no Parlamento e no Judiciário, como o impedimento da posse de Lula na Casa Civil e a imputação de culpa a Dilma nas chamadas “pedaladas fiscais”[3], desde há muito realizadas no país. Diversos analistas compreenderam que tal processo se configura como uma nova modalidade de golpe de Estado, comum em países da América Latina, como Paraguai, Honduras, e na tentativa de golpe no Peru que redundou na renúncia de Pedro Pablo Kuczynski (BIANCHI, 2016).
Mais que isso, as reformas neoliberais implementadas por Michel Temer colocaram o país sob o mais duro ajuste fiscal que se tem notícia na história, com a aprovação de uma emenda constitucional que congela por vinte anos os investimentos em políticas públicas. Destaca-se também a aprovação de uma reforma trabalhista radical, que colocou em xeque a capacidade de mobilização dos sindicatos e, na prática, inviabilizou o acesso dos trabalhadores à justiça do trabalho (KREIN, GIMENEZ, SANTOS, 2018). Temer é o presidente mais impopular da história do Brasil. Seu governo é considerado ruim ou péssimo por 82% da população brasileira.[4]
Este quadro dramático se reflete em pesquisa recente, realizada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (2018) em março. O nível de satisfação com a democracia no Brasil é de apenas 19,4%, o mais baixo desde que pesquisas do tipo têm sido realizadas pelo Centro de Estudos de Opinião Pública da Unicamp, componente do Instituto. Também a concordância com a afirmação “A democracia é preferível a qualquer outra forma de governo” caiu de 77,4% em 2010, e 64% em 2014 para 56,1% em 2018.
A pesquisa também perguntou aos respondentes sobre em que condições um golpe de Estado pelos militares seria justificável. Em duas condições a margem daqueles que consideraram positivamente esta possibilidade ultrapassou aqueles que a negam: diante de muita corrupção, 47,8% dos respondentes se posicionaram a favor de um golpe e 46,3% contra; e diante de muito crime, 53,2% se disseram ser a favor e 41,3% contra. A corrupção é vista por 40% dos entrevistados da pesquisa como o mais grave problema enfrentado pelo país na atualidade.
O estudo também perguntou se as pessoas concordavam com a afirmação de que o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff teria sido um golpe ou se teria sido “algo normal, parte do processo democrático”: 47,9% optaram pela primeira e 43,5% dos respondentes escolheram a segunda alternativa.
Dois campos discursivos
O que há de novo? Os resultados sobre a desconfiança das instituições políticas são recorrentes no Brasil mais recente, sobretudo após junho de 2013, o avanço da Operação Lava Jato e o domínio do “combate à corrupção” na pauta midiática. No entanto, o fato novo é que a ruptura com as instituições democráticas está colocada como uma realidade (o golpe contra Dilma) ou algo desejável (o golpe militar pelo combate à criminalidade e a corrupção) para a maioria dos brasileiros.
Como isso ocorreu? Quais são os fatores que atuaram para sustentar esta situação? É possível considerar dois conjuntos de elementos: em primeiro lugar, trata-se de uma consequência da destituição de Dilma Rousseff, cujo processo de desgaste político se iniciou no mesmo dia de sua reeleição, com a não-aceitação do resultado eleitoral pela chapa encabeçada por Aécio Neves (PSDB). Rompeu-se, assim, uma das normas básicas de convivência democrática, pela qual os concorrentes em eleições aceitam seu resultado final (DAHL, 1997).
Em outro sentido, cresceu no país o movimento por uma suposta “intervenção militar constitucional”. Este movimento, a princípio pequeno, veio se avolumando nas manifestações pela destituição de Dilma em 2015 e 2016, ganhou espaço nas redes sociais – especialmente nos grupos de Whatsapp – e alcançou seu auge na recente greve dos caminhoneiros, que paralisou o país e pela qual o tema ganhou espaço na mídia.
Temos, então, dois campos discursivos. Por um lado, a denúncia do golpe de Estado contra Dilma Rousseff e suas consequências. Este campo discursivo se complementa com o repúdio à prisão do ex-presidente Lula e seu virtual impedimento a recandidatar-se ao cargo. Por outro lado, há o discurso daqueles que entendem que apenas a “autoridade moral” dos militares poderia “salvar o Brasil da corrupção”. Hoje, são estes dois campos que polarizam as opiniões políticas no país e que mobilizam juntos mais de 50% das intenções de voto para as eleições presidenciais.
Reposicionamento dos partidos no jogo político
Há poucos anos, predominava na literatura a percepção de que o sistema partidário brasileiro havia se consolidado e estabilizado. Para isso, as eleições presidenciais polarizadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e pelo Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB) desde 1994 teriam sido fundamentais (LIMONGI e CORTEZ, 2010). Entre os blocos liderados por estes dois partidos, se colocava um terceiro grupo, formado por PMDB, PP, PTB e PR, que ora pendiam para um, ora para outro grupo, mas sempre participavam de governos (MELO e CÂMARA, 2012).
Em um sentido mais estrutural, Nobre (2013) cunhou o conceito de pemedebismo para sustentar a ideia de que tal polarização entre PT e PSDB não seria mais que um epifenômeno na política brasileira. O sistema político se caracterizaria por um mecanismo de blindagem às forças de transformação social e pela construção de governabilidade por meio de supermaiorias legislativas de corte conservador e fisiológico. Tais supermaiorias pemedebistas (que contêm o PMDB, mas não apenas este partido) teriam sido o elemento de controle do poder políltico desde o Centrão conservador na Assembleia Nacional Constituinte em 1987 e 1988, passando pela sustentação ao governo Fernando Henrique Cardoso e também pelos governos petistas, sobretudo após o escândalo do “mensalão” em 2005.
Com o passar dos anos após a redemocratização, a legislação frouxa, a vinculação entre o tamanho das coligações e o tempo destinado à campanha eleitoral na TV e no rádio, e outros incentivos à criação de novos partidos tornaram o sistema partidário brasileiro o mais fragmentado do mundo. Não há partidos regionais ou locais, como na Argentina ou na Espanha. O pemedebismo de Nobre (2013) se fortaleceu – contraditoriamente em sintonia com a perda proporcional de poder do PMDB – e hoje existem 25 partidos com representação na Câmara dos Deputados, sendo 17 partidos efetivos pelo índice de Laakso e Taagepera (1979), outro recorde mundial do Brasil.
O atual governo é do MDB (recentemente o partido voltou a utilizar a sigla dos tempos da ditadura militar, sem o P). Reis (2018) chama atenção para o fato de que apenas uma “confluência imprevista de circunstâncias excepcionais impeliria o PMDB ao poder” (p. 73). O assalto ao Palácio do Planalto se deu pelos imperativos da crise econômica, mas sobretudo como tentativa de travar a Operação Lava Jato, que ainda ameaça a cúpula do partido.
O golpe contra a presidência de Dilma Rousseff colocou o PMDB na liderança do governo. Mas a aliança pró-golpe só obteria sucesso com a presença do PSDB, que iniciara todo o processo de desestabilização política com o não-reconhecimento do resultado das eleições em 2014. Assim, o PSDB deixou de ser um pólo político vivo e alternativa para o poder central e tornou-se apenas mais um partido no “condomínio pemedebista”.
O desgaste político do PSDB se avoluma quando da divulgação da gravação em que o senador Aécio Neves solicita R$ 2 milhões a Joesley Batista – empresário dono do conglomerado de proteína animal JBS e maior financiador da campanha de 2014 – sob a justificativa de que precisava da quantia para pagar sua defesa na Operação Lava Jato. Tal fato faz recrudescer a disputa política no partido. Geraldo Alckmin (PSDB), governador de São Paulo e pré-candidato à Presidência da República, tenta de todas as formas se desviar do escândalo e trabalha para retirar o PSDB do governo. Porém, sem sucesso imediato.
O fracasso e a impopularidade do governo Temer, o sentimento de injustiça com a destituição de Dilma Rousseff e a alta popularidade do ex-presidente reforçam no PT a validade de uma estratégia de tensionamento do sistema político com a manutenção da pré-candidatura de Lula mesmo após sua prisão em segunda instância. Ao mesmo tempo, a incerteza sobre a viabilidade de sua candidatura após seu registro no Tribunal Superior Eleitoral prejudica a organização do quadro de alianças em torno do candidato do PT à Presidência e também na definição de alianças nos estados, mesmo na relação com antigos e potenciais aliados à esquerda e à centro-esquerda.
O cenário eleitoral
A pesquisa Ibope de 20 de agosto aponta que o ex-presidente Lula ampliou sua intenção de voto para 37% no primeiro turno das eleições presidenciais, mostrando sua força eleitoral mesmo após mais de quatro meses na prisão. Este é o desaguadouro eleitoral do campo discursivo que denuncia o golpe contra Dilma Rousseff e que vê em Lula as condições para o restabelecimento da democracia no Brasil e a geração de estabilidade na política e na economia.
Em segundo lugar, permanece forte a candidatura de Jair Bolsonaro, com 18% das intenções de voto, que encarna a via eleitoral daqueles que requerem um golpe militar para salvar o país da corrupção e combater a criminalidade. O ex-capitão do Exército tem discurso fortemente impregnado de valores anti-direitos humanos, pela defesa do combate à criminalidade com a liberação do uso de armas por civis (os “cidadãos de bem”) e pela tese de que é alguém “de fora da política” e, portanto, avesso aos compromissos com os “corruptos”. Filiou-se recentemente ao nanico Partido Social Liberal (PSL). Ele é campeão de popularidade no Facebook (mais de 5 milhões de seguidores; a página de Lula tem 3,5 milhões) e aposta nas mídias sociais para fazer campanha longe dos partidos políticos.
Marina Silva, ainda com algum recall das últimas duas eleições presidenciais, viu sua intenção de voto ser reduzida para 6%. Marina permanece fazendo o discurso da terceira via, antipolarização. Porém seu partido, a Rede Sustentabilidade, não conseguiu se viabilizar como alternativa dentro do Congresso Nacional, encontra-se hoje com apenas dois deputados e terá poucos recursos do fundo eleitoral para sua campanha e pouco tempo de TV e rádio.
Mais abaixo, estão três candidatos: Alckmin e Ciro Gomes (PDT) com 5%, e Alvaro Dias (Podemos), senador pelo Paraná e com boa margem de votos na região Sul com 3%.
Em uma perspectiva de ascensão de uma candidatura de centro-esquerda (Lula ou Fernando Haddad, ou mesmo Ciro Gomes), Bolsonaro pode passar a ser a opção tática dos grupos afinados com a pauta neoliberal. Antes visto com muita reserva, Bolsonaro tem estabelecido pontes com setores do mercado financeiro e do agronegócio. Deste modo, para além dos saudosos da ditadura militar ou mesmo dos absolutamente descrentes com candidaturas convencionais – o núcleo duro de seus apoiadores – o ex-capitão vem ampliando contato com grupos que se sentem órfãos com o esfacelamento moral do PSDB e a baixa intenção de voto em Geraldo Alckmin.
Após momentos de indefinição, Alckmin finalmente conseguiu convencer o “novo” pemedebismo a se somar à sua candidatura. A presença do PMDB no governo impediu o partido eternamente governista a aderir a alguma candidatura: ninguém quer defender o legado de Temer. Assim, o PSDB se aliou à centro-direita (PP, PTB, PSD, SD, PRB, DEM, PPS e PR) e a candidatura de Alckmin ganhou musculatura: quase metade do tempo na TV e rádio e dos recursos do fundo eleitoral, além da utilização das máquinas partidárias. De quebra, Alckmin amealhou a senadora Ana Amélia (PP) como sua candidata a vice-presidente. A senadora é conhecida pela truculência verbal contra movimentos sociais e por ter a confiança da bancada ruralista. Alckmin, assim, demonstra que sua real disputa no primeiro turno é contra Jair Bolsonaro.
O resultado das eleições será agora respeitado?
A disputa à direita deve se dar entre estas duas candidaturas. Bolsonaro tem mais peso nas mídias sociais, cativa um eleitorado antipolítica e tem apresentado bastante resiliência nas sondagens de intenção de voto. Alckmin atua como profissional e tentará desgastar Bolsonaro com seu extenso tempo de TV e rádio. É uma tarefa difícil pois, se quiser ganhar as eleições, precisará encontrar espaço em meio à polarização política.
Uma candidatura à esquerda que possa enfrentar Bolsonaro ou Alckmin ainda está em suspenso pela indefinição quanto à viabilidade jurídica de Lula e/ou sua capacidade de transferir votos para o recém-escolhido herdeiro Fernando Haddad, ex-prefeito de São Paulo. O PT conseguiu a proeza de minar as expectativas de alianças de Ciro Gomes e, com a neutralidade do PSB e o acordo com o PCdoB de Manuela D’Ávila, permanece como a principal aposta da esquerda no cenário eleitoral. Não há dúvida de que a candidatura petista deverá galvanizar as intenções das centrais sindicais, de boa parte dos movimentos sociais, de parcela das classes médias que avaliam a piora da situação econômica do país pós-golpe e, por fim, da maior parte do subproletariado que requer um Estado provedor – com a manutenção do Bolsa Família – para sobreviver em momentos de crise, sobretudo no Norte e Nordeste.
O processo eleitoral encontra-se maculado pela virtual ausência de Lula. Mas, mesmo em condições tão adversas, ele e o PT têm jogado muito bem neste contexto. A manutenção de sua candidatura “até o fim” tem mantido o suspense sobre o eleitorado e, embora arriscada, é possível que esta estratégia garanta uma candidatura petista no segundo turno das eleições presidenciais.
Porém, para além das estratégias eleitorais, o que se percebe no Brasil é o aprofundamento da polarização política do final do governo Dilma, mas ainda mais radical. Esta se caracteriza não mais apenas pela oposição nos marcos do convívio democrático, mas pela possibilidade sempre à espreita da atuação de agentes externos que possam interferir na disputa, seja o Judiciário em sua cruzada anti-corrupção à revelia de garantias constitucionais, sejam os militares numa versão ainda mais escancarada de reversão da democracia, seja ainda por um Congresso Nacional potencialmente hostil. A retomada da democracia no país depende da participação popular e do respeito aos resultados das eleições, seja qual for a candidatura vitoriosa. Infelizmente, esta simples condição não é trivial no Brasil de hoje.
Notas
[1]Texto publicado anteriormente no Boletim Análise n. 45/2018, pela Fundação Friedrich Ebert. Disponível aqui.
[2]Wagner de Melo Romão é professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp), membro pleno do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Unicamp e de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista – Unesp Araraquara. É co-coordenador do Núcleo de Pesquisas sobre Participação, Movimentos Sociais e Políticas Públicas (Nepac). Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1999), mestrado (2003) e doutorado (2010) em Sociologia pela Universidade de São Paulo, e realizou pós-doutoramento no Centro de Estudos da Metrópole / Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEM/CEBRAP). Atualmente, preside a Associação dos Docentes da Unicamp (ADunicamp).
[3] Operações orçamentárias não previstas em lei em que se atrasa o repasse a bancos públicos e outras instituições de maneira a diminuir o comprometimento fiscal em determinado período contábil.
[4] “Reprovação aumenta e torna Temer o mais impopular da história”. Folha de S. Paulo, 10 de junho de 2018, A8.
Referências bibliográficas
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