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Marxismo e Feminismo[1]

FRÉDÉRIQUE VENTUIL

A vontade de refletir sobre as relações entre os sexos não é, ao contrário do que se pensa, uma novidade deste século. Pode inclusive sustentar-se que a generalização do modo de produção capitalista e a revolução ideológica do Século das Luzes constituem simultaneamente o ponto de partida do obscurantismo sobre as relações reais entre os sexos e a possibilidade da sua superação. Com efeito, se observamos as antigas sociedades escravagistas ou as sociedades medievais, choca constatar até que ponto a elaboração teórica, ou fantasmagórica, que justifica a dominação das mulheres é infinitamente mais abundante do que a produção ideológica destinada a perpetuar a divisão de classes. A mitologia da Grécia Antiga[2], da China de Confúcio[3], da Índia dos Vedas[4]… alimenta-se, em grande medida, dos conflitos entre os sexos; a igreja medieval edificou um formidável edifício conceitual em torno da inferioridade das mulheres[5]. Pelo contrário, o pensamento burguês está repleto de contradições. Ao postular a existência do Homen, sujeito universal, a-histórico e à margem das classes, torna-se-lhe mais difícil afirmar a inferioridade ontológica de um grupo humano qualquer (o mesmo problema colocou-se com os povos colonizados, cujas elites viraram contra as metrópoles valores oficiais da burguesia). Do mesmo modo, se bem que a vontade de demonstrar cientificamente a inferioridade natural das mulheres seja uma constante desde há dois séculos – do tamanho do cérebro até os testes de aptidão new-look -, o pensamento burguês prefere consolidar a legitimidade das instituições através das quais se exerce a opressão sobre as mulheres, do que afirmar uma infra-humanidade. A doutrina fascista, que no começo postula a inferioridade das mulheres, constitui precisamente a exceção que confirma a regra. O clero da Idade Média apresenta a mulher como diabólica; a ideologia burguesa coloca a necessidade da família e a adequação feminilidade / maternidade[6]. Além do mais, a burguesia dispõe de uma produção ideológica dirigida fundamentalmente para a defesa dos seus interesses diretos de classe; a exaltação do trabalho, do indivíduo, do Estado… A opressão das mulheres, tão amplamente utilizada, e tão amplamente reivindicada noutros modos de produção, parece ter desaparecido no capitalismo. Sabemos que o feminismo dos anos 70 começou por afirmar algo que supõe, assim, uma ruptura: a opressão existe, e estas são as suas manifestações.

Ora em, em nossa opinião, Marx e Engels são tributários de um contexto intelectual no qual não se analisavam as relações entre homens e mulheres, nem a situação global das mulheres no interior do sistema capitalista e das suas diferentes classes, mas em que analisavam unicamente as instituições através das quais se reproduz a sociedade burguesa e nas quais as mulheres estavam implicadas. Este ponto de vista que, digamos, se encontra com as mulheres, mas que nunca parte da opressão com uma vontade de explicação global, é parcial e só podia levar a erros de prognóstico e a meras aproximações teóricas. As mulheres são consideradas sucessivamente como proletárias do proletariado, servas, escravas…, termos que podem estimular a imaginação, mas que de modo algum fazem avançar a compreensão da função geral da opressão do sistema. Assim temos podido assistir, na última década, a uma recusa do marxismo, acusado de esterilidade intelectual. “Marx não disse nada de sensato sobre as mulheres, Engels equivocou-se na questão das origens da opressão…” estes são os sentimentos mais espalhados, freqüentemente acompanhados de afirmações dicotômicas tais como: “o marxismo continua a ser operativo para analisar as relações entre as classes, mas não serve no que respeita as relações entre os sexos. Para um novo tema de estudo, nova metodologia”.

Não se pode dizer que a origem deste questionamento do marxismo seja puramente teórica. A constância do movimento operário reformista de tradição social-democrata ou estalinista, em repetir desde há décadas, a ideologia burguesa sobre esta questão (com exceção de breves períodos revolucionários) tem repercutido e repercute necessariamente na credibilidade do marxismo. A origem americana do neofeminismo atual, cujo ponto de partida é a psicanálise, ou uma forma de pensar por assimilação de análise de outras formas de opressão (questão nacional ou racial), não favorecia de modo algum o enfoque marxista. Por último, o feminismo ao pretender pensar sobre um grupo social vítima de uma segregação e inscrito numa relação de alteridade (ser homem é a norma, a mulher é o outro) dificilmente poderia escapar à moda das filosofias da diferença que fez estragos nos últimos anos: desde a Nova Filosofia até à Nova Direita, passando por diversas e variadas interpretações que se reclamam da psicanálise.

Queremos abordar no âmbito deste artigo aquilo que nos parece operativo nos textos de Marx e aquilo que nos parece problemático. Queremos também mostrar a incapacidade das teorias que pretendem recusar ou superar o marxismo, para explicar a opressão das mulheres como fenômeno total. O marxismo continua a ser o único método que permite a sua compreensão… apesar de algumas teses de pensadores marxistas.

MARX, ENGELS E A OPRESSÃO DAS MULHERES

O marxismo teve o enorme mérito de denunciar, no século XIX, a subordinação das mulheres, quando outros socialistas chegavam inclusive a preconizar o seu agravamento (Proudhon). Marx e Engels inscrevem-se na linha de continuidade dos socialistas utópicos seguidores de Saint-Simon e Fourier, entre os quais se encontra Flora Tristan, que reivindicavam a igualdade dos sexos e a subversão da família burguesa. Superando os utopistas que se limitavam a descrever a inferioridade das mulheres e a exigir a igualdade em nome da justiça, o marxismo partiu de um pressuposto fundamental: a opressão das mulheres não é uma invariante na história, mas sim o produto de formações sociais; as relações entre os sexos não são naturais, mas sociais. Esta base materialista e histórica continua a constituir, nos nossos dias, a linha divisória com a etnologia estruturalista (Lévi-Straus), que considera o intercâmbio de mulheres como o elemento constitutivo das sociedades humanas, e com os psicanalistas, que atribuem à diferenciação sexual o papel motor na estruturação do psiquismo.

Não obstante, parece que neste terreno o enfoque histórico de Marx se baseia mais num postulado derivado da lógica do materialismo do que numa convicção construída sobre um estudo preciso do estatuto das mulheres através dos tempos.Teremos que esperar a última obra de Engels, quarenta anos depois da morte de Flora Tristan…, para encontrar um enfoque sistemático da questão. Em A Origem da Família distinguem-se três grandes períodos na história das mulheres: as sociedades sem classes, nas quais as mulheres ocupariam uma posição dominante (matriarcado original); as sociedades de classes não capitalistas, onde as mulheres escravas estão dedicadas à reprodução doméstica; e o capitalismo que reinsere as mulheres na produção e oferece uma base objetiva para a sua emancipação. Esta divisão em períodos, se bem que enormemente simplificadora, pode ser aceita; o que parece errado é a análise do estatuto das mulheres dentro de alguns períodos.

Em primeiro lugar, é indiscutível que sociedades sem apropriação privada dos meios de produção, sem Estado, em que as relações sociais se expressam em termos de parentesco, oferecem exemplos de opressão das mulheres infinitamente mais violentos que os sofridos nas metrópoles imperialistas dos finais do século XX. Numerosas tribos deste tipo vivem quase exclusivamente do trabalho realizado pelas mulheres, mas este é controlado pelos homens; as mulheres trocadas como mercadorias vão viver na povoação do seu marido, onde se vêem privadas de todos os direitos; a elaboração ideológico-religiosa destas sociedades é fortemente misógina.

a) O erro de Engels

Porque se equivocou Engels? Prisioneiro das descobertas etnológicas da sua época, muito mais limitadas do que aquelas de que nós dispomos, misturou duas realidades que de nenhum modo são iguais: a matrilinearidade e o matriarcado. Se bem que seja inegável que a maioria das sociedades arcaicas ou primitivas conhecidas funcionam ou funcionaram segundo o modelo de descendência matrilinear, o sistema confere o poder ao tio materno e não à própria mulher. Engels não se dá conta da importância que tem o lugar de residência da família. Segundo seja o marido quem vai residir com o clã da sua mulher (matrilocalidade) ou a mulher quem vai residir com o clã do seu marido (patrilocalidade), as relações de força entre os sexos são completamente diferentes.

A generalização da patrilocalidade marca mais claramente a derrota histórica do sexo feminino (conceito por outro lado ambíguo, ao evocar uma batalha em toda a regra e não uma série de processos contraditórios desenvolvidos no seio de formações sociais transitórias, ao longo de milênios) que o aparecimento da escravatura, do Estado, da patrilinearidade e da família patriarcal. Além disso, Engels baseia a origem da degradação do estatuto das mulheres numa divisão primitiva do trabalho (o homem caça, as mulheres cultivam e coletam…) suscetível de proporcionar aos homens a capacidade de apropriação do sobre-produto social. Porém, nós pensamos que não existe uma divisão sexual do trabalho “natural” e universal. Os homens fazem o mesmo que as mulheres, e vice-versa: tudo depende da sociedade em que se encontrem. Inclusive a fiação e tecelagem, atividades femininas por excelência, são realizadas pelos homens em algumas tribos da África do Norte. O que é válido para as sociedades de classes o é para as sociedades primitivas: o que conta não é a natureza do trabalho, mas sim as relações sociais em cujo seio se realiza.

Não é este o lugar para desenvolver as hipóteses de investigação sobre o estatuto da mulher nas sociedades pré-classistas, e ainda menos sobre a origem histórica da opressão das mulheres, tema em relação ao qual é pouco provável que se imponha uma resposta definitiva. Diremos unicamente que o método mais frutífero nos parece ser o que procede dos conceitos clássicos do marxismo. Inclusive para as sociedades em que as relações de produção sejam mediadas pelas relações de parentesco, as perguntas mais úteis são estas: quem produz? Quem controla a produção? Em benefício de quem se exerce as relações de parentesco?

Por conseguinte, defendemos a idéia de que as sociedades pré-classistas conhecidas, quase todas elas patrilocais, matrilineares ou patrilineares, funcionam sobre a base da apropriação coletiva, por parte dos homens, da força de trabalho das mulheres. Esta situação pode constatar-se nas sociedades primitivas atuais; pode deduzir-se do estudo das formações arcaicas onde domina a escravatura feminina e onde a adequação ideológica feminilidade/escravidão é uma constante[7]. Pensamos, pois que a revolução escravagista e a apropriação privada dos meios de produção se inscrevem em ruptura / continuidade com as sociedades de linhagem, onde a apropriação coletiva do trabalho feminino e a desvalorização de um grupo humano no seio de um clã proporcionavam um modelo às formas posteriores de exploração. Não obstante, se bem que acreditemos que a primeira forma de luta de classes opôs mulheres a homens, não deduzimos dessa anterioridade histórica, a primazia da luta dos sexos nos modos de produção ulteriores[8]. O aparecimento da escravidão modifica a contradição essencial e redistribui os homens e mulheres bem função do seu lugar na produção.

Não obstante, as mulheres não são distribuídas da mesma forma que os homens no seio das classes fundamentais: se bem que a situação de classe das mulheres das camadas exploradas não coloque problemas (embora nunca sejam exploradas “como” os homens), a das mulheres das classes dominantes torna-se muito mais difícil de discernir em determinados períodos da história; a que classe pertencia na Antiguidade a mulher do aristocrata ateniense, casada aos doze anos, encerrada no gineceu, privada de todo o controle sobre os seus bens e trabalhando junto às suas servas?

Engels caracteriza o segundo período da história das mulheres pela sua exclusão da produção. Desde o nascimento da escravidão até a manufatura, as mulheres dedicar-se-iam, antes de tudo, à reprodução nos dois sentidos do termo: a mulher converte-se na primeira serva, foi afastada da produção social. Só a grande indústria – e unicamente à mulher proletária – lhe voltou a abrir as portas da produção social[9]. Esta afirmação aceitam-na muitos marxistas. Moynot[10] escreve que na história a força de trabalho masculina jogou o papel principal, já que as mulheres estavam dedicadas a cuidar dos filhos e às tarefas domésticas. Esta tese parece-nos anacrônica e inaceitável. Anacrônica porque defende uma divisão entre as esferas da produção e da reprodução que só se dá no capitalismo. Tomemos o exemplo de uma comunidade camponesa, no apogeu do modo de produção feudal: a divisão sexual do trabalho era absoluta e imutável. Porém não reflete a oposição trabalho produtivo/trabalho reprodutivo. As mulheres realizam certos trabalhos agrícolas, os mais pesados, os homens fazem o resto: todos produzem. As mulheres fiam, atividade tão produtiva (por vezes a lã fiada comercializava-se) como os trabalhos do campo destinados em grande parte ao consumo próprio. E as tarefas domésticas? Eram bastante limitadas dadas as condições de vida e alimentação, e estavam freqüentemente atribuídas aos avos ou aos filhos mais crescidos[11]. Além de anacrônica, esta tese é inaceitável porque nenhuma formação social conhecida na história pôde prescindir da utilização massiva da força de trabalho das mulheres para a produção.

Apenas o estudo detalhado de uma sociedade num dado momento, pode permitir determinar os papéis respectivos da força de trabalho feminina e masculina, papéis afinal de contas muito variáveis. Porém, sustentar que todas as mulheres ficaram excluídas da produção é produto da ideologia patriarcal que apresenta o trabalho das mulheres como um não trabalho. Improdutivas as escravas dos grandes monarcas asiáticos ou de Mecenas, que eram operárias têxteis, ou cultivavam os extensos domínios dos reis e dos templos? Improdutivas as camponesas medievais? Pelo contrário, o que caracteriza a utilização da força de trabalho feminina é a combinação dos trabalhos produtivos mais desvalorizados com as tarefas de reprodução, apresentando-se freqüentemente uns como a extensão dos outros. A exclusão da produção apenas se verifica realmente nas sociedades de classes não capitalistas, para as mulheres das classes dominantes. E ainda assim, estas se diferenciam dos homens pelo fato de que quase sempre trabalham: são a primeira serva, tanto no gineceu como na mansão feudal, enquanto que o seu marido está totalmente ocioso, dedicando-se, consoante a época, à política, à guerra ou à caça.

Também nos parece pouco operativa a distinção produção/reprodução para compreender a condição da mulher nos modos de produção escravagista ou feudal. Parece-nos mais interessante partir da realidade do estatuto pessoal das mulheres e, a partir daí, constatar que a utilização de sua força de trabalho, em qualquer trabalho, nunca se faz como a dos homens a não ser no quadro das relações sociais específicas de dominação. Nas origens das sociedades escravagistas, as escravas-mulheres eram muito mais numerosas; se depois se alcança uma igualdade numérica, as possibilidades de libertação da escravidão são muito desiguais entre os sexos, uma vez que uma escrava traz consigo uma riqueza suplementar: os seus filhos. Na sociedade medieval, entre a camponesa e o seu senhor, existe um intermediário necessário, o pai ou o marido, a quem a tradição concede a propriedade do seu trabalho e da sua pessoa. Tomemos o exemplo do camponês livre da Europa Ocidental, possui a propriedade útil da terra, pode vendê-la, abandoná-la; deve numerosos impostos a seu senhor, mas é um homem livre. No caso da camponesa, a terra não lhe pertence (raramente herda), nem tampouco o produto do seu trabalho; não pode partir porque depende da autoridade paterna ou marital. Ela não é livre.

Sem dúvida, camponês e camponesa pertencem fundamentalmente à mesma classe: os seus interesses, face ao senhor, confundem-se; e o seu lugar no processo de produção é semelhante. Mas resulta evidente que no seio da classe explorada, as mulheres constituem uma camada que se define não só pela sua situação de classe, mas também pelo seu estatuto pessoal na família, estatuto cujas semelhanças com a escravidão são evidentes. Uma mulher não se pertence a si mesma. O marido ou o pai, por mais explorados que sejam, exercem sobre ela, nestas sociedades em que a autoridade se distribui em todos os níveis do tecido social, um poder econômico (controle do trabalho) e político (manutenção da hierarquia).

b) Uma intuição acertada

Marx e Engels intuíram muito bem a forma como o capitalismo introduziu uma fissura na situação das mulheres e na natureza da família. Na época do capitalismo selvagem, quando a situação das mulheres proletárias parecia mais atroz que a das camponesas, souberam ver que a lógica do novo modo de produção o levaria a criar as condições objetivas para a emancipação. Ao enviar tendencialmente cada vez mais mulheres para a esfera da produção social, ao proletarizar um número de trabalhadores cada vez maior, retirando da família o seu papel de transmissão de propriedade, o capitalismo minava (parcialmente) as bases da dominação masculina. Se bem que esta visão nos pareça hoje excessivamente unilateral, ainda que Marx e Engels tenham se equivocado quanto aos ritmos, o capitalismo tardio justifica em parte a sua análise. Basta comparar a condição das mulheres do terceiro mundo, tão parecida, respeitando as proporções, à das nossas bisavós, com o estatuto atual das mulheres nos países imperialistas, para nos convencer disso. Papel positivo, também atribuído por Engels, à inserção das mulheres na produção capitalista (para além de algumas fórmulas ambíguas), tinha o mérito de legitimar o direito das mulheres ao trabalho numa época em que a maioria do movimento operário descrevia as trabalhadoras como ladras de emprego. Hoje esta posição, com alguns matizes (o acesso ao trabalho assalariado não é uma condição suficiente de libertação, uma vez que as mulheres se proletarizam na sua condição de mulheres), continua sendo a base de ruptura com aqueles que põem em causa, na teoria ou prática, a necessidade das mulheres de trabalharem fora de casa. Tampouco encontramos em Marx e Engels a defesa do trabalho doméstico ou da maternidade; e isso deve ser especialmente realçado porque os socialistas utópicos reclamavam direitos para as mulheres em nome da sua função maternal. “Repito: a mulher é tudo na vida de um operário: como mãe atua sobre ele durante a infância; dela e só dela extrai as primeiras noções dessa ciência tão importante de adquirir, a ciência da vida…”[12]. Essa formulação de Flora Tristan poderia ser considerada como uma constatação; mas o “saint-simoniano” Prosper Enfantin, ou os seguidores de Fourier, exaltam a mulher-mãe e as suas obrigações, com uma fraseologia mística perfeitamente sintonizada com a ideologia burguesa que havia se desenvolvido sobre esta questão, nos finais do século XVIII. Engels é infinitamente mais atual ao escrever: “A família conjugal moderna baseia-se na escravidão doméstica, confessada ou velada, da mulher”[13].

Não obstante Marx e Engels não pensaram, como dizíamos na introdução, em forjar uma teoria da opressão das mulheres. Em O Capital, que é onde se realiza a análise das condições de produção do sistema capitalista, não se abordam quase nunca as condições de reprodução. A explicação está na natureza do próprio sistema que produz a separação mais radical entre o universo da produção e o da reprodução, e permite realizar uma análise separada. Deste modo, Marx só se encontra com as mulheres quando se incorporam na manufatura e não aborda a condição das mulheres na sua globalidade. Marx e Engels têm uma teoria da família, mas a estrutura que descrevem é um legado do passado; o papel da transmissão da herança aos filhos legítimos, o enriquecimento graças ao dote da mulher…, são por eles considerados como as características fundamentais da família monogâmica: “soberania do homem na família e procriação dos filhos, que só podem ser dele e estão destinados a herdar a sua fortuna: tais eram (…) os fins exclusivos do matrimônio conjugal”[14].

Marx e Engels tinham razão ao considerarem que esta função da família estava condenada a desaparecer com a generalização do capitalismo. Se bem que estudos realizados sobre a formação dos patrimônios na França demonstrem que a herança desempenha um papel determinante na circulação da riqueza no seio da classe dominante, é evidente que esta não é a função primordial da família para a maioria da população. E, não obstante, a família continua existindo, e com ela a opressão das mulheres.

AS LACUNAS DO MARXISMO

A nosso ver, a teoria marxista apresenta lacunas em três aspectos fundamentais: a utilização diferenciada da força de trabalho feminina e masculina pelo capitalismo; o aparecimento de uma família burguesa, adaptada às necessidades econômico-políticas do sistema; a natureza das relações sociais entre os sexos.

a) Duas forças de trabalho

Marx e seus contemporâneos tiveram que constatar o papel determinante que a mão de obra feminina desempenhou na acumulação de superlucros, nos começos do capitalismo industrial. “Quando o capital se apoderou da máquina o seu lema foi: trabalho para as mulheres, trabalho para as crianças”[15]. A explicação desta preferência parece evidente: as mulheres, ao contrário dos membros das antigas corporações, não tinham qualificação e eram infinitamente mais adaptáveis às novas adequações de trabalho; a sua educação e sobretudo a extrema precariedade da sua existência as fazia dóceis.

Esta explicação é conjuntural, e como tal a dava Marx. Mas, não obstante, a superexploração da mão e obra feminina é, até no capitalismo tardio, um fenômeno estrutural. Ninguém ignora que a desigualdade profissional entre os sexos é a regra em qualquer nível da pirâmide social. A subqualificação não é uma causa, mas uma conseqüência da necessidade do capital dispor de uma mão de obra super explorada. Na França chegou-se ao paradoxo das moças, por terem mais êxito escolar, ficarem menos qualificadas: na sua maioria chegam a níveis de curso secundário, ou de bacharelado, enquanto os rapazes (devido ao fracasso escolar) são reorientados para estudos técnicos de onde saem mais bem adaptados ao mercado de trabalho. De qualquer modo, basta que uma profissão, por muito qualificada que seja, se feminize, para que se desvalorize com uma rapidez surpreendente. Por outro lado, o que Marx constatava para a primeira revolução industrial, volta a verificar-se com a mutação tecnológica atual. As novas formas de trabalho são experimentadas com mão de obra feminina: informática, burocracia, reestruturação dos ritmos de trabalho… Esta constante é suficiente para recusar como superficial a analogia com a mão de obra imigrada da Europa. Os estrangeiros acabaram por integrar-se, exigindo a chegada de uma nova remessa em cada período de expansão econômica. As mulheres não se integram e colocam o problema de saber o que permite ao capital manter a desvalorização da sua força de trabalho.

Um aspecto muito importante é a composição do salário, diferente nos homens e nas mulheres. Marx dá esta definição de salário: o valor da força de trabalho determina-se pelos gastos com a manutenção do operário e da sua família[16]. Esta composição do salário verificou-se globalmente, com exceção dos períodos de crise aguda do capitalismo e do lumpen-proletariado, mas só serve para a retribuição da força de trabalho masculino. Pelo contrário, parece que o trabalho feminino é amputado da parte que os homens recebem para manter a família além de si mesmos. Esta diferenciação no salário parece funcional para todos, uma vez que o sistema postula que todos os assalariados estão casados. A melhor prova encontramo-la nas medidas sociais adotadas nos países capitalistas desenvolvidos em favor das mulheres que, em parte, estão destinadas a compensar a ausência de um marido: subsídios para viúvas, para mães solteiras, para as divorciadas; pensões que as viúvas recebem imediatamente, enquanto os viúvos têm de esperar a sua própria aposentadoria (e esta é uma medida recente), etc… A sociedade prefere assistir a milhões de mulheres em vez de retribuir a força de trabalho definida em igualdade com o dos homens. Em sentido oposto ao das aparências e da legislação burguesa, a distância continua a aprofundar-se: as mulheres são proporcionalmente cada vez mais numerosas entre o pessoal menos qualificado.

É evidente que a existência do salário de apoio procede das exigências da acumulação de lucros; determinar se constitui um elemento conjuntural ou estrutural é abstrato, uma vez que a obtenção do lucro se realiza sempre em condições históricas (e de relações de força) concretas. A persistência do fenômeno através de três revoluções industriais fala a favor do seu caráter estrutural, desde as origens do capitalismo até a sua fase atual. A particularidade desta superexploração consiste em extrair a sua legitimidade de uma instância considerada exterior às relações de produção: a família, e para além da família, do conjunto da sociedade civil que constitui as mulheres em grupo oprimido.

b) A família burguesa não desapareceu

Marx e Engels vaticinavam o desaparecimento da família burguesa em curto prazo, o que se lhes criticou em numerosas ocasiões. Pelo contrário, alguns historiadores e alguns pensadores marxistas afirmavam que a família se reforçaria[17], como corolário da afirmação do Estado burguês. A previsão de Marx e Engels explica-se pelo contexto histórico: a brutal exploração realizada pelo “capitalismo selvagem” tinha separado o operário/a da sua família camponesa e tinha alterado os papéis anteriores. Engels descreveu amplamente, por vezes com formulações ambíguas, a situação inglesa. “Em numerosos casos a família não se desagregou por completo, mas está tudo de pernas para o ar. A mulher alimenta a família, e o homem fica em casa, cuida dos filhos, varre as habitações e faz a comida. Este caso é muito freqüente. Só em Manchester, poderiam encontrar-se várias centenas destes homens condenados ao serviço doméstico. É fácil imaginar a indignação legítima que esta castração provoca nos operários, e o transtorno resultante na vida das famílias, quando as demais condições sociais permanecem iguais”[18].

A família aparecia como uma relíquia das relações sociais pré-capitalistas, sem valor funcional algum a não ser para as classes dominantes. Aqui reside o erro de Marx e Engels, que consideraram um fenômeno conjuntural como estrutural. Este erro é explicável, como dissemos, pelo contexto histórico e impediu-os de elaborar uma teoria da família burguesa. Esta lacuna permitiu aos ideólogos reformistas do movimento operário constituírem-se em defensores da família operária, em aparecer em ruptura demasiado aberta com o marxismo. Com efeito, uma vez transcorrida a primeira fase do capitalismo selvagem, a burguesia sentiu a necessidade de familiarizar, sobre a base de um modelo burguês, uma classe operária considerada móvel e indisciplinada.

Numerosos estudos[19] aparecidos na França nos últimos dez anos, que expressam o novo interesse dos historiadores em relação a estas questões (o qual tem a ver evidentemente com o ascenso do feminismo), mostram o desenvolvimento deste processo a partir de 1870/1880: constituição de um habitat operário mais decente e, sobretudo adaptado à família mononuclear (as casas dos mineiros substituem os barracões); extensão da ideologia da maternidade à mulher operária. Para a burguesia o interesse é óbvio: as tarefas de reprodução da força de trabalho, que o capital não pode então socializar, continuam a ser assumidas no âmbito privado[20];o operário assenta e estabiliza-se, responsabiliza-se através da família; as mulheres continuam a ser definidas pelo seu papel na família, que permite a sua super exploração e a sua utilização como mão de obra de reserva. A burguesia tem contado com a ajuda ativa do movimento operário organizado composto essencialmente, como é sabido, por trabalhadores masculinos qualificados[21]. Isto se explica por vários fatores: a ideologia arcaizante, ao estilo de Proudhon, que enaltecia os méritos da família patriarcal, frente à imoralidade capitalista, era muito forte; a estabilidade dos operários masculinos parecia propícia para sua organização nos sindicatos; acima de tudo, a manutenção de uma maioria de mulheres em casa e a esperança de para lá enviar também o resto, protegia-os da concorrência feminina!

Assiste-se, igualmente, de forma progressiva a generalização para todo o tecido social do modelo de família burguesa, unidade dedicada à reprodução (à margem do universo da produção), à socialização dos filhos e à adequação feminilidade/maternidade. Marx e Engels não destacaram o fato de que o capitalismo no seu primeiro período não estava em condições de socializar uma grande parte das tarefas domésticas. O seu erro não assenta naquilo que consideraram possível, mas em ter analisado pouco a s condições concretas, na sua época, da reprodução da espécie e da força de trabalho. Não obstante, o estatuto da mulher deduz-se precisamente da relação dialética existente entre o trabalho reprodutivo realizado por elas na família e a sua inserção no trabalho para o mercado, sendo este determinado por aquele.

Não considerar as mulheres senão na sua relação com a produção implica não compreender aquilo que faz com que sejam trabalhadores a parte. Enquanto o sistema não estiver em condições de transformar as tarefas domésticas em produtos para o mercado, a sua realização no âmbito familiar supõe uma enorme economia de capital. Marx não compreendeu bem este aspecto, e afirmava que o trabalhador encontrava no mercado os meios para reproduzir a sua força de trabalho. O trabalho doméstico era considerado na teoria marxista clássica como um não trabalho, o que por outro lado é contraditório com a fórmula de Engels sobre a escravatura doméstica. Descritas comodamente como gratuitas, as tarefas domésticas não o são totalmente. O trabalhador masculino recebe no seu salário uma parte para que viva (ou sobreviva) com a sua família e, por conseguinte, recebe de certo modo uma retribuição para o trabalho doméstico da sua esposa. Esta constatação não é contraditória com a função de economia de capital do trabalho doméstico. O sobre-salário masculino (a diferença do salário feminino) não cobre nunca o custo das horas de trabalho doméstico, nem sequer pagas ao nível de salário mínimo.

Quer isto dizer que Marx e Engels se enganaram e que o capitalismo produziu um reforço da família? O termo “reforço”, utilizado tão freqüentemente, não é adequado. A burguesia não impõe um estreitamento das relações familiares pré-capitalistas, mas um modelo diferente de família. A novidade consiste numa consolidação da base econômica desta nova família como resultado da reprodução no âmbito privado? A novidade, como vimos, consiste na separação geográfica e econômica entre produção e reprodução. Mas nas sociedades não capitalistas, as tarefas chamadas de reprodução também eram assumidas pelas mulheres no seio da família; o sistema atual apropriou-se desta situação. Inclusive pode se dizer que o capitalismo socializa tendencialmente mais trabalhos realizados noutras épocas no âmbito familiar. Desde a primeira revolução industrial, começa a desaparecer nas cidades a produção familiar dos alimentos básicos (pão, legumes, carne); as roupas podem adquirir-se progressivamente no mercado… Por seu lado, o capitalismo tardio demonstra a capacidade do sistema em alargar ao reino da mercadoria amplos setores da reprodução (desenvolvimento fulgurante da confecção, pratos prontos, lavanderias…). Mesmo o consumo perde algo do eu caráter familiar para ser cada vez mais individual[22]. Este novo estágio do capitalismo corresponde logicamente a uma nova onda de acesso das mulheres ao mercado de trabalho.

Neste processo podemos destacar dois elementos fundamentais: a realização pessoal do trabalho doméstico não é estruturalmente indispensável para o funcionamento do sistema, mas é necessária em longo prazo: o estatuto da mulher está inserido na relação mercado de trabalho / família, mas a determinação em última instância, que modifica a sua condição, reside nas exigências de acumulação de mais-valia no próprio coração do sistema.

Onde se encontra então a especificidade da família burguesa em relação a formas anteriores? Evidentemente, no terreno político. A família materializa a ruptura entre o homem privado, por um lado, e o produtor e cidadão por outro; encarna com eficácia o individualismo burguês (família mononuclear voltada sobre si mesma), assegurando simultaneamente ao indivíduo um lugar com um mínimo de solidariedade afetiva; assegura, mais do que nunca e apesar da escolaridade obrigatória, a socialização dos filhos. Todos os sociólogos o sublinham: já não existe o casamento por interesse, mas por amor, e desta forma a família mantém-se como valor-refúgio no hit-parade de todas as pesquisas. Esta função sócio-política é suficientemente eficaz, e bastante independente das estruturas econômicas, para ser integrada, sem modificações pelos estados da Europa do Leste, onde presta praticamente os mesmos serviços às camadas dirigentes.

A interiorização deste modelo é muito forte em todo o lado, e contribui para a alienação de quem constitui o pilar desta estrutura: as mães particularmente. Mas o processo é contraditório. Efetivamente, nas sociedades não capitalistas, a família funciona indiscutivelmente como lugar de opressão das mulheres; nestas formações sociais fundamentalmente desiguais, onde o Estado é mais débil, a autoridade se dispersa por todos os níveis do tecido social segundo as hierarquias de nascimento, função, idade, sexo, aceitas como imutáveis. Os homens dominam as mulheres porque Deus (ou a natureza) assim o quis. O Estado moderno, encarnação do direito acima das classes e dos grupos, teve que romper com estas hierarquias intermediárias, proclamando a liberdade e a igualdade do indivíduo perante ele; esta evolução corresponde obviamente às necessidades que o capital tem de mão de obra “livre”. Deste modo, a família, lugar onde se exercia a autoridade masculina, encontrou-se – lenta e parcialmente – esvaziada deste papel, por razões objetivas (lógica do sistema) e subjetivas (lutas das mulheres). A participação das mulheres na produção para o mercado, o acesso a níveis de estudos idênticos aos dos homens, o discurso burguês sobre a igualdade formal de todos os indivíduos, entraram em contradição com o estatuto de opressão das mulheres, tanto no trabalho como na família. Este fenômeno foi pressentido por Marx e Engels porque está na lógica do sistema, mas a sua manifestação foi mais lenta e contraditória do que eles previram. Além do mais, este fenômeno está muito longe de estar concluído; nele, a intervenção consciente das mulheres organizadas é um elemento decisivo.

c) A questão das relações sociais

A terceira lacuna na teoria marxista reporta-se à natureza das relações sociais entre homens e mulheres. Há que dizer, no entanto, que Marx e Engels souberam empregar termos muito mais vigorosos do que os seus distintos epígonos que se dedicaram fervorosamente a negar a opressão das mulheres em nome da unidade operária. “A (família) contém em miniatura todos os antagonismos que, posteriormente, se desenvolverão amplamente na sociedade e no seu Estado” (Marx). “O (matrimônio conjugal) apresenta-se como o submetimento de um sexo por outro, como a proclamação de um conflito entre os dois sexos” (Engels).

Mas, apesar disso, o que nem um nem outro realmente viram é o fundamento, no sistema capitalista, da atualidade dos conflitos entre os dois sexos.

Algumas feministas falaram de exploração das mulheres pelos homens através do trabalho doméstico[23]. A noção de apropriação da força de trabalho das mulheres pelos homens através do trabalho doméstico e da reprodução, não parece operativa para as sociedades pré-classistas. Há que discuti-la caso a caso, quando se trata de sociedades classistas não capitalistas. Mas não serve para o capitalismo. Exploração implica extração de mais valia no mercado da produção mercantil e separação radical entre o proprietário do capital e o trabalhador. Nada disso se dá no caso do trabalho doméstico. O seu destino é operar no âmbito doméstico, sem nenhum critério de rentabilidade e, portanto sem ser produtivo (no sentido marxista do termo). Pode-se admitir que o marido representa a força de trabalho da sua esposa através do seu próprio salário, mas os seus interesses não são radicalmente contraditórios; ambos são juridicamente proprietários do salário do marido, dos bens produzidos em casa, e nenhum dos dois está interessado em diminuir a parte do outro. Além do mais, o esposo espera um serviço; não está diretamente interessado na produção da esposa: pouco lhe importa que a lavagem de roupa se realize em uma ou duas horas, desde que seja feita; e quando toda a roupa estiver lavada, não irá buscar roupa suplementar na casa do vizinho só para que sua mulher se mantenha ocupada.

Excluir o conceito de exploração não nos leva a ver na dominação masculina um mero atraso de consciência.Vimos como o capitalismo tem funcionado com super exploração do trabalho feminino, com as poupanças conseguidas graças a ele para a manutenção da força de trabalho global. É evidente que a mediação necessária é a atribuição de um estatuto desvalorizado a todas as mulheres, em todos os níveis da sociedade civil. Não fazia falta uma grande imaginação criadora. Bastava manter, adaptando-a a opressão milenar, com o apoio ativo dos que extraem vantagens materiais e morais indiscutíveis, em qualquer classe social. Os homens encontraram-se com um estatuto coletivo de opressores garantido, com migalhas de mais-valia (salários mais elevados), privilégios sociais (não realizar o trabalho doméstico) e ideológicos. Este último provoca nos mais explorados sentimentos do tipo dos do pequeno-burguês colonialista face aos naturais do país colonizado, que constituem um fator importante no mascaramento da consciência de classe. Obviamente, as mulheres e os homens estão nas diferentes classes do sistema capitalista. No interior de cada classe os seus interesses históricos são idênticos (se bem que pudéssemos questionar-nos sobre os interesses contraditórios das mulheres burguesas). Mas conjuntural e concretamente as coisas são de outra forma: competição pelo emprego, especialmente sentida em períodos de crise; competição pelo acesso a lugares importantes; competição no mundo político ou sindical, um dos bastiões masculinos mais defendidos… As relações sociais entre homens e mulheres não se encaixam com facilidade no marco de conceitos pré-estabelecidos. Falar de escravidão ou servidão supõe não entender a liberdade jurídica, a “igualdade” de que gozam as mulheres hoje. Os homens estão dotados, desde o nascimento, de uma situação global de privilégio em relação às mulheres da sua classe e, em certos aspectos, em relação a todas as mulheres. Torna-se esclarecedora uma analogia parcial com as minorias raciais (do tipo das dos Estados Unidos), com a enorme diferença de que no dito caso a opressão não se exerce individualmente: cada branco não tem o seu negro para dominar. Se acrescentarmos que a antiguidade desta opressão, juntamente com a imediatez da relação homem/mulher, lhe confere um papel primordial na estruturação da personalidade individual, poderemos afirmar a sua capacidade para permanecer para além das relações de produção capitalista, e inclusive para além da família atual. Os conflitos entre os sexos (se bem que fragmentados pela luta de classes) existem; podemos vê-los todos os dias. Que a evolução interna do capitalismo tenha proporcionado parcialmente uma base objetiva e contraditória para a sua superação; que a destruição do sistema amplie esta base objetiva: tudo é evidente. Mas ainda que Marx e Engels dificilmente pudessem tê-lo compreendido, o fator subjetivo, a luta autônoma das mulheres, é o determinante.

O Feminismo, superação do marxismo?

Há quem, em nome da luta independente das mulheres, tenha recusado o marxismo por inadequado. Poderemos classificar brevemente estes novos enfoques metodológicos em duas grandes correntes. A primeira critica o marxismo como economicista e pela sua incapacidade em explicar os conflitos entre os sexos. A segunda pretende completar o marxismo com uma teoria sobre o modo de produção patriarcal, supostamente paralelo ao capitalismo. Como não podemos explicar aqui os distintos matizes das teses colocadas, limitar-nos-emos a referir-nos àquelas que, na França, dão coerência às correntes do feminismo organizado.

O grupo “Psicanálise e Política” apresenta-se desde a sua criação como portador de uma teoria nova, que realizaria a fusão do marxismo e da psicanálise. Considera que o marxismo contribui com um conjunto de conceitos úteis: exploração, poder de Estado, luta de classes, imperialismo, bem como uma análise das relações dos homens (masculinos) entre eles. A psicanálise, reinterpretada e socializada pelas chefes do grupo, proporciona o fundamento metodológico para a análise das relações entre os sexos. O enfoque é o seguinte: a diferença sexual induz uma relação de cada um com o seu corpo que é diferente consoante o sexo, que por sua vez induz uma relação antagônica com o simbólico. Já o grupo MLF pensa, como Lacan, que o âmbito do poder, do fazer, da palavra construída é masculino, enquanto a resistência ao poder, o discurso inarticulado do corpo, a imediatez da vida são femininos. O campo social está estruturado por esta polaridade simbólica; para manter sua dominação, os homens levaram as mulheres a renunciar à sua verdadeira identidade e a entrar no modelo dos valores patriarcais (racionalidade, poder…). Desta forma, a sociedade atual é a sede de dois conflitos que se desenvolvem paralelamente, se bem que um sobredetermina o outro: a luta de classes que os homens desenvolvem entre si, expressão do seu gosto imoderado de submeter o vizinho; e a revolução simbólica assumida pelas mulheres mais conscientes para encontrar a sua identidade, subverter a ordem a ordem patriarcal e, conseqüentemente a sociedade capitalista que dela resulta.Esta luta só pode ser levada a cabo através de uma separação radical com os homens, a “independência erótica e política”.

Por que razão esta corrente – perdendo influência mais por razões políticas que teóricas – conseguiu seduzir muitas mulheres, sobretudo nos meios intelectuais? É inegável que oferece uma resposta a um problema abandonado pelos textos marxistas: como justificar a profundidade da interiorização, por ambos os sexos, da opressão das mulheres? De que forma explicar a persistência da polaridade sexual dos símbolos e dos valores que transcende os modos de produção? É certo que falta ao marxismo uma teoria do sujeito, considerado na sua globalidade – e de sua alienação – e não só como agente econômico. A psicanálise – ao decifrar os comportamentos individuais e coletivos – é um instrumento para o estudo da alienação, o acesso à linguagem, a estrutura da língua, o universo dos símbolos… Encontra-se fortemente marcado pela dicotomia sexual, que se afirma como um componente da estrutura da personalidade. Atualizá-lo, analisá-lo, tanto pode ter um papel corrosivo como de reforço da ordem social. É este último caso que ocorre quando se eleva a psicanálise até uma filosofia do ser. Então o “conteúdo” do inconsciente apresenta-se como uma invariante da espécie humana, e não como uma interiorização por parte do indivíduo e da coletividade de uma situação dentro de determinados limites históricos. A escola de Jung e os seus mais recentes epígonos, que pretendem encontrar os fantasmas universais da humanidade nos mitos das sociedades arcaicas e primitivas, postulam a estruturação dualista do inconsciente entre o masculino e o feminino (animus-anima). A tradução do terreno de valores, como poderá prever-se, é uma coleção de preconceitos patriarcais: mulher igual a passividade, irracionalidade, matéria… A recente obra de G Devereux, “Mulher e Mito”, é um modelo do gênero. Na sua busca de uma identidade feminina, “Psicanálise e Política” tem que reproduzir os mesmos tópicos e a mesma ideologia reacionária. Com efeito, o que pode ser uma identidade feminina? Uma relação com o corpo e com a sexualidade diferente das do homem? De acordo, se bem que não se deve esquecer que a relação com o corpo na espécie humana, não é de modo algum imediata, mas sempre determinada pela história. Temos que deduzir desta relação com o corpo uma diferença no psiquismo do indivíduo? Crê-lo seria cair num determinismo biologizante, e /ou na velha idéia segundo a qual as mulheres não são mais do que o seu corpo. O útero para todas as mulheres, proclama “Psicanálise e Política”[24] . Os e as marxistas têm de recusar esta interpretação da psicanálise, e denunciar as filosofias da diferença que se desenvolvem desde há uma dezena de anos.

Por parte das mulheres, também, se encontra este desejo de descobrir os valores femininos como o neofeminismo americano (Betty Friedan). Por parte da nova direita[25], lançam-se diatribes contra as filosofias monistas, culpadas de querer pensar com conceitos universais quando nesta terra reina a diversidade (digamos desigualdade) das etnias, das religiões, dos sexos dos indivíduos. Diversidade que não poderia compreender-se melhor que através dos critérios próprios de cada grupo humano. Este enfoque faz o pensamento recuar não só para além do marxismo, mas para além da filosofia clássica. Para as mulheres é fatal porque, pense o que pensar o grupo MLF, é o mesmo discurso do opressor. É verdade que esta corrente não adota até as suas últimas conseqüências a lógica da diferença, já que atribui uma função determinante e totalizante ao universo simbólico: é ele que reproduz as relações sociais e as sobredetermina. Não obstante, fazer depender o processo histórico de uma invariante que imobiliza dois grupos humanos numa alteridade radical é colocar a existência de dois campos de pensamento, e sobretudo de dois campos de ação: subversão simbólica para as mulheres, luta de classes para os homens. A força do marxismo, pelo contrário, reside no fato de ser a metodologia que permite a reconstrução dos fragmentos dispersos da opressão das mulheres (trabalho, família, valores,…) num conjunto que lhes dê sentido. Introduz as mulheres na história e no social, de onde tinham sido expulsas pela ideologia patriarcal (não pela realidade). E desta forma situa as mulheres não à margem da luta de classes, mas no próprio coração da luta de classes. E não por miserabilismo, por que elas são as mais exploradas, oprimidas… Mas porque a sua opressão permite que o mistério capitalista funcione em todos os níveis e porque esta opressão remodelada pode transmitir-se a outras sociedades opressoras.

A subversão simbólica? Quem se lhe pode opor? Mas não se entende muito bem como pode levar-se a cabo fora de um processo social que ponha em jogo o conjunto das relações de produção e à margem da inserção das mulheres neste processo. Quanto ao conteúdo da subversão simbólica, os desacordos com “Psicanálise e Política” são evidentes. Estabelecer uma norma de valores femininos e masculinos é reacionário; impô-los em nome da identidade reencontrada, tem ressábios autoritários. Acaso os homens são mulheres e vice-versa? Não há dúvidas que uns são opressores e as outras oprimidas: a relação com o mundo é notavelmente distinta… Então, a redução das diferenças entre os sexos empobreceria a humanidade, como proclamam as ideologias antifeministas e algumas mulheres. Que pensar da mutilação imposta a todos os indivíduos, obrigados a dobrar-se às normas impostas pela sociedade devido ao seu sexo, desde a atitude corporal até as idéias e comportamentos? O rancor da vítima, a necessidade satisfeita do opressor são os corolários necessários dos racismos étnicos ou sexuais. Podemos duvidar seriamente do seu valor enriquecedor.

A outra crítica feita ao marxismo reprova-lhe que distribua as mulheres no seio das classes, apagando assim a unidade da sua opressão. Em alguns casos sustenta-se a formulação seguinte: toda mulher sofre uma discriminação e a mulher burguesa continua a ser uma oprimida. “As mulheres enquanto grupo objetivamente explorado na sociedade dos homens formam uma categoria social à parte cujas características são as mesmas, qualquer que seja a classe em questão”, escreve Anne Tristan na História do Movimento de Libertação das Mulheres. Quanto à tal formulação, torna-se bastante fácil responder que a opressão se manifesta de formas bem distintas num bairro popular ou numa zona residencial.

Noutros casos, para fundamentar a unidade das mulheres, erige-se a família em instância determinante para o funcionamento econômico do capitalismo. A idéia é a seguinte: a reprodução da força de trabalho, vital para o capitalismo, é realizada pelas mulheres; o sistema não pode renunciar a isso sem destruir-se a si mesmo. A família reproduz as relações de produção: a existência do mundo como mercado de mercadorias baseia-se na existência de um modo de produção doméstico excluído deste mercado (Etre exploitée, pág 128). Deste modo, todas as mulheres ficam definidas por esta função precisa, face às classes dos homens. Esta teoria parece-nos falsa em dois aspectos fundamentais. Em primeiro lugar, autonomiza a família burguesa até ao extremo de convertê-la numa instância determinante para a perpetuação do sistema (daí o caráter revolucionário que estas mulheres atribuem à exigência do salário doméstico…). É possível um capitalismo sem família? É absurdo responder a esta pergunta em abstrato, à margem de todo o contexto histórico e geográfico. Mas em alguns períodos e em algumas camadas sociais, o sistema rompeu com o marco familiar, se bem que o tenha reconstruído depois: desmembramento da família operária nos primeiros tempos do capitalismo selvagem, proibição de constituir uma família[26]. Além disso, podemos ver como a terceira revolução industrial desenvolve uma certa socialização das tarefas domésticas. Em segundo lugar, ignora a mulher que trabalha fora de casa. Em que classe se inclui? Qual é a relação entre o seu trabalho fora e as suas funções em casa? Mistério…

Outras feministas vão ainda mais longe. O marxismo descreve um modo de produção, porém há dois: o capitalismo, baseado na exploração do homem pelo homem (no masculino), e o modo de produção familiar, baseado na exploração do trabalho gratuito das donas de casa pelo homem, numa relação de escravidão. Ambos os sistemas, segundo Christine Durand (artigo já antigo em Partisans N 48-49; artigos mais recentes em Questions féministes) são teoricamente independentes um do outro. Também a isso opomos duas objeções essenciais. Primeiro, não se pode falar de exploração no caso do trabalho doméstico, pelo menos no sentido marxista do termo, como já dissemos antes. Se o fato de pertencer à classe mulher se baseia no trabalho doméstico que se realiza para um homem, basta permanecer solteira para se excluir da condição de explorada? Segundo, a coexistência de dois modos de produção é, na atual etapa do capitalismo, uma pura ilusão. Havia que demonstrar que a família é uma unidade econômica que funciona na base de uma lógica específica, à margem do capitalismo. Porém tudo indica que a evolução desta estrutura se dá em estreita dependência com as exigências, a evolução, as tranformações do sistema.

Na realidade todas as teorias que afirmam a superação do marxismo têm um ponto em comum: dão uma visão estática da realidade, desprovida de toda a perspectiva histórica. Eis aqui a opressão das mulheres, tal como a eternidade a estabeleceu…

E, se bem que sobre a questão da mulher não seja suficiente ler Marx, o método marxista – a história fazendo-se por superação de contradições sucessivas – constitui um instrumento insubstituível.

Fonte: Frédérique Vinteuil, “Marxisme et féminisme”, Critique Communiste, numéro spécial sur Marx, 1983. Tradução: Cadernos Democracia Socialista.

1 Texto publicado em Marxismo e Feminismo, cadernos Democracia Socialista, Vol. 8. Editora Aparte 1989.

2 Ver os livros de J. P. Vernant e M. Destienne sobre a mitologia grega.

3 Ver Marcel Granet – La pensée chinois.

4 Ver as obras de G. Dumézil.

5 George Duby – La femmme,lê pretre, lê chevalier.(Publicado em português: O cavaleiro, a mulher e o padre. Lisboa: Dom Quixote, 1992).

6 Ver as obras de Ph. Aries, e também de E. Batinder – L’amour em plus.

7 M. Destienne – Esclavage et gynécocrtie en Gréce Antique.

8 Esta tese é defendida particularmente por S. Firestone – A Dialética do Sexo, e por F. D’Eaubonne – Lês femmes et le patriarcat.

9 Engels – A Origem da família, da propriedade privada e do Estado.

10 J. Moynot – artigo em La condition fémminine, CERM.

11 Ver E. Shorter – Naissance de la famile moderne.

12 Flora Tristan. Texto de fundação da “União Operária”.

13 Engels, op. cit.

14 Engels, op. cit.

15 Marx – O Capital, livro I, capítulo II.

16 Marx – O Capital, livro I, capítulo II.

17 Critique Communiste n. 20-21 (Dezembro 77 – Janeiro 78).

18 Engels – A Polícia das Famílias.

19 Ver Revoltes logiques n. 1 a 5; Recherches n. 25; Rémy Butler, Patrice Noisette – De la cité ouvière au grand ensemble, Françoise Mayer – L’education dês files ou XIX siécle.

20 Muitos poucos sabem que o capitalismo selvagem tinha posto de pé serviços coletivos (creches), evidentemente em condições detestáveis, que desapareceram nos finais do século XIX.

21 Madeleine Guilbert – Les Femmes et l’organisation syndicale jusqu’em 1914.

22 Ver os estudos sobre o consumo dos jovens e também das mulheres atualmente; a crise econômica tem pressuposto um certo retorno aos objetos feitos em casa.

23 Ver C. Durand. Partisans n. 54-55; Etre exploitée, obra de um coletivo italiano.

24 A palavra de ordem “O útero para as mulheres, as fábricas para os operários” foi lançada pelo grupo Psychoanalyse et Politique.

25 Ver as publicações do Club de l’Horloque.

26 Ângela Davis, em A Condição Feminina CERM p.189. “Segundo a lei sul-africana, as mulheres negras que não têm emprego são expulsas das zonas brancas (quer dizer, de 87% do país), incluindo as cidades onde os maridos vivem e trabalham. Quando as mulheres conseguem encontrar é-lhes freqüentemente atribuída residência em hotéis em que se aplica a separação entre os sexos e, por conseguinte, a vida familiar está proibida.”

27 Do original A propos des rapports sociaux des sexes publicado na Revista “M”, Paris n. 53-54, abril-maio, 1992, traduzido por Marta Julia Marques Lopes.

28 A literatura à qual fazemos alusão é vasta. Cada ponto deste capítulo precisaria ser desenvolvido e discutido aprofundamente, o que este pequeno artigo não permite. Mesmo que reduzido, este giro nos parece útil para dar aos leitores neófitos alguns pontos de esclarecimento.

* Enjeux (do francês) não encontra tradução exata em português. Significa literalmente “o que está em jogo”. Assim sendo, utilizamos neste texto o termo “disputar” ou “centro de disputas”. (N.da T.)

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