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A contra reforma do ensino médio: sonegação do conhecimento às classes populares | Jose Clovis de Azevedo

Ao examinar o conteúdo do chamado “Novo” Ensino Médio não tem como não sentir o impacto pela forma como essa proposta opera a desconstituição dos processos curriculares que atribuem à escola um espaço de reflexão, de interação e de acesso e produção do conhecimento. O seu caráter tecnicista e burocrático impõe um desenho curricular com um complexo de desdobramentos aparentemente lógicos, integrados e articulados. No entanto revela-se artificial, inconsistente e absolutamente inviável quando confrontado com a vida real dos universos escolares.

Submetido à crítica poderia ser definido como um projeto administrativista, inconsistente e medíocre. Mas esta constatação é insuficiente, pois não alcançaria a sua intencionalidade e as consequências que poderão ser trágicas para o presente e o futuro das nossas juventudes e para desconstituição da história dos profissionais da educação, interditando a perspectiva de futuro do trabalho docente.

No Rio Grande do Sul podem-se visualizar as mudanças essenciais propostas por meio da Portaria nº 350, publicada pela SEDUC-RS em 30/12/21. Essa normativa dividiu o Ensino Médio em Formação Geral Básica (1800 horas): as áreas de Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e Ciências da Natureza; e em Itinerários Formativos (1200 horas), com conteúdos dirigidos para o desenvolvimento pessoal e profissional.

No arranjo curricular pode-se perceber a perda de espaço das disciplinas que se vinculam aos diferentes ramos das ciências. As disciplinas de Arte, Educação Física, Ensino Religioso, Sociologia e Filosofia serão ofertados em um único ano do Ensino Médio, com apenas um período semanal. As disciplinas de História e Geografia terão duas aulas semanais no 1º ano e um período semanal no 2º e no 3º ano. Biologia, Física e Química terão dois períodos semanais, mas apenas nos dois primeiros anos, sem ocorrência no 3º ano.

São também criadas disciplinas obrigatórias como: Projeto de Vida com duas aulas semanais nos três anos; Mundo do Trabalho com duas aulas no primeiro ano; Cultura e Tecnologias Digitais, com dois períodos no primeiro ano e Iniciação Científica, com duas aulas semanais no segundo e terceiro ano.

A partir do 2º ano é previsto oito períodos semanais em áreas de aprofundamento no Itinerário Formativo escolhido pelo estudante. No terceiro ano, sobe para quatorze períodos de aprofundamento. Registre-se que as novas disciplinas e componentes curriculares criados não se constituem como campo de estudo com metodologia científica e conhecimento específico acumulado. São ementas cujos conteúdos terão que ser criados pelos professores, independentemente de sua formação.

Pode-se focar a análise deste projeto em três dimensões, sem prejuízo de outras possibilidades para sua investigação: uma dimensão macro, que conversa com as necessidades do capital em seu estágio atual de acumulação flexível; a dimensão epistemológica que diz respeito à forma com que o conhecimento é tratado; e a dimensão micro, administrativa e pedagógica, que trata da tentativa de operação prática do projeto.

Da dimensão macro

Na dimensão macro o “Novo” Ensino Médio vem ao encontro das mudanças necessárias à conformação do mercado de trabalho para reprodução do capital em sua fase de acumulação flexível. O conceito da flexibilidade passou a ser uma noção fundamental nas relações econômicas. O ritmo acelerado de inovação tecnológica aprofundou a competição no interior dos mercados e a manutenção das taxas de lucro exige cada vez mais desregulamentação das leis trabalhistas, da proteção ambiental e das normas de regulação do mercado. Essas políticas conquistaram a hegemonia no Brasil desde 2016 e se expressam na Reforma Trabalhista, na Reforma da Previdência, na Lei da Liberdade Econômica que possibilita a terceirização em todos os níveis das atividades econômicas, e na chamada Reforma do Ensino Médio que tem como objetivo a formação de um mercado de trabalho com um perfil adequado ao mercado desregulamentado, onde as relações de trabalho são também flexibilizadas, isto é, trabalho temporário, de preferência sem vínculo e por isso precarizado. Cada vez mais a produção dirige-se para o trabalho informal, autônomo, livrando o capital das obrigações trabalhistas, ou operando com vínculos temporários.

A liberdade econômica como materialidade substantiva do neoliberalismo é reforçada com o discurso da liberdade de escolha e da flexibilidade. É preciso compreender que o capital nesta fase de acumulação não demanda uma massa de trabalhadores com formação técnica qualificada. Esta necessidade é restrita às atividades sofisticadas nos centros de decisões das atividades produtivas.

A partir destes centros a produção é terceirizada, partindo das atividades mais complexas para atividades mais simples. Isso determina a contração ou a expansão do volume de trabalho de acordo com a etapa da produção de um determinado produto, passando por vários estágios de terceirização, exigindo trabalhadores temporários com conhecimentos gerais e técnicos elementares, com “habilidades” e “competências” para executar multitarefas.

Isto revela a necessidade de um mercado de trabalho com formação aligeirada, capaz de cumprir multitarefas na hierarquia da produção, cujo parcelamento se dá entre as empresas que participam dos arranjos produtivos, diferente do taylorismo-fordismo, quando o parcelamento ocorria dentro da mesma empresa. Quando se percebe o mar de entregadores que percorrem as cidades e os operadores de aplicativos, encontramos  entre eles diferentes estágios e tipos de formação, mas que servem e precisam se adaptar às condições de trabalho do mercado flexível. A eles é oferecida a narrativa ideológica de “patrão de si mesmo”.

O chamado “Novo Ensino Médio” dirige-se aos quarenta milhões de jovens das classes populares que estudam na escola pública: o mercado precisa de um exército de trabalhadores com formação geral precária, com formação técnica precária para cumprir multitarefas no mercado de trabalho como trabalhador temporário e precarizado.

Visto, ainda que sinteticamente, o cenário da materialidade de onde emerge a necessidade do “Novo” Ensino Médio, pode-se examinar a segunda dimensão.

A dimensão epistemológica

Nesta dimensão é visível a desconstrução do espaço escolar como lugar de conhecimento, de reflexão de criatividade e de relação com as ciências. É o que se poderia chamar de Epistemicídio. Ou seja, a negação do conhecimento e do espaço escolar como promotor de relações com os campos das ciências e de intercambio de saberes.

A partir do pretenso direito de escolha e de uma prometida flexibilidade introduz-se uma mudança curricular que apresenta um currículo comum, determinado pela BNCC e um currículo flexível com os itinerários formativos. A primeira distorção é tencionar um adolescente de quinze anos, sem a maturidade necessária, sem as referências, a experiência de vida e o desenvolvimento intelectual necessário, a “escolher” e definir um campo de estudos para realizar precocemente o seu “projeto de vida”. De outro lado, a oferta dos itinerários está sujeita às limitações materiais e estruturais das escolas públicas. A maioria das escolas só poderá oferecer um ou dois itinerários e, em geral, em condições precárias. Com isso fica evidente a desidratação dos conceitos de “flexibilidade” e de “possibilidades de escolha.” A restrição à escolha se realizará também de forma mais acentuada nas escolas de periferia, que são notadamente as que convivem com a maior precariedade. O aprofundamento das desigualdades pode se efetivar em função das diferenças nos próprios sistemas públicos, mas fica mais evidente na relação ensino privado e ensino público, aprofunda-se a tendência dualista da educação. O ensino precarizado, com formação aligeirada para as classes populares e o ensino com formação geral, ampla, consistente, para a formação das classes privilegiadas.

Os novos componentes curriculares não expressam conhecimentos vinculados ao acúmulo dos estudos científicos e à formação docente. Em consequência demandam conteúdos que tem que ser criados e desenvolvidos por professores com formação em qualquer área, segundo os gestores do sistema é preciso descobrir “o perfil” do professor que independente de sua formação vai inventar e ensinar os conteúdos dos novos componentes curriculares.

Ao sonegar o conhecimento, ao dilapidar as ciências, ao introduzir um conjunto de conteúdos e componentes curriculares restritos a títulos, o “Novo” Ensino Médio retira das juventudes das classes populares o direito a uma formação geral consistente como base para prosseguir estudos e para uma profissionalização que lhe propicie uma vida digna.

Outra vez coloca-se o dilema dos objetivos da educação. A educação necessária é aquela que forma pessoas com capacidade intelectual de compreender o mundo, de transformá-lo, de defender direitos, de constituir-se como cidadãos críticos capazes de construir sua emancipação de forma colaborativa e solidária, tendo como consequência uma profissionalização digna com uma formação integral, científica e tecnológica? Ou a educação necessária é aquela que privilegia as competências e habilidades, onde o conhecimento é subestimado e as juventudes são preparadas para a empregabilidade imediata e precária requerida pelo mercado?

O “Novo” Ensino Médio alinha-se com o mercado. Desconfigura o ensino das áreas científicas com componentes curriculares que não dialogam com os campos de estudo estruturados pelas ciências. Os conteúdos tem que ser produzidos pelos professores disponíveis que tiveram suas cargas horárias reduzidas pela subtração de suas disciplinas, independentemente de sua formação, ou comprados em cartilhas oferecidas por institutos privados. Esses componentes ocupam o espaço das disciplinas, cujos conhecimentos são fundamentais a uma formação intelectual sólida.

A redução da carga horária das disciplinas, que são produzidas pela pesquisa cientifica, e a substituição por componentes difusos como “Mundo do Trabalho”, “Projeto de Vida”, “Empreendedorismo” e “Inovação”, bem como outros, configura o enfraquecimento e a retirada do conhecimento como objeto da escola.

Esses componentes não existem como disciplinas específicas no mundo das ciências, mas dependem da sociologia da história, da filosofia e das demais ciências, pois só poderão realizar-se num longo processo de formação. Projeto de vida se constrói ao longo de um tempo, fruto da maturidade intelectual e dos experimentos de vida. Mundo do trabalho não pode ser usado como sinônimo de mercado de trabalho, formação profissional e emprego, pois esses são apenas alguns elementos do mundo do trabalho. A compreensão do mundo do trabalho está no estudo da história, da sociologia, da filosofia, nas disciplinas cujos estudos contribuem para compreender o sentido ontológico do trabalho como atributo do ser humano para viver, sobreviver e conviver. Isso não pode ser aprendido a partir da invenção de uma ementa.

Essa diluição e fragmentação curricular enfraquecem as disciplinas em nome de uma falsa interdisciplinaridade. Pois, o que pode configurar uma ação interdisciplinar é a articulação de várias disciplinas para desvelar um objeto de estudo, o que significa que o ensino interdisciplinar pressupõe o fortalecimento das disciplinas e não ao contrário.

A tentativa de substituir o conhecimento por generalidades responde aos objetivos da formação de mentes identificadas com o mercado, com os valores do mercado. Ao invés de cidadania e emancipação, visão crítica, o objetivo é formar indivíduos ajustados, com “habilidades” e “competências” que respondam a nova racionalidade das relações de trabalho e que seja um “gestor de suas emoções”, criativo, flexível e afeto a multitarefas.

Dimensão operacional

Nesta dimensão o “Novo” Ensino Médio confronta-se com a realidade e aprofunda a revelação de suas contradições. Não se trata de uma reforma para transformar as condições estruturais do ensino, mas reduz-se a uma mudança curricular que ignora as condições de funcionamento das escolas.

Apesar do discurso lógico burocrático que compõem a narrativa da proposta, independente do seu mérito, esbarra no mundo real; escolas sem bibliotecas, sem laboratórios, em péssimas condições materiais, com espaços degradados e inadequados. Agravando esse quadro verificam-se os baixos salários, a falta de professores e de funcionários. Contudo os professores que perderam carga horária pela redução de suas disciplinas são constrangidos a criar conteúdo para os componentes curriculares fora de suas áreas de formação, sofrendo a ameaça de precisar cumprir seu contrato de trabalho em várias escolas. A precarização do trabalho docente acompanha a formação precarizada das juventudes no “Novo” Ensino Médio.

A promessa de uma formação profissionalizante também não se realiza, pois, a maioria das escolas não tem estrutura para garantir essas ofertas. Chega-se ao absurdo da oferta do componente “Cultura e Tecnologias Digital” em escolas sem conexão com a internet. As formações profissionais, quando oferecidas, são noções técnicas elementares de uma determinada atividade, embora não desprezíveis, não dialogam com a integração teoria e prática, pensar e fazer, ciência e tecnologia, pois estão desconectadas da base cientifica de uma formação integral, desconstruindo o espaço do conhecimento, sonegando às juventudes o direito à formação geral qualificada.

Mas neste aspecto o objetivo parece ser de terceirizar a formação profissional, transferindo recursos públicos a entidades privadas. Seja contratando pessoal sem formação específica, mas enquadrado no “notório saber”, seja contratando instituições privadas de “notório reconhecimento”.

Não por acaso a elaboração das BNCC e da proposta do “Novo” Ensino Médio tiveram forte patrocínio das fundações empresariais.

Frente a esse quadro, que produzirá profundos prejuízos à formação das juventudes que frequentam as escolas públicas, urge aprofundar o debate para tornar mais evidentes essas consequências e para que se construam possibilidades para uma reforma estrutural do Ensino Médio, que ao contrário desta contra reforma imposta por medida provisória na sua origem, garanta uma Educação Integral às juventudes das classes populares, superando o caráter dual da educação brasileira.

Jose Clovis de Azevedo é Professor pesquisador, Licenciado em História pela UFRGS, Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo – USP, membro do Diretório Estadual do PT-RS.

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