Por Clédisson Júnior, na Carta Maior
Após quatro anos desde a sua ultima realização o governo brasileiro convocou para novembro de 2013 a III Conferencia Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), que visa reunir gestores públicos e representantes da sociedade civil, de todas as partes do Brasil, para debater de forma inédita o papel do desenvolvimento na construção de uma nação afirmativa.
Esta conferência tem como objetivo sistematizar, a partir da consulta junto à população brasileira, conceitos estratégicos para a construção de uma agenda positiva para as políticas de igualdade racial no próximo período. Democracia e desenvolvimento para um Brasil afirmativo será o tema de debates e discussões em todo território nacional que culminará na contribuição a um novo projeto nacional de desenvolvimento.
A construção deste novo projeto nacional de desenvolvimento, que de forma inédita leva em consideração os anseios e demandas elaboradas pela população negra e demais grupos étnicos historicamente marginalizados, é resultado de uma importante alteração na correlação de forças no interior da sociedade brasileira, processo iniciado há uma década, com a interrupção do ciclo neoliberal e o advento de uma nova alternativa de desenvolvimento econômico e social em nosso país.
O exercício de constituir hoje um projeto de desenvolvimento que inclua de forma harmônica e democrática a população negra será radicalmente diferente dos processos históricos que constituíram a dinâmica de formação do Estado e da sociedade brasileira e suas transformações nas relações sociais e de propriedade.
A História econômica do Brasil iniciou dentro da lógica de acumulação primitiva de capital, onde a economia brasileira era apenas uma extensão portuguesa na América. O desenvolvimento econômico brasileiro sempre esteve ligado e dependente do comércio internacional. No Brasil colônia a opção pela implementação da escravidão indígena em um primeiro momento, seguida do trabalho forçado de negros africanos tinha como objetivo garantir mão de obra para concretizar a acumulação primitiva dos representantes das elites portuguesas que aqui se estabeleceram e que tinham no acesso a terra, um abundante meio de produção.
Dotada de uma totalidade dialeticamente contraditória, a historia do desenvolvimento econômico brasileiro apresentava a mistura de atraso e modernidade, ambos convivendo, ainda hoje, lado a lado. O desenvolvimento desigual e combinado contribuiu para a conformação de uma dinâmica de dependência, assim como uma peculiar perspectiva econômica do Estado brasileiro.
A construção de um projeto de Estado, que em seu primeiro momento, teve como base a economia agrária exportadora, possui no aspecto político e econômico, importantes elementos simbólicos, representados nas figuras do latifúndio e da escravidão negra.
Ao passar do tempo, o crescimento econômico dos bens manufaturados e a e a decadência do sistema escravista impactaram de forma contundente na dinâmica de transição para a adoção de mão de obra livre assalariada imigrante, evidenciando o caráter discriminatório da compreensão do lugar do negro no projeto de desenvolvimento do Estado brasileiro.
É importante refletirmos que na historia recente do Brasil, a onda democratizadora que vivemos na última década, em que pese a sua singularidade, não foi capaz de romper com as estruturas de dominação, as relações, os processos e as políticas excludentes, base do nosso modelo de desenvolvimento.
A manutenção de elementos ligados a um modelo de desenvolvimento de matrizes (neo) liberal e antidemocrático ainda são presentes no seio do Estado brasileiro. Elementos como a mercantilização da reprodução da vida social; intensos investimentos na modernização do latifúndio agrário exportador, assim como sua capacidade de contenção dos avanços na reforma agrária; o monopólio das mídias dirigido pelas elites econômicas; a incapacidade em neutralizar os instrumentos que negam o princípio da soberania popular. Essa realidade tem gerado significativos atrasos na vida dos brasileiros/as, com especial atenção para a população negra.
Na busca por um projeto de desenvolvimento que inclua o conjunto da população negra e pobre do nosso país é muito importante que este processo de Conferência esteja em consonância com a conjuntura atual que vive o Brasil e o seu papel no mundo, assim como o importante dialogo com conceitos chaves na construção de uma plataforma abrangente e democrática.
Compreendemos a democracia como a construção radical da participação cidadã no fomento de pactos sociais que objetivem as escolhas de rumos e projetos coletivos para o país. Este conceito tem a sua gênese na sociedade civil e sua principal atribuição é a de promover a soberania popular.
Uma das condições desafiadoras na construção de um projeto nacional de desenvolvimento inclusivo consiste na implementação de uma meta síntese que vise integrar a democratização do Estado brasileiro com as estruturas econômicas vinculadas às escolhas democráticas do nosso povo.
A adoção de políticas econômicas como a redução dos juros, controle da inflação e do câmbio, foram fundamentais para a elevação da taxa de investimento e no crescimento da indústria no ultimo período, esse processo permitiu que o Brasil enfrentasse com qualidade a crise internacional que assombra a Europa e os EUA. A diminuição acentuada do desemprego e a saída de milhões de brasileiros da miséria, assim como a elevação do valor real do salário mínimo tem nos permitido visualizar as potencialidades de um projeto alternativo de desenvolvimento, que possa promover a dignidade na vida das classes populares e oprimidas.
Contudo é preciso avançar na institucionalização de novas metodologias de planejamento participativo para a gestão econômica e inclusão social de longo prazo. O planejamento participativo (democrático) consiste em um primeiro momento na ruptura com as bases patrimonialistas e liberais que forjaram a constituição do Estado brasileiro e que negaram à população negra e pobre a participação na gestão publica e nas finanças do Estado. Este processo visa garantir que os recursos do orçamento público, possam ser aplicados de acordo com as demandas elegidas pelo conjunto da população, considerando também as diferentes necessidades estruturais de cada região brasileira.
O fomento de um projeto de desenvolvimento sustentável e democrático deve levar em consideração as diferenças culturais que constituem o mosaico identitário do nosso povo, respeitando suas formas peculiares de organização social, assim como o uso de seus territórios e recursos deles provenientes. Estima-se hoje que mais de 25 milhões de brasileiros possam ser enquadrados nos critérios que conceituam os povos e comunidades tradicionais, grupos estes constituídos em sua grande maioria por indígenas e afrodescendentes (quilombolas).
Estes grupos nos têm apresentado alternativas ao modelo hegemônico de desenvolvimento, que consiste na relação equilibrada com o meio ambiente, na valorização do conhecimento tradicionalmente construído, na solidariedade e na busca pela satisfação de necessidades básicas de um maior numero possível de pessoas. A promoção e o fortalecimento do etnodesenvolvimento se apresentam como elementos estratégicos na constituição de um projeto de desenvolvimento que abarque em seu interior, todas as formas de interação da sociedade brasileira com suas forças produtivas.
As mulheres negras são a maioria entre as pobres e exploradas da sociedade brasileira e com isso se torna também as principais demandantes de reformas estruturais que democratizem e promova a condições dignas a reprodução do viver em nossa sociedade. O feminismo como movimento político organizado pelas mulheres, com especial atenção para as negras, tem muito a dizer sobre qual projeto de desenvolvimento será capaz de confrontar o processo dialético de liberdade publica e dominação privada que tanto as oprime, e que tem nesta conferência um importante momento de disputa de perspectivas e construções de sínteses.
Assim como a juventude negra que tem sofrido um verdadeiro processo de extermínio motivado pela violência urbana e pela ação armada do Estado, sendo sistematicamente excluída no atendimento às necessidades básicas de sobrevivência e garantias da dignidade. São os jovens negros que estão em maior número entre os desempregados, entre aqueles que levam o maior tempo para ser absorvido pelo mercado formal de trabalho, com menor escolaridade, detentores dos postos de trabalhos mais precarizados e sem acesso à justiça. A intensa desigualdade brasileira, associada às formas sutis de discriminação racial, impede o desenvolvimento das potencialidades dos nossos jovens.
A III Conferencia Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir) deverá ser o mais importante palco para discussões que apontem para a efetivação de um sistema nacional de promoção da igualdade racial, que unificará em uma única política todos os programas destinados a combater os fatores de marginalização e promover a integração social da população negra, lacuna deixada pela omissão do Estado brasileiro após a abolição da escravatura em 1888.
É fundamental que tenhamos como resultado deste processo de discussões, a convicção de que o desenvolvimento é muito mais que um processo econômico de superações dos limites impostos pelo modelo de produção vigente e hegemônico, mais que carrega em si os elementos necessários para o enfrentamento das contradições entre as classes sociais. A dinâmica de elaboração de um novo projeto nacional de desenvolvimento passa pela necessidade de elevarmos a critica ao Estado e a critica ao desenvolvimento capitalista.
A III Conferencia Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir) nos impõe a necessidade de construirmos, em conjunto com o governo federal, estados e municípios uma estratégica agenda de desenvolvimento para nosso país, que objetive superar uma dívida com sua população historicamente marginalizada, que há muito tempo anseia por tomar assento na construção deste projeto e que dialogue de forma permanente com as tarefas democráticas e populares frutos da nova realidade brasileira.
(*) Clédisson Júnior é conselheiro nacional de promoção da igualdade racial e membro da comissão organizadora da III Conapir pela sociedade civil.
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