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A Ditadura do Mercado – origem e derrota do neoliberalismo no Chile | Ubiratan de Souza

O processo constituinte, em curso, será decisivo para terminar com o ciclo do modelo neoliberal da constituição de 1980 e iniciar uma nova era para a sociedade chilena.

Foto: OPAL

Entre 4 de novembro de 1970 a 11 de setembro de 1973, o Chile viveu o governo da Unidade Popular (UP), liderado pelo Presidente Salvador Allende, uma experiência extraordinária de um processo democrático, político e econômico de transição para a construção de uma sociedade socialista e com soberania nacional. O governo da UP implementou um programa com a nacionalização do cobre, ferro, salitre, companhia telefônica (filial da ITT norte-americana) e estatizou o sistema bancário, incluindo o City Bank. Esta política contrariava os interesses das empresas norte-americanas. A UP também avançou na gestão pública com participação popular e autogestão com as empresas de propriedade social, reforma agrária, redistribuição de renda e planificação do Estado.

Este rico e exitoso processo da via chilena para o socialismo, em democracia, foi brutalmente interrompido a partir de um golpe de estado, em 11 de setembro de 1973, que derrubou o Governo legítimo da Unidade Popular (UP), bombardeando e incendiando o Palácio de La Moneda, matando o Presidente Salvador Allende. Este golpe foi organizado pelas elites chilenas com o governo dos Estados Unidos para preservar seus interesses econômicos e geopolíticos. Com uma repressão generalizada aos sindicatos, partidos de esquerda, movimentos populares e população em geral, o terror foi instalado com campos de concentração e fuzilamentos de líderes políticos e sociais. Nascia assim, o projeto do neoliberalismo chileno implantado a ferro e fogo por uma ditadura militar.

A Junta Militar encabeçada por Pinochet, em 11 de março 1974, seis meses depois do golpe de Estado, publica uma Declaração de princípios e posteriormente a institucionaliza na Constituição de 1980, elaborada por uma equipe liderada por Jaime Guzmán, ideólogo da extrema-direita chilena e do pinochetismo. A Constituição da Ditadura Chilena define como princípio fundamental o individualismo, a primazia da propriedade privada e da livre iniciativa no campo econômico, subordinando o Estado totalmente ao interesse privado. Ademais, esta constituição foi escrita para assegurar o poder aos setores mais conservadores da sociedade, mesmo que no futuro saíssem do governo, teriam seus interesses garantidos na lei. Estabeleceu, também, o sistema distrital binominal de deputados e senadores, favorecendo os partidos de direita e a supressão dos partidos de esquerda.

Desta maneira, Pinochet com a Constituição de 1980, a repressão política ao movimento de resistência clandestina à ditadura e a população em geral, importando as teorias de Milton Friedman e seus Chicago Boys, implanta o modelo neoliberal no Chile, que funciona como uma ditadura do mercado, impondo regras a toda a cidadania, na saúde e educação (privatizadas), nas relações de trabalho (precarização), extinção da previdência semi-estatal e a implantação das AFP (Administradoras de Fundos de Pensão) com a contribuição e capitalização somente  do trabalhador, no cobre (privatização), na economia completamente aberta e o capital  financeiro predominando sobre todas as atividades.

Em 1983, a crise no modelo econômico neoliberal aproxima os setores médios dos setores populares, e mesmo com toda a repressão política, tem início os protestos  populares contra a ditadura militar e do mercado com os  mineiros do cobre, os estudantes e a população dos bairros e vilas populares. Neste mesmo ano, se constitui  o  Frente Patriótico Manuel Rodrigues – FPMR (braço armado do Partido Comunista  chileno) que passa a dar cobertura para os protestos nos bairros e vilas populares cortando a luz e outras ações armadas de resistência à ditadura militar. Em 1986, o FPMR, realiza a “Operação Século Vinte”, visando atingir a cabeça do regime de terror, com um atentado ao Ditador Pinochet que se salva por muito pouco. 

Em 1987, a Democracia Cristã (DC) e o Partido Socialista (PS) começam conversações com a direita, excluindo o Partido Comunista (PC), buscando uma transição negociada para o fim da ditadura. A Constituição de 1980 prorrogou o mandato de Pinochet até 1988, quando seria chamado um plebiscito popular para definir a continuidade ou não do ditador no poder. Depois de muitas tensões e incertezas o plebiscito foi realizado e o Não obteve 55,99% dos votos e o “Sim”, 44,01%. Com este resultado, são convocadas eleições presidenciais e parlamentares para 1989 com as regras institucionais da Constituição de 1980 da ditadura. O pacto de transição da ditadura para a democracia mantém o voto distrital binominal e o Partido Comunista – PC (que foi um dos principais partidos que fizeram a resistência política e armada contra a ditadura) fora da Concertação (Concertación), composta pela DC, PS, PPD (Partido Pela Democracia), PRSD (Partido Radical Social Democrata). Desta maneira, estava assegurada, pelas elites, a transição democrática com o domínio dos distritos pelas duas grandes coalizões: Concertação (Centro Esquerda) e Aliança (Direita e extrema-direita), excluindo de fato o  PC e outros partidos minoritários de esquerda. 

Desta forma, sob a vigência da Constituição de 1980 e mantendo o modelo neoliberal, a Concertação elege os presidentes que vão governar o Chile de 1990 a 2010. Este ciclo inicia, em 1989, com a eleição de Patrício Alwin (DC) com mais de 50 % dos votos, ganhando no 1º turno e governando de 1990 a 1993. Na sequência, em 1993, elege Eduardo Frei (DC) com 56 %, que ganha na 1ª volta e governa de 1994 a 1999. Em 1999, elege Ricardo Lagos (PPD) que ganha na 2ª volta com 52 % e governa de 2000 a março de 2005. Em 2004 é eleita Michele Bachelet (PS) que ganha na 2ª volta com 54 % e governa de março de 2005 a março de 2010.

Em 2006, em pleno governo da Presidente Michelle Bachelet, entre os meses de abril e junho, setembro e outubro, ocorreram grandes mobilizações dos estudantes secundaristas, greves e manifestações de rua, contra o modelo neoliberal da educação privatizada. Foi conhecida como Revolução dos Pinguins, devido ao tradicional uniforme usado pelos estudantes.  

Em dezembro de 2009, com a vitória do empresário bilionário Sebastián Piñera na eleição presidencial do Chile no 1º turno e no 2º turno, em janeiro de 2010, os partidos de direita identificados com a ditadura do General Augusto Pinochet voltam ao poder pela primeira vez em 20 anos. Governo de Pinheira vai de 11/03/2010 a 11/03/2014

Em 2011 e 2012, milhares de estudantes universitários e secundaristas tomam as ruas e avenidas das cidades do Chile, em grandes mobilizações de massa, contra a privatização do ensino e por uma educação pública, laica e gratuita.  A mobilização dos estudantes também abriu um forte questionamento as regras institucionais da Constituição de 1980 da ditadura e ao sistema político distrital binominal, que favorece as duas grandes coalizões: Concertação (Centro-esquerda) e Aliança (Direita e extrema-direita) e impede a representação do PC e de outros partidos minoritários de esquerda. Não é por acaso, que as principais lideranças do movimento estudantil são do Partido Comunista, como Camila Vallejo (Presidenta da Federação de Estudantes da Universidade de Chile), Karol Cariola  ou de grupos de Esquerda Autônoma como Francisco Figueroa, Giorgio Jackson (presidente da Federação de Estudantes da Universidade Católica de Chile), Gabriel Boric, que mais tarde vão formar a Frente Amplo, entre outras lideranças. Neste contexto, o PC e os movimentos de esquerda já levantam a bandeira de uma nova Constituição com uma ampla reforma política, que termine com o sistema político distrital binominal e implante o sistema proporcional, assegurando os direitos das minorias, assim como defendem a construção de uma democracia participativa. O movimento estudantil consegue grandes vitórias políticas como ganhar o apoio da maioria da população e demonstrar a desigualdade do sistema de ensino privatizado pela ditadura neoliberal do general Pinochet (1973 a 1990), e que mais de vinte anos de democracia liberal (1990 a 2011), acordada entre as elites democráticas da Concertação e as elites autoritárias da direita,  não conseguiram desmontar.  Por isso, exigem que o direito a uma educação pública e gratuita de qualidade seja inscrito na Constituição Nacional e constituíram uma maioria na sociedade favorável para uma transformação profunda na educação chilena. Este movimento não é puramente estudantil, pois ele é também uma manifestação do mal-estar geral da sociedade chilena com o modelo de desenvolvimento neoliberal imposto pela ditadura na Constituição de 1980, bem como do esgotamento do pacto da transição de uma saída pactuada da ditadura, firmado entre a Concertação e a direita. O movimento estudantil com suas reivindicações e mobilizações, se constituiu em um movimento social que inclui setores da classe média, trabalhadores e o movimento popular dos bairros e vilas. 

Em 2013, Michelle Bachelet (PS) e a coalizão Nova Maioria (antiga Concertação e mais o PC) é eleita pela segunda vez presidenta do Chile e governa de 11/03/2014 a 11/03/2018. Nesta eleição, são eleitos deputados (as) quatro lideranças do movimento estudantil de 2011: Camila Vallejo e Karol Kariola, ambas do Partido Comunista, Giorgio Jackson, da Revolução Democrática, e Gabriel Boric, da Esquerda Autônoma. A nova geração, que contesta o modelo neoliberal da Constituição de 1980 da ditadura e que permanece vigente nos governos da Concertação, chega ao parlamento. A presidente Bachelet conseguiu uma pequena reforma constitucional, trocando o sistema binominal das eleições parlamentares para um sistema proporcional moderado. No entanto, não consegue maioria para a realização de uma ampla reforma da Constituição de 1980 e o modelo neoliberal continua vigente com todas as suas graves consequências econômicas, políticas e sociais.

No dia 19 de novembro de 2017 teve a primeira volta das eleições presidenciais chilenas. O candidato da direita, o ex-presidente Sebastián Piñeira, ganhou a primeira volta com  36 % dos votos. Disputa a segunda volta contra Alejandro Guiller (coalizão Nova Maioria), representante da centro-esquerda. Mas a grande surpresa foi o resultado do Frente Amplo, uma heterogênea coligação de esquerdas encabeçada por Beatriz Sánchez. A candidata do Frente Amplo ficou em terceiro lugar, obtendo 20 % dos votos (ficando a 2 pontos para ir à segunda volta), esta coalizão logrou 18 deputados e 1 senador, algo inédito para uma força antineoliberal fora dos partidos tradicionais. Sebastián Piñera é eleito na 2ª volta – governa de 11/03/2018 a 11/03/2022.

Já em 18 de outubro de 2019, inicia a maior Rebelião Popular da história do Chile, o “Estallido social” com manifestações e distúrbios populares contra modelo neoliberal e o sistema político institucional chileno, em Santiago e todas as regiões de Chile. A população vai às ruas nas cidades como Valparaíso, Concepción, Arica, Iquiqui, Antofagasta, La Serena, Rancagua, Chillan, Temuco, Valdivia, Osorno, Puerto Mont e Punta Arenas. O modelo econômico neoliberal, implantado por Pinochet a ferro e fogo na ditadura  e na sua constituição de 1980, que se manteve nos governos da Concertação, deixou a classe média e a classe trabalhadora endividadas para pagar a saúde, a educação, a previdência privada e a sua própria sobrevivência.

O Estallido Social que teve seu estopim, no protesto dos estudantes contra o aumento das tarifas do Metrô e pela repressão desencadeada pelo governo de Pinheira, levou o povo às ruas para dar um basta e gritar as consignas: “não é o Metro, mas é sim, a saúde, a educação, as pensões, a habitação, é a nossa dignidade. Não mais AFP, é para proteger os bosques, a água. Não há pior vandalismo que perdoar as dívidas dos ricos e roubar os impostos dos pobres. Não é por trinta pesos, é por trinta anos”. Na verdade, são 46 anos do golpe militar de 11/09/1973, são 39 anos da Constituição de 1980 e são 30 anos do primeiro governo da Concertação.

O processo político e social de luta contra o modelo neoliberal e o seu sistema político na ditadura, dos governos da concertação e da direita no período democrático levou a constituição, pela base, de partidos e movimentos não institucionais por território, regionais e setoriais, a Mesa de Unidade Social. Surgiu uma Esquerda não institucional que passou a pressionar e exigir do parlamento uma nova constituição para pôr abaixo a Constituição pinochetista de 1980 e o modelo opressor neoliberal. 

Cabe destacar o papel do movimento feminista na luta popular e contra o sistema patriarcal, construindo uma forte influência política e social que vai garantir a paridade de gênero no processo constituinte.

Em Outubro de 2020, em referendo nacional a população aprovou a realização de uma Constituinte Exclusiva com 78,28 % dos votos com a participação de 50,98 % do eleitorado. Constituinte com paridade de gênero e cotas dos povos indígenas. Em Maio de 2021 são eleitos 155 deputados (as) constituintes, resultando uma maioria de 2/3 dos partidos de esquerda, movimentos sociais e independentes.

Em novembro de 2021 são realizadas as eleições presidenciais e parlamentares, no 1º turno, os mais votados são o candidato da direita José Antonio Kast com 1,961 milhão de votos (27,91 %), do Partido Republicano em coligação com o Partido Conservador Cristão, e da Esquerda Gabriel Boric com 1,814 milhão de votos (25,83 %), da Convergência Social, na coligação Apruebo Dignidad. No 2º turno Boric vence as eleições com 4,620 milhões de votos (55,87 %) e Kast chega a 3,650 milhões de votos (44,13 %). Importante destacar o papel da esquerda e dos movimentos sociais da rebelião popular e do processo constituinte na vitória de Boric no 2° turno. No 1º turno os votos válidos somaram 7,027 milhão e no 2º turno chegaram a 8,270 milhões, aumentando o número de eleitores e votos válidos em 1,243 milhões. 

O processo constituinte, em curso, será decisivo para terminar com o ciclo do modelo neoliberal da constituição de 1980 e iniciar uma nova era para a sociedade chilena. A Comissão Constituinte do Chile entregou no dia 4 de julho de 2022 ao presidente Gabriel Boric o texto final da nova Constituição do Chile, que vai à plebiscito popular em setembro.

Está em marcha uma revolução democrática e antineoliberal que fará grandes transformações na sociedade chilena. Como diria o sempre Presidente Salvador Allende em seu último discurso, com o Palácio de La Moneda em chamas, “Não se detém os processos sociais, nem com o crime, nem pela força. A história é nossa e a fazem os povos”.

 

Ubiratan de Souza é economista, membro da executiva do PT de Porto Alegre e coordenador do GT – Democracia Participativa do NAPP – Estado, Democracia e Instituições da Fundação Perseu Abramo. 

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