Paul Singer analisa política econômica e defende mudanças.
Participando do Governo Federal, Paul Singer batalha por concepções de economia que revelam as suas convicções socialistas. O economista ocupa atualmente a Secretaria Nacional de Economia Solidária no Ministério do Trabalho, onde tem colocado em prática muito do que já escreveu e lecionou sobre o tema. Nessa conversa com o Democracia Socialista, ele comenta a política econômica, se diz convicto de que deve haver controle de capitais e explica por que considera que o centro de um programa de esquerda socialista deveria ser fortalecer a economia popular.
Caminhos e descaminhos da economia
A história de Paul Singer revela sua coerência e dedicação na construção de uma opção socialista para o Brasil. Professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, estudioso há anos dedicado ao tema da economia solidária, Singer ocupa atualmente a Secretaria Nacional que trata do tema, no Ministério do Trabalho e Emprego. Nessa entrevista, ele analisa a atual política econômica do Governo Federal, fala sobre as políticas de crédito e de redistribuição de renda e aponta caminhos para a atualização de um programa de economia para a esquerda socialista.
A política econômica em curso tem permitido um certo crescimento econômico; ao mesmo tempo impõe restrições, um crescimento limitado. Como você avalia essa relação?
Talvez seja oportuno fazer uma reconstituição. O governo, no seu primeiro semestre de gestão, colocou como prioridade conquistar a confiança do mercado financeiro. Queria-se de todas as formas reduzir a inflação, que chegou a cerca de 20% anualizada, em função da fuga de capitais em 2002. A cotação do dólar caiu bastante e as pressões inflacionárias foram amenizadas.
O responsável por isso não foi nem o superávit primário nem a enorme taxa de juros – que nós ainda aumentamos. Foi, sobretudo, a volta dos dólares ao país. Isso deu certo a um custo social tremendo. Aumentou por um longo período o desemprego, que já estava altíssimo, e também a exclusão e a pobreza.
Em julho de 2003, houve mudança na política econômica, que em geral não se registrou. O governo começou a fazer uma política expansiva de crédito voltada para os mais pobres. O mais importante é que foi criada uma conta simplificada para pessoas que não têm acesso a serviços bancários.
Como funcionam essas contas?
O teto para depósitos nesta conta é de mil reais. Após três meses, a Caixa Econômica Federal oferece crédito até 600 reais. Cada banco pode usar até 2% do total de depósitos à vista para emprestar aos depositantes nestas contas ou então transferir o valor a entidades de micro-crédito.
Paga-se 2% ao mês de juros, e não tem vencimento. Então você pode ficar usando esses 600 reais, por exemplo, como capital de giro para o teu trabalho. Do ponto de vista de abertura de contas, foi um estouro. Na Caixa Econômica Federal, abriram-se 1 milhão de contas em menos de seis meses. Dois milhões de contas até meados de 2004. O Banco do Brasil criou o Banco Popular do Brasil, que só começou a funcionar esse ano, e que está com 1 milhão de contas; ou seja, no total são 3 milhões de contas. Isso não é pouco.
Que outras medidas de estímulo ao crescimento foram tomadas?
Cooperativas de créditos foram facilitadas bastante, estão se multiplicando. Dado que o governo está mantendo a taxa de juros alta, a cooperativa de crédito é uma alternativa maravilhosa para gente pobre. Só que é uma coisa demorada. Até você montar uma cooperativa de crédito, criar confiança, aprender a operar de forma democrática, não é de um momento para o outro.
Enfim, essas iniciativas voltadas aos mais pobres aumentaram o volume de créditos a juros muito baixos. E a taxa Selic foi reduzida de 26,5% para 16%. Isso é bastante. Então, o crescimento aconteceu, ainda que bem mais tarde do que nós esperávamos. Nessa altura, a economia está crescendo muito mais do que os 3,5% previstos originalmente, está mais próxima de crescer 5% do que 3,5%.
Infelizmente isso levou o Banco Central a priorizar novamente o combate à inflação. Voltaram à postura prévia de 2003, que é uma postura recessiva. Eles entendem que há perigo de a inflação escapar do controle. E, nessa visão, o único jeito de evitar isso – porque não pode intervir nos preços, é o mercado que tem de decidir – é você esfriar a economia inteira. É mais ou menos o que é feito na Europa ou nos Estados Unidos, e que estamos fazendo aqui também.
Quais os principais sintomas disso?
Basicamente a subida da taxa de juros e o aumento do superávit primário. Os dois vão na mesma direção, de esfriar a economia tendo em vista reduzir a pressão sobre os preços. Minha impressão é que se o crescimento fosse permitido, fosse mais intenso, haveria alguma pressão inflacionária efetivamente; mas isso daqui a dois anos, não agora. Eles estão antecipando uma situação possível, mas que não acontecerá num futuro próximo.
As pressões inflacionárias hoje vêm dos preços indexados, o que não deveria haver. Os salários não estão indexados, em compensação os serviços públicos privatizados estão, e por um índice enviesado para cima. Isso não é pressão de demanda coisa nenhuma, isso é pressão de custos contratualmente enviesados. Além disso, há o petróleo encarecendo.
Portanto, essas medidas não são anti-inflacionárias, porque elas não estão sendo adequadas para enfrentar o tipo de pressões que nós estamos tendo. O que nós deveríamos é ou desindexar os serviços públicos ou no mínimo usar um indexador mais adequado, que é o índice de preços ao consumidor. O que dá para esperar agora é que o crescimento da economia brasileira vai moderar, não vai chegar ao que poderia chegar se a política fosse de estímulo.
E quais as conseqüências diretas dessa política?
Em agosto, o desemprego aumentou e a renda dos trabalhadores diminuiu. Isso depois de três meses bons, em que o desemprego estava caindo e a renda dos trabalhadores estava subindo. Isso é preocupante. Como as atas do COPOM já diziam que eles queriam aumentar a taxa de juros, isso pode ter desanimado os investimentos.
Vamos esperar os dados de setembro e outubro para ver o que acontece, mas tudo leva a crer que se está praticando uma política macro-econômica que limita o crescimento da economia brasileira a menos de 5%.
O que me preocupa é que na verdade uma das mais importantes fontes de inflação continuam sendo os salários. Os trabalhadores tiveram perdas e agora se mobilizam; olha a greve dos bancários, as greves dos metalúrgicos, a greve do Judiciário. Só três meses de queda do desemprego já permitiram criar um ambiente em que os trabalhadores saíram para a luta.
Isso é notável, mas acende o alerta vermelho no Banco Central. Eles não dizem isso, mas essa é a preocupação maior. Se algumas categorias conseguem aumento, é óbvio que as outras também vão querer. Se você tiver aumentos reais acima da inflação recuperando perdas generalizadas, isso bate nos preços.
Dessa maneira, o desemprego acaba sendo um elemento base da política anti-inflacionária. Isso contradiz frontalmente o que o governo quer: que o desemprego caia, e caia muito. Então são contradições que vão ter que ser discutidas e resolvidas pelo governo daqui por diante.
Tem havido pouca modificação no tocante à elevação e distribuição de renda. Essa também é uma barreira para o crescimento.
Vamos devagar porque isso é importante. Renda não é só salário. Salário é a renda da classe média brasileira. Os pobres não ganham salários; ou são desempregados, ou atuam por conta própria, ou até estão no crime. Salário é de quem tem emprego, e isso hoje é classe média. Os salários caíram, sobretudo com as políticas de 2001, 2002 e 2003, três anos relativamente recessivos. Então houve uma perda salarial da ordem de 20%. Isso é trágico. Há o que recuperar, e há um espaço a recuperar.
Quando a economia cresce, os custos caem. O crescimento é deflacionário, na verdade. Aproveita-se muito mais o capital fixo, e você tem redução do custo unitário. Então ou os preços caem, ou você pode distribuir isso, por exemplo, para os trabalhadores que vão gastar enquanto consumidores e vão alimentar mais o processo. Mais tarde, isso vai ter um efeito inflacionário. E mais tarde, desde que as vendas sejam boas, irão aproveitar para aumentar os preços e recuperar a margem de lucro deles.
Aí tem que intervir, e existem várias propostas. A melhor de todas elas é do Marinho, presidente da CUT, de retomar as câmaras setoriais. O governo pode tomar essa iniciativa. Isso já funcionou na época do Itamar, em 92/93, e pode, no mínimo, dar uma brecada na inflação para garantir mais alguns anos de crescimento. O ideal é chegar a cortar pela metade os índices de desemprego que temos hoje, ou mais. Isso é fundamental.
Isso se refere, portanto, aos salários. E as políticas de redistribuição de renda?
A parte não salarial da pobreza tem que ser o alvo principal. E aí estão se fazendo coisas a meu ver importantes, sobretudo o Fome Zero e o Bolsa-Família, que vai atingir até o fim do ano que vem 11 milhões de famílias. Pelos dados que o governo está colocando, o programa é hoje três vezes maior do que no governo Fernando Henrique. Vai atingir o equivalente a 20 ou 25% das famílias brasileiras.
O efeito dessa transferência da renda pode ser um aumento da renda de trabalho dessa gente, porque se injetam recursos razoavelmente importantes nas áreas mais pobres, seja na periferia das grandes metrópoles ou em bolsões de miséria rurais. Imediatamente a agricultura familiar passa a ter mercado, aumenta o preço dos produtos que eles estão plantando. Esse aumento de renda se transforma em consumo imediatamente. Os mais pobres são obrigados a gastar rapidamente o que recebem, muitas vezes para sobreviver.
Um programa importante de redistribuição de renda é o Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar). Funciona como um empréstimo com subsídio. Eles só precisam devolver 60% do que foi emprestado, o que gera um aumento de renda. Como nós estamos multiplicando as cooperativas de crédito, esses recursos chegam realmente lá.
E como a Secretaria Nacional de Economia Solidária tem atuado nessas questões?
Minha secretaria faz parte desse panorama. Nós estamos conseguindo agora transferir recursos sobretudo a grandes empreendimentos solidários, como Catende (PE). No caso de lá, não havia capital de giro, porque eles sofreram inundações e incêndios em momentos recentes. E eles conseguiram vender a safra de açúcar do ano que vem para o Fome Zero. Isso significa capital de giro a custo zero, porque eles recebem o dinheiro da safra antecipadamente.
Também a reforma agrária não somente está sendo acelerada, mas está havendo uma mudança de qualidade. O pessoal do Incra nos procurou, eles assumiram a economia solidária como sendo a forma de melhorar a qualidade dos assentamentos. O movimento já tinha feito isso, mas agora é política também do governo.
Há também um acordo com o Ministério das Cidades para que a construção de vivendas de interesse social seja feita por mutirão. E sempre que as pessoas estiverem interessadas, que a gente dê qualificação profissional aos mutirantes em construção civil, inclusive ajudá-los a formar cooperativas de construção civil, se houver interesse.
Está se criando uma economia popular e fortalecendo a que já existe.
Após as eleições teremos um período de balanço da conjuntura do país. Volta a discussão de qual o programa buscamos realizar, não só de acordo com as condições, mas com a idéia de mudança. Você poderia falar de algumas idéias para uma atualização desse programa?
Quando estávamos na oposição, disputando o governo, a grande preocupação dos economistas do PT era a fragilidade externa. Havia fugas freqüentes; cada vez que dava crise em algum lugar do mundo, batia no Brasil e nós entrávamos em recessão. Esse problema está sendo resolvido de uma forma diferente da que imaginávamos.
Pensávamos em fazer uma forte política de substituição de importações. Isso não foi feito, ainda que haja alguma substituição. Não obstante, nós estamos agora com um superávit em conta corrente, ou seja, gastando menos dólares do que estamos obtendo com vendas ao exterior; e isso com pequena aplicação de capitais. Assim, a dívida, o chamado passivo externo, não está crescendo, e as exportações estão indo muito bem.
Isso se deve, em parte, a uma conjuntura mundial favorável, mas em grande parte por uma mudança de política externa. Nós nos aproximamos da China, da Índia, da África do Sul e da Rússia, ou seja, diversificamos nossos mercados; estávamos muito presos à União Européia e aos Estados Unidos. Isso resolveu o que parecia ser o maior óbice. Num futuro programa de esquerda não é mais necessário por tanta ênfase nesse ponto. Claro que é preciso reduzir a dívida externa ou aumentar ainda muito mais as exportações. Mas nem de longe com a gravidade que a gente imaginava em 2002 ou, pior ainda, em 1998.
E quanto ao controle de capitais?
Deveríamos controlar o movimento de capitais, continuo inteiramente convicto disso. Contudo, mesmo sem controlar, o Brasil poderá acumular grandes reservas internacionais, como a China faz, o que realmente aumenta a blindagem da economia contra fuga de capitais. Se houver uma fuga mesmo, isso pode a qualquer momento ser parado com medidas de intervenção, mas eu acho que elas deveriam ser feitas preventivamente.
Eu manteria no programa o controle da especulação internacional. A esse respeito, o último pronunciamento do Lula na ONU foi preciso, quando ele falou que a nova forma do colonialismo é o endividamento perpétuo dos países empobrecidos. A Rosa Luxemburgo já dizia que a exploração fundamental se dá através das taxas de juros.
Quais os pontos principais no tocante à reforma agrária?
Há coisas que teriam que ser repensadas, não no sentido de que estavam erradas antes, mas porque são etapas já vencidas. O pessoal do Incra me dizia que os movimentos sociais estão preocupados com as grandes dificuldades econômicas dos assentamentos. Se elas não forem resolvidas, todo o programa de reforma agrária vai dali abaixo.
O Incra me procurou para ver se a gente viabiliza um programa de desenvolvimento econômico real para as famílias já assentadas e as que vierem a ser. Esse programa tem que ir além da previsão de assentamento, porque há milhões de pequenos camponeses que se não se fizer nada vão virar sem-terra, e terão que ser assentados de novo.
O MST, por exemplo, está estendendo suas cooperativas de crédito, não só aos assentados. Isso fortalece o movimento e fortalece economicamente a pequena agricultura. Hoje estamos vendo um movimento camponês que tem reivindicações econômicas, não só a terra. E que está sendo atendido por esse governo de uma forma razoável. Nunca é o ideal, mas esse seria um ponto do programa bem diferente do que foi antes, porque é preciso levar em consideração os avanços que já há hoje, e fazer propostas a partir desses avanços.
A compra antecipada de safra deveria ser um item fundamental, isso já constava no programa do Fome Zero. Você viabiliza a agricultura familiar. Cooperativas rurais estão hoje se multiplicando pelo país e podem cumprir um papel estratégico nisso. É uma forma de construir o socialismo, a partir dos que são as vítimas das contradições do capitalismo.
Também deveria haver uma política de apoio às empresas recuperadas pelos trabalhadores. O ideal seria que em todo empreendimento que entrasse em crise, os trabalhadores tivessem a opção de tentar recuperá-lo. Há muitos estudos de caso, e eles mostram um aumento impressionante de produtividade.
E a questão da vulnerabilidade interna, do Estado frente ao capital financeiro?
É a dívida pública, que precisa ser reduzida porque mantém o governo sujeito ao mercado financeiro e é um tremendo instrumento de concentração da renda. Precisamos reduzi-la, embora os títulos públicos sejam, hoje em dia, lastro do sistema financeiro.
Mas é possível reduzi-la à metade em relação ao PIB. O melhor seria reduzir não por superávit primário, mas por crescimento. Se o PIB crescer 6% e a dívida crescer muito menos, ela vai proporcionalmente ficando menor. Você não precisa reduzi-la em termos absolutos, mas em termos relativos em relação ao tamanho da economia e, principalmente, em relação à arrecadação dos governos que devem essa dívida pública.
Para fazer essa redução via crescimento, tem que alterar algumas relações estruturais da dívida, como a taxa de juros, o superávit primário.
Quanto à taxa de juros eu estou totalmente de acordo. Nós deveríamos ter uma taxa de juros civilizada, por exemplo, 1% ao ano de juros real. É o que a maior parte dos países tem. Na história do capitalismo, em média as taxas de juros de governo são dessa ordem. O Brasil é uma exceção. Isso alimenta a dívida e concentra a renda. Se você reduzir a taxa de juros na frente da dívida, a dívida cai, porque você gasta muito menos dinheiro.
O superávit primário também pode cair, mas eu sou favorável a existência dele, senão a dívida explode. Se você mantiver superávit primário zero, a dívida rapidamente ultrapassa o PIB, porque significa que todos os juros transformam-se em nova dívida. Mas o superávit primário pode não ser de 4,5% do PIB, mas quem sabe de 2%, com uma taxa de juros à metade do que você tem hoje.
Se a Selic for 8% e não 16%, você pode em tese reduzir na mesma proporção o superávit primário. Poderia haver uma redução gradativa. Se o Banco Central houvesse continuado a redução que propôs, a essa altura a taxa de juros já deveria estar próxima dos 10%.
Há mais algum ponto relevante para um programa econômico de esquerda?
Fortalecer a economia popular. Esse deveria ser o centro de nosso programa. O próprio conceito não é muito corrente dentro do PT, é um conceito da igreja. Como a igreja realmente trabalha com os pobres, eles têm uma vasta experiência no que a gente chama de economia popular: o pequeno comércio, o artesanato, os garimpos, os catadores de lixo. É uma grande quantidade de atividades que chamam de “baixa produtividade”, mas que são extremamente representativas para tudo, inclusive para a cultura nacional.
Pensar o problema da economia popular e permitir que ela dê um salto de qualidade seria um ponto importante. O que estou dizendo, na verdade, é que precisamos acabar com a pobreza no país, de uma forma factível. E a melhor forma de fazer é dar mais qualidade – mais renda, portanto – ao trabalho dos pobres.
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