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A era da democracia de consumo | Luiz Marques

Os escândalos políticos, no período recente, iniciaram com o Valerioduto que irrigou a campanha de Eduardo Azeredo (PSDB) para o governo de Minas Gerais e a de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) à reeleição para presidente da República, em 1998. Ganharam fôlego com a reportagem televisiva que mostrou um diretor da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafo (ECT) recebendo propina de um empresário, em 2004. Em 2005, a Folha de São Paulo mancheteou a entrevista romanceada de Roberto Jefferson (PTB/RJ) sobre o Mensalão, neologismo criado pelo boquirroto deputado. Até chegar na fantasia do Petrolão, em 2014, divulgada à guisa de instrumento de poder do PT, sob o tacão (mais que fantasioso, criminoso) das ilegalidades levadas a cabo pela operação Lava Jato com o guarda-chuva do Judiciário, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. Nessa toada sensacionalista, a política foi jogada em uma Caixa de Pandora junto aos terríveis e incuráveis males que afligem a humanidade. Entre eles, por suposto, a corrupção.

Desde fins do século XX, foram constantes os ataques à política, aos partidos políticos e ao Poder Legislativo. Este, com um dos piores desempenhos nas pesquisas sobre a reputação das instituições brasileiras. As ações sociais e econômicas implementadas com sucesso nos dois governos Lula da Silva e no primeiro mandato de Dilma Rousseff, entre 2003 e 2014, foram insuficientes para resgatar a dignidade da política aos olhos do público. Como se o Bolsa Família, o Luz para Todos, o Minha Casa, Minha Vida, o Mais Médicos e a democratização do acesso à Universidade Pública não resultassem de políticas dos governos progressistas.

As administrações petistas não souberam politizar suas conquistas e elevar o nível de consciência de classe, sobretudo dos setores populares. Na ausência de uma pedagogia política que separasse o joio do trigo causa espanto que, frente à tamanha adversidade contra a atividade política e ao bombardeio midiático que difundiu o antipetismo, a sigla fundada no Colégio Sion em 1980 tenha sobrevivido. O carisma de Lula e os bons feitos administrativos combinando crescimento econômico e distribuição de renda, em especial na região Nordeste, mantiveram acesa a chama.

Uma geração cresceu sob escândalos

A geração que nasceu com os escândalos, cresceu em um ambiente que substituiu o apoliticismo pela antipolítica. A expressão dessa aversão, somada à conduta ilícita de membros de distintas agremiações do espectro político, favoreceu o entendimento de que todos eram farinha do mesmo saco. As instituições políticas e o Estado foram incriminados. O mercado saiu incólume da avalanche. Abriu-se assim o caminho para as políticas recomendadas pelo Consenso de Washington (1989), a começar pelas privatizações de estatais, emprestando forma e conteúdo ao neoliberalismo. Iam para a lata de lixo da memória os ideais de igualdade que alimentaram, demagogicamente ou não, o exercício governamental à esquerda e à direita por duzentos anos. O sonho ancestral das elites dominantes parecia realizar-se. A vocalização das insatisfações e da resistência da população perdia o canal da política. A política parecia… morta.

Nos anos 60, os críticos do capitalismo popularizaram a expressão “sociedade de consumo”. Eco das análises formuladas por Karl Marx no Livro I d’O Capital sobre o fetichismo da mercadoria, retomadas por Guy Debord (A Sociedade do Espetáculo, 1967) na crítica à sociedade contemporânea (de consumo). Isto é, à mercantilização de tudo e de todos, a coisificação do ser humano e a humanização das coisas (fenômeno da reificação). Os publicitários captaram a tendência, na propaganda de automóveis para o sexo masculino e produtos de beleza para o sexo feminino. Antes que se expandissem os shopping centers, surgidos na década de 50, metrópoles do mundo inteiro viraram uma luminosa vitrine midiatizada de mercadorias.

Herbert Marcuse, associado à Escola de Frankfurt, que publicara um best seller (O Homem Unidimensional, 1964) viu sua obra alimentar a rebeldia dos jovens no emblemático Maio de 68. Denunciava a hegemonia do “pensamento universal unidimensional” que convertia os cidadãos em meros consumidores, apanhados na teia da dominação tecnocrático-burguesa. Sociólogos latino-americanos, sob influência da Igreja, foram reticentes ao diagnóstico que arrebatou corações sensíveis e mentes agudas nos EUA e na Europa, argumentando que o conceito de sociedade de consumo não abrangia a lastimável realidade da América do Sul e da África.

Ideologia e modus vivendi

Em contextos de miserabilidade, em tese, não se poderia dizer que o excesso de consumo fosse responsável por algo condenável em países periféricos do capitalismo. Nestes, o que faltava era justamente a ampliação do consumo, inclusive de gêneros alimentícios básicos para escapar da fome. As pesquisas sociológicas em níveis de mestrado e doutorado financiadas pela CAPES e o CNPq, à época, privilegiavam o tema das desigualdades sociais no campo e nas cidades, o êxodo rural, a concentração de terras, a carestia e a violência urbana, ainda sem as cores da perversão. A teoria afigurava-se útil somente aos países capitalistas desenvolvidos, que se refestelavam na abundância. Acusou-se então de eurocêntricas as conclusões marcuseanas.

A globalização demonstrou que a ideologia pode desembarcar primeiro, e depois o estilo de vida no cotidiano social. Roberto Schwarz discorreu de forma brilhante sobre a questão (As Ideias Fora do Lugar, 1973) ao expor a chegada do ideário liberal ao Brasil, sob o inferno colonial-escravista, em que escravocratas em dias de festa defendiam teses liberais, os direitos individuais e o trabalho livre. Porém, enaltecendo as vantagens econômicas do regime de servidão. Logo ficou evidente que nichos de consumo para as classes médias não são contraditórios com a suburbanidade das favelas. Quem disse que a modernização não convive com zonas retrógradas?

modus vivendi baseado no consumismo coabita, ás vezes separado por um simples muro, com bolsões de pobreza funcionais para serviços de mão de obra barata: empregadas domésticas, cozinheiras, jardineiros, porteiros, motoristas. A segregação espacial foi sintetizada na simbólica imagem aérea da iniquidade social no país pelo fotógrafo Tuca Vieira, em 2004, na fronteira dos bairros Paraisópolis e Morumbi em São Paulo. Um soco no estômago. De um lado, uma comunidade superpovoada, barracos de tijolos, vielas estreitas, carente de equipamentos urbanos (ônibus, escolas); de outro, um prédio de luxo com apartamentos espaçosos por andar, piscina nas varandas, quadras de tênis, e vista (sádica) para a indecente exclusão.

O individualismo democrático

O consumidor alienado de outrora cedeu lugar ao narciso que, agora, diverte-se com objetos e signos mercantis ao consumir marcas de distinção social, identificando a democracia com o consumo. “A democracia não é nada mais do que o reino do consumidor narcisista, que varia suas escolhas eleitorais tal qual varia seus prazeres íntimos… O retrato sociológico da alegre democracia pós-moderna assinala a ruína da política, subjugada a uma forma de sociedade governada pela única lei da individualidade consumidora”, sublinha Jacques Rancière (O Ódio à Democracia, 2021). Na sociedade de consumo, plenamente realizada pelo neoliberalismo, as escolhas se dão entre mercadorias, seja na esfera da produção e da prospecção da vida pessoal, seja na esfera da política. A amarga projeção do Mouro confirmou-se.

Na subjetividade do sujeito, para quem o ato de cidadania se confunde com a liberdade de consumo, as decisões são tomadas como se estivesse percorrendo as gôndolas de um supermercado. Todas as escolhas, por definição, são válidas moralmente e legítimas cognitivamente. Nenhuma escolha é superior às demais. Isso é o que se pode denominar de individualismo democrático. “Aqueles que só se interessam pela dimensão privada da existência permanecem presos ao funcionamento democrático das sociedades pelo processo de personalização… do self-service, do teste, da liberdade combinatória… À medida que o narcisismo cresce, a legitimidade democrática (individualista) vence, ainda que no modo cool (frio, sem paixão)”, explica Gilles Lipovetsky (A Era do Vazio: Ensaios sobre o Individualismo Contemporâneo, 2009). O alerta para o fim da política é também o alerta para o fim da democracia como um projeto político coletivo de sociedade, em que os vetores comunais tenham prevalência sobre os imãs de interesses da vida privada.

Compreende-se que personas autodesignadas “democratas de centro” testassem a alternativa (o produto) Jair Bolsonaro, em 2018. As nuvens, que pairavam sobre a estigmatizada estrela, lotavam guichês do Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon). Não se subestime o antipetismo na conjuntura. Alguns acharam difícil optar em função da má qualidade do que, a seu juízo, foi posto “à venda”. Mas dispostos a arriscar na novidade exposta na prateleira, com embalagem antissistêmica. Se ora arrependem-se, isso não implica uma negação da democracia de consumo. O giro ideológico não vem acompanhado de uma reviravolta na Weltanschauung (concepção de mundo) que formata a modernidade. A vitória das aspirações progressistas, Deus tenha piedade de nós!, ocorrerá sob “a única lei da individualidade consumidora”. A cultura não muda com o voto na urna, tout court.

Sociedade de consumo / neoliberal

A sociedade de consumo, de que a sociedade neoliberal é a representação atualizada, levou a mercantilização a n potência, ampliando o seu alcance e cooptando as tendências que se contrapunham à marcha triunfal da mercadoria. O enquadramento ao regramento de personalização no modelo self-service crescente da política envolve os candidatos e os eleitores, nas campanhas eleitorais. No ciclo em curso, vale repetir, as escolhas estão carimbadas com idêntico mérito ou demérito, a critério dos consumidores soberanos. É do livre arbítrio a opção entre os partidos políticos de distintas ideologias, as informações sobre os postulantes aos cargos eletivos e os projetos em disputa. Cada preferência carrega uma racionalidade intrínseca. A liberdade de opinião, que os mass media transformaram em suporte da democracia para consumo dos indivíduos, no mercado da política, banalizou a comparação até mesmo entre o neofascismo e o antineofascismo. A tarefa da esquerda é desconstituir o sinal de equivalência. Tarefa árdua, levando-se em conta o Espírito do Tempo.

A repetição, mais pelos satélites estaduais do que pela central da Rede Globo, sobre a correspondênca descabida entre Bolsonaro e Lula pelo uso da metáfora da ferradura, cujas lingüetas em pinça tendem a convergir, reforça a delirante igualização. “Ambos são extremos do mesmíssimo eixo”, mente um cronista chapa-branca dos patrões. O antigo hebraico tem um termo, Navah, que explica a manobra, “dar existência ao que não existe”. O embuste recrudesce os padrões de consumo, onde interpretações se sobrepõem aos fatos. Sob uma perspectiva civilizacional, é vetado fazer tábua rasa dos valores cumulativos na democracia substantiva no cotejo com os desvalores da Pós-Verdade. Numa, por exemplo, narrativas sobre a superioridade étnico-racial, de gênero ou de classe estão interditadas no espaço público. Noutra, são esgrimidas a bel prazer em nome de uma falsa liberdade de expressão, encenada hipocritamente para perpetuar injustiças históricas. Incluir não é sinônimo de excluir. O libertador direito a ter direitos não se submete à discriminação. Diferenças de fundo político e ideológico importam. Compromissos com a res publica vs. res privata, idem.

Na sociedade de consumo / neoliberal vagamos no vazio de referências políticas coletivas. Partidos, sindicatos, associações, escolas, famílias já não asseguram uma identidade de pertencimento. Imperam as distopias no espelho retrovisor do estado de natureza hobbesiano, em meio ao nevoeiro da democracia do indivíduo e do consumo. No Brasil, experimenta-se a sensação sob os cascos de um governante que não cuida do povo, e não se sente feliz em defender a coisa pública. Ao contrário, sente-se à vontade para cometer o crime de negacionismo em relação à doença pandêmica (“gripezinha”), de genocídio (“imunidade de rebanho”) e de improbidade administrativa (“não posso saber de tudo”). Soube e foi cúmplice, aponta o escandaloso Esquemão de corrupção desvelado na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, com conhecimento e prevaricação do Mito (sic). O filósofo frankfurtiano Theodor Adorno dizia que “o livro é uma mercadoria, mas não como as outras”; seu conteúdo ilumina a razão. Parafraseando-o, pode-se dizer que Bolsonaro é um produto mercadológico, mas não como os outros; seu conteúdo podre e sórdido espalha o vírus da Barbárie contra a Civilização – e o Erário. Vade retro, Satana

  • Luiz Marques é professor universitário, UFRGS

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