Notícias
Home / Conteúdos / Artigos /  Carta de Berlim: a guerra e o Velho Diabo | Flávio Aguiar

 Carta de Berlim: a guerra e o Velho Diabo | Flávio Aguiar

“A mais fantástica das artimanhas do diabo é a de vos convencer de que ele não existe.”

Charles Baudelaire

Preâmbulo

Há um cheiro de queimado no ar de Berlim. E não há nenhum Wald (bosque) em chamas por aqui, apesar do calor estival.

O cheiro de queimado vem mesmo da sede do Governo Federal, conhecido como Palácio da Chancelaria e seu entorno.

O sistema político da Alemanha Ocidental foi montado, depois do hecatombe do Nazismo e da Segunda Guerra, para que, em princípio, nenhum partido possa dominar isoladamente o governo. A regra é que o partido mais ou melhor votado na eleição federal seja chamado pelo presidente (eleito indiretamente por um complexo colégio eleitoral) para formar um governo de coalizão. Mais e melhor votado: o sistema eleitoral direto na Alemanha é complicado. No caso da eleição federal, ela define a composição da Câmara de Deputados, o Reichstag.

Cada eleitor tem direito a dois votos: um nominal, num dos candidatos do seu distrito; e outro no partido de sua preferência. Esses votos não são obrigatoriamente vinculados. O eleitor pode escolher o candidato de um partido e dar seu voto partidário a outro partido.

Cada partido elabora uma lista de candidatos. O resultado final é formado pelo resultado das eleições em cada distrito, mais os candidatos eleitos pelo voto partidário, na ordem da lista que cada partido elaborou.

O poder executivo, chefiado pelo chanceler, é votado no Reichstag, conforme a coalizão que tenha maioria.

Quando da reunificação das Alemanhas, que na verdade foi uma anexação da Oriental pela Ocidental, foi este sistema que prevaleceu nacionalmente, sendo também a base das eleições estaduais e municipais.

No mais das vezes a coligação governamental envolve dois partidos. Mas não é incomum que ela tenha três, como no presente.

O chanceler, Olaf Scholz, é o líder do partido que elegeu mais deputados na última eleição, o Social Democrata (SPD, na sigla em alemão). Ele compôs uma coalizão com o Partido Verde e o FDP (de Freie Demokratische Partei), liberal.

Rezava a tradição que no SPD votavam os trabalhadores sindicalizados; nos Verdes, os jovens alternativos e pacifistas; no FDP os profissionais liberais e outros que não gostam de pagar impostos. Mais à direita, na União Democrata Cristã – CDU (no caso da Baviera, a União Social Cristã – CSU) – votavam os empresários do big ou médio business e a classe média conservadora.

Hoje em dia estas linhas se cruzaram e se embrulharam. O SPD converteu-se em grande parte ao neo-liberalismo. A direção dos Verdes abandonou o pacifismo e tornou-se um partido beligerante, verde-oliva, sobretudo anti-russo. Durante o reinado da chanceler Angela Merkel, que durou dezesseis anos e três diferentes coalizões, a CDU literalmente “engoliu” bandeiras sociais do SPD e ecológicas dos Verdes. E surgiram novos partidos.

À esquerda nasceu Die Linke (A Esquerda), de uma dissidência do SPD conjugada com políticos da antiga Alemanha Oriental que não pertenciam ao Partido Comunista. Mais recentemente uma ala da Linke rachou, liderada pela deputada Sarah Wagenknecht, que formou um partido com o seu nome, o BSW. E à direita surgiu o Alternative für Deutschland, AfD, de extrema-direita, cujas raízes profundas não raro exalam um odor de mofo meio nazi.

Ao lado destes, que são os principais, há uma série enorme de pequenos partidos, alguns com alcance regional, entre eles o famigerado NPD (Nationaldemokratische Partei Deutschlands), hoje rebatizado como Die Heimat (A Pátria ou A Terra Natal), este sim, declaradamente neo-nazi.

E sobre todos paira uma mídia corporativa mais plural do que a brasileira, mas cujos comentaristas, na maioria, rezam por uma cartilha de austeridade fiscal com raízes neo-liberais e que rotulam tudo o que disto se afaste de “populista”, seja à direita ou à esquerda.

O cheiro de queimado

Bem, depois deste largo preâmbulo, vamos ao tema principal destas alongadas linhas: o governo federal está cheirando a queimado.

Motivos profundos e distantes, mas de difícil reconhecimento pela barragem midiática: a hegemonia neo-liberal, que submeteu o SPD e os Verdes, os planos de austeridade fiscal, a crise de 2008 que desorganizou aquelas fidelidades partidárias acima descritas. Motivo próximo, também de difícil reconhecimento, pela mesma barragem midiática: a guerra na Ucrânia, que jogou o país numa espiral inflacionária ascendente e numa ladeira recessiva descendente.

Moldura: o colapso do regime comunista na Alemanha Oriental

A hegemonia neo-liberal

A hegemonia neo-liberal gerou os planos de austeridade fiscal e precarizou as condições de trabalho, sobretudo para os jovens. Reduziu também as aposentadorias, precarizando as condições de vida dos mais idosos. Mas podia-se enfrentar tudo isto, num mundo de inflação próxima de zero, feito que era apresentado como um resultado virtuoso deste capitalismo algo radicalizado e triunfante. A Alemanha navegava num mar de relativa tranquilidade, na cômoda posição de carro-chefe da economia europeia, impulsionada pelo baixo custo do gás importado da Rússia. Boa parte da economia continental girava em torno das exportações da e importações pela Alemanha industrializada.

Um certo mal-estar

Apesar da sensação de solidez da posição alemã, já grassava nas entrelinhas o mal-estar provocado pelas diferenças nas condições de vida entre os estados da antiga Alemanha Ocidental, mais prósperos, e os da antiga Alemanha Oriental, onde o desemprego, sobretudo entre os jovens, era maior. Foi perante esta moldura que em 2013 fundou-se o partido de extrema-direita Alternative für Deutschland, que começou a crescer nas intenções de voto sobretudo no antigo Leste alemão, atraindo cada vez mais o eleitor jovem. Mas o edifício, como um todo, parecia continuar sólido e com alicerces firmes.

Os solavancos e a rachadura

Houve dois solavancos no percurso, mas que não chegaram a afetar a aparente tranquilidade da navegação: a crise financeira de 2007/2008 e o Brexit, em 2016, primeiro grande abalo na imagem de solidez da União Europeia.

A rachadura veio mesmo com a guerra na Ucrânia. A importação de gás russo escasseou e logo secou; diversificou-se a origem dos insumos agrícolas, que eram importados da Ucrânia. Em consequência, assim como a energia, eles encareceram. Os gasodutos que traziam o gás russo para a costa alemã foram sabotados, e as investigações sobre o que aconteceu também foram sabotadas. A espiral inflacionária se instalou chegando a dois dígitos na média (10 – 11% anuais), mas galopando à solta  no custo da energia (40%) e na alimentação (20%). O preço dos alugueis disparou. De uma hora para outra tudo encareceu.

Cresce o AfD e o governo despenca

O discurso duro, simplista e xenófobo da extrema-direita (AfD) ganhou robustez e adesão. Este partido cresceu, chegou ao Parlamento (Reichstag), começou a pautar parte da política nacional, investindo contra imigrantes e refugiados. A popularidade do governo foi decaindo. O SPD e os Verdes foram perdendo intenções de voto; o FDP permaneceu mais estável, mas seu percentual é relativamente baixo. A CDU/CSU saltou para o primeiro lugar nas intenções de voto e o AfD avançou para o segundo lugar. A debacle acabou de se instalar quando da eleição para o Parlamento Europeu, em 6 de junho passado. Os partidos da coligação governista soçobraram.

O resultado foi eloquente

A direita tradicional (CDU/CSU) elegeu 29 deputados, com 30,02% dos votos. Em segundo lugar chegou o AfD, com 15 deputados e 15,89% dos votos. O SPD e os Verdes ficaram em humilhantes terceiro e quarto lugares, respectivamente com 14  e 12 deputados, 13,94% e 11,9% dos votos. O FDP ficou em sexto lugar (5 deputados e 5,18% dos votos), chegando atrás do recém fundado BSW, da deputada Sarah Wagenknecht, que, saindo do 0, elegeu 6 deputados e teve 6,17% dos votos, tomados sobretudo ds Linke, do SPD, dos Verdes e um pouco também do AfD.

A CDU/CSU manteve o número de deputados que tinha na legislação anterior, assim como o FDP. O SPD e os Verdes encolheram sua representação; o AfD aumentou-a.

O fracasso do governo alemão nesta votação só teve paralelo na naufrágio do francês.

O elo oculto

Na atmosfera política alemã fica difícil perceber um elo entre este fracasso do governo e a guerra na Ucrânia, mas ele existe.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, do SPD, foi muito reticente em envolver a Alemanha no conflito, através do apoio financeiro e militar ao governo de Kiev. Acabou cedendo passo a passo à pressão enorme que se levantou sobre ele, cujo começo foi o do envio dos tanques Leopard 2, fabricados na Alemanha, para o governo ucraniano. O último ápice deste envolvimento foi a autorização para que o armamento alemão cedido a Kiev possa ser utilizado para atingir o território russo. Nesta trajetória, o chanceler se converteu em ardoroso defensor da guerra.

As pressões

Houve uma grande pressão internacional, a partir dos Estados Unidos, do Reino Unido, da OTAN e da direção da União Europeia. A pressão na mídia alemã também foi gigantesca, começando pelo fato de que nela se decretou, de início, não só que o governo ucraniano tinha de ganhar a guerra, mas que ele a estava ganhando, contra todas as evidências que chegavam, pouco a pouco, do campo de batalha. Instalou-se um clima de maniqueísmo russofóbico que não dava margem para qualquer alternativa. Paralelamente avolumou-se uma espécie de messianismo, apontando a guerra e a vitória como única trajetória possível, condenando-se qualquer alternativa de negociação.  Na guerra, a barbárie estava inteiramente do lado russo; a virtú, do lado ucraniano. Os traços neo-nazis das forças armadas ucranianas foram sepultados debaixo do tapete, transformando-as em heróicas defensoras da democracia e da civilização ocidental.

Last but not least, deve-se ressaltar as pressões internas do próprio governo. Neste particular a principal força da pressão esteve no ministro da Defesa, Boris Pistorius, do próprio SPD, nos membros dos Verdes, em particular no vice-chanceler Robert Habeck e sobretudo na campeã do belicismo, a ministra de Relações Exteriores, Annalena Baerbock, transfigurada numa espécie de Valquíria wagneriana.

O despreparo alemão e a recuperação militar

O fato é que a Alemanha não estava preparada para se envolver na guerra como se envolveu, mesmo que indiretamente. O corte do fornecimento russo e depois o aumento do preço do gás importado de outras fontes levaram muitas indústrias alemãs à retração, ao  colapso, ou a deixar o país. O desemprego e a falta de perspectiva cresceram entre os mais jovens, que mais e mais vão cedendo à tentação do AfD.

De momento a indústria alemã ensaia uma recuperação, sobretudo graças à sua reconversão à produção militar. Esta cresce em toda a Europa, com a paralela militarização de corações e mentes. Em muitos meios da administração governamental e de rodas de conversa fala-se abertamente na possibilidade, talvez na inevitabilidade da guerra com a Rússia. Pior: muitas vezes essa possibilidade e essa talvez inevitabilidade são bem-vindas. Por todos os lados poreja uma naturalização da guerra, embalada pelo canto de sereia de que a geopolítica hoje é a de um confronto entre as democracias civilizatórias e virtuosas do Ocidente e a barbárie das ditaduras e autocracias alienígenas, Rússia e por detrás desta, a China. Alinham-se nesta bancada de inimigos da democracia e da civilização países tão díspares como o Irã, a Coreia do Norte e a Venezuela. Criticar a OTAN e os Estados Unidos tornou-se um anátema. Cheguei a ouvir o comentário de que nós, os latino-americanos, cometemos o “erro” de considerar os Estados Unidos um país imperialista. Washington tornou-se um manancial de virtudes: em comentário radiofônico um professor universitário de história isentou os Estados Unidos de qualquer responsabilidade pelo golpe no Chile em 1973.

Para engrossar este caldo já espesso também não se pode criticar abertamente a política bélica e criminosa do governo de Benjamin Netanyahu  em relação ao povo palestino. Defender os direitos do povo palestino virou sinônimo de defender o terrorismo.

O perfil de Putin e o Velho Diabo

Para encerrar, menciono dois aspectos importantes.

O primeiro é que o perfil de Vladimir Putin não ajuda a causa da paz. Mesmo que a OTAN tenha de fato provocado a Rússia, a invasão da Ucrânia contraria a Carta da ONU, e foi veemente sua condenação na Assembleia Geral, tanto pelos votos contrários quanto pelas numerosas abstenções e ausências de alguns dos tradicionais aliados de Moscou. Ex-chefe da KGB soviética, Putin nada tem de democrata, de libertário ou de esquerdista. Mas não se pode aponta-lo como o único responsável pelo conflito e seu prolongamento. Tanto a OTAN quanto Kiev apostaram na guerra. Há sérios indícios de que as começadas negociações de paz entre Kiev e Moscou, em março de 2022, foram sabotadas e sepultadas a partir da pressão do Ocidente.

Dentro deste quadro a pior tragédia que está acontecendo é a da entrega, na prática, da bandeira da paz na Europa e alhures, que sempre foi da esquerda, para as mãos da extrema-direita. Esta, se chegar ao poder, vai encontrar um continente onde o espírito militarista está redivivo, bem alimentado por sua indústria e pelo fornecimento de armas norte-americanas, inclusive nucleares. O espírito prussiano ressuscitou na Alemanha, se é que morrera um dia.

O segundo aspecto é simbólico. Quando terminou a Segunda Guerra, os norte-americanos  juntaram os escombros de  Berlim Ocidental e os depuseram sobre os restos da Escola Técnica e Militar projetada durante o regime nazista, cuja construção não foi terminada, cobrindo tudo com terra e areia. É o único morro digno do nome em toda Berlim, de resto uma cidade plana e convidativa a pacíficas bicicletas.

O morro foi batizado como Teufelsberg, Morro do Diabo, graças ao nome semelhante de um lago próximo. Tenho certeza de que em algum desvão ou porão daquele embrião abortado e soterrado de Escola Técnica e Militar, que fazia parte dos planos de construção da monumental Germania, a projetada capital do Terceiro Reich, idealizado para ser milenar, algum Velho Diabo está vestindo sua farda e sorrindo sorrateiramente.

Flávio Aguiar é jornalista e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP.

Veja também

Eleições no Estados Unidos e a crise de hegemonia | Nara Roberta da Silva

O retorno de Trump marca uma derrota histórica – não apenas para os democratas, mas …

Comente com o Facebook