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A ‘revolução passiva’ neoliberal | Luiz Marques

O neoliberalismo sequestrou a noção de “revolução”. Assim, uma fração hegemônica da classe dominante pôde apresentar-se com o discurso desabonador ao estado de coisas. O deslocamento do campo revolucionário permitiu à extrema direita assumir uma posição antissistêmica e, num giro de 180°, acusar de reacionários aqueles que expunham os ardis das reformas para a reconfiguração das relações entre capital e trabalho. A avalanche do pensamento único desceu o Mont Pèlerin, com tal violência, que a dama de ferro britânica virou uma espécie de porta-bandeira no quadro A liberdade guiando o povo (1830), de Eugène Delacroix. Os carbonários agora vestiam verde e amarelo.

Apoiados em entidades patronais com a promessa de limpar as entranhas corrompidas do Brasil, Jair Bolsonaro e o Chicago boy usufruíram da disponibilidade ao sacrifício por parte da população que padeceu as políticas antissociais. As dores do parto libertador eram compensadas pela esperança mágica no futuro, vencida a “herança maldita do esquerdismo”. A precarização da existência com o aumento do custo de vida, a disparada no preço dos combustíveis e o desemprego estrutural foram atirados nas costas de terceiros, ora no conflito da Ucrânia, ora no Congresso Nacional ou no STF. Apostou-se no neoliberalismo duro para desatravancar o crescimento e, por um efeito mimético, modernizar a nação. Nas ruas, a legião bolsonarista bradava com ódio uma recusa à ordem oficial.

Em depoimentos feitos à Polícia Civil/DF sobre o putsch frustrado de 8 de janeiro, e repassados à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investiga os atos de vandalismo em Brasília, os militontos declararam: “o golpe evitaria o comunismo, a escravidão sexual e traria a salvação espiritual”. Faltou acrescentar que buscavam a reprimarização do território brasileiro aos moldes do agronegócio, às expensas do Estado de direito democrático. A instrumentalização do medo ocupa espaço proeminente na epopeia da humanidade, cuja potência foi explorada pelo colonialismo e o patriarcado. Na Europa e nos Estados Unidos, o temor dos ultranacionalistas cristãos (xenófobos), brancos (racistas) e héteros (sexistas) é estimulado pelo aceno à “guerra cultural” representada por imigrantes, o black lives matter, o movimento feminista e os grupos lgbt. Muitos surfam na onda.

A Rede Globo e a Lava Jato orquestraram o assalto do novo fascismo aos corações e às mentes dos comuns. Na telinha, canalhas eram glorificados e escolhidos para o papel de heróis, tão hipócritas quanto medíocres; fora da tela, revelavam-se desprezíveis traidores da pátria. A mise-en-scène envolvia a mistificação da “técnica”. Os especialistas encarnam os profetas bíblicos, no sentido do Primeiro Testamento, ao propor alternativas para a redenção. Os laços subterrâneos com os bancos, investidores e acionistas não saem nos noticiários. A fabricação reiterada de falsas notícias promove as narrativas dissimuladoras das ideologias e dos interesses de classe, com a aparência de um saber imparcial, apolítico, neutro como sabonete de glicerina. Está em disputa a consciência plebeia.

Vide a cobertura midiática do boicote à reindustrialização do país pelo Banco Central (Bacen). Os juros extorsivos são anunciados por decisão de uma tecnocracia no Comitê de Política Monetária (Copom), “preocupada com a elevação inflacionária que tanto mal causa às famílias”. Evoca-se a memória de três décadas atrás a fim de ocultar os lucros com títulos da dívida pública, maximizada pela taxa Selic para atender os abutres milionários das finanças privadas, que ganham com os juros absurdos. Obriga-se o Estado a pagar somas superdimensionadas pelo Bacen de Roberto Campos Neto. Eis a Caixa de Pandora fechada a sete chaves. A quem serve o cavalo troiano, nas reuniões?

A oficialização da metamorfose neoliberal por meio de dispositivos legais abriu uma clareira para os bacanas locupletarem-se no banquete e, em simultâneo, posarem de bons samaritanos para os segmentos vulneráveis. A inflação é um pretexto para espoliar os contribuintes. Os cães de guarda encarregam-se de escrever a fábula da empatia de ricos para com a sorte dos pobres. A pantomima acoberta o dreno para repassar bilhões de reais às “elites”. Mina-se a crença nas regras do jogo, o princípio da soberania popular, a democracia nos trópicos. Coroa-se o preconceito antipolítica.

Estatismo neoliberal

Herbert Marcuse explica a sobrevida do Sistema pela capacidade de absorver “críticas”, inclusive as ácidas, e converter os protestos em mercadoria. Nos anos 1960, as mobilizações estudantis nos EUA contra a invasão do Vietnã ensejaram a comercialização de jaquetas militares, com manchas de sangue, na presunção de pertencerem a soldados norte-americanos mortos. Idêntico sucedeu com o corte grunge de cabelo dos anarquistas surgidos na Inglaterra, no final de 1970. Em uma semana, as escolas de cabeleireiros ensinavam a contra-estética punk na periferia de New York e São Paulo.

Já o neoliberalismo ensinou os poderosos a não temerem as denúncias à gramática capitalista e utilizarem a força das investidas ao status quo para abater os inimigos. Começou na desautorização da pastoral coletiva da Teologia da Libertação. O estopim foi dado por um livro – Igreja carisma e poder, do frei Leonardo Boff. Convocado a comparecer na Congregação para a Doutrina da Fé, em meados de 1980, o religioso foi condenado pelo Cardeal Ratzinger e o Papa João Paulo II à pena de “silêncio obsequioso”. Por injunções do Vaticano, Boff deixou a direção da revista Vozes. O flanco aberto na base da pirâmide social, para a pregação fundamentalista e hiperindividualista da Teologia da Prosperidade, facilitou a desconstrução da correia de transmissão progressista nas comunidades.

O conservadorismo maquiou-se com um perfil diferente para alavancar o extermínio de direitos, comandado pela lógica férrea de acumulação numa forma distinta de dominação e, a exemplo do liberalismo clássico, em oposição à soberania do Estado. “É preciso mudar em todos os domínios” tornou-se o slogan predileto dos apóstolos dos dez mandamentos do Consenso de Washington. Havia o desejo de ir adiante, com a bússola da ganância para desembarcar os sonhos na distopia.

Não obstante, as aventuras foram menos óbvias, não derivavam de uma “revolução em ativação”. O impulso à modernização veio dos países avançados e foi incorporado por intelectuais locais. Entre eles, Fernando Henrique Cardoso, ao pisar no acelerador das privatizações. O projeto não se ligava a uma demanda intrínseca das forças produtivas da economia nacional. Eram ideias fora do lugar que geraram desigualdades e sofrimentos protagonizados pelo Estado, os quais ainda perduram.

Não se confunda o antiestatismo da revolução sem ativação com as lições bakuninianas sobre o anarquismo. Dissociado do Estado e do monopólio da violência simbólica, nenhum programa anti-humanista impingiria uma racionalidade econômica à vida social, in totum. Com decretos oficiais, leis no Parlamento, respaldo no Judiciário, relatórios amigos no Tribunal de Contas e mensageiros na mídia, a necropolítica fez do retrocesso civilizacional um reino encantado e, da gente famélica, mero coadjuvante para satisfazer a gula do rentismo financeiro. Na empreitada, as garantias para o sucesso foram fornecidas pelo Leviatã alinhado ao extremismo direitista em ascensão, no patamar internacional. A direita moderada, de início, não percebeu a armadilha preparada pela conjuntura.

O estatismo neoliberal é um construtor de mercados. Despojar do aparelho estatal a regulação e o intervencionismo, relegando a economia para o crivo das empresas ao revés da sociedade, era e é fundamental para universalizar o paradigma empresarial da rentabilidade e desempenho na gestão da res publica e na formatação da subjetividade dos indivíduos, no espírito do capitalismo. Se o neoliberalismo governa o povo com olhos no amanhã é, não para preservar o constitucionalismo, senão gerir as tragédias e danos inerentes à concentração da riqueza e à destruição da natureza.

Humanismo socialista

Pierre Bourdieu, em A miséria do mundo (cem mil cópias vendidas, em formato convencional), diagnostica a doença privatista como uma “demolição dos serviços públicos”: fator estratégico para a perpetuação das torturas sociais. Na adversidade, a rebeldia recupera raisons d’agir para manter as conquistas ameaçadas. Enganam-se os que supõem uma defesa ingênua das balizas institucionais existentes. Os “anjos tortos” resguardam direitos adquiridos dos ataques do laissez-faire. Na análise concreta da realidade concreta inverteu-se a fórmula leninista para dois passos atrás, um à frente.

Erra também quem avalia que, de modo reativo, vingou a célere contrarrevolução conservacionista ou restauradora. As políticas neoliberais acenam intenções de inovação e ruptura. Trata-se de uma ação ofensiva para suspender a sociabilidade republicana e instituir o totalitarismo dos mercados, via o consenso no “andar de cima”. Num cenário de refluxo, o imaginário de mudanças obedeceu a dinâmica subversiva, em nome da liberdade do capital. Porém, não pretendeu subverter o arcabouço sistêmico; e sim, compromissos sociais impostos em dissídio pela organização dos trabalhadores.

Para Antonio Gramsci, a consolidação da concepção de mundo da bourgeoisie principiada em 1789, no caso da França, foi um trajeto de longa duração arrematado em 1871 com a derrota da Comuna de Paris para o “homem burguês”. Vinte mil cidadãos foram mortos e quinze mil presos, durante a semana sangrenta de maio do primeiro autogoverno proletário e popular da história. O genial marxista identificou na convulsão estrepitosa o batismo de covardia do regime argentário. Classes proprietárias antes iluministas e voltarianas viram na alienação e no emburrecimento das massas o expediente, doravante, para a própria manutenção no poder. A maturidade social e econômica na infraestrutura da sociedade não caminha, pari passu, com a maturidade política na superestrutura.

Nos Cadernos do cárcere (editados por Carlos Nelson Coutinho, volume 1, p. 280 ss), o pensador sardo usa o conceito de “revolução passiva” para denotar a persistente pujança da burguesia nos reordenamentos sociopolíticos que asseguram-lhe o poder, a iniciativa e a hegemonia. Daí o valor gnoseológico e político para entender, conceitualmente, a permanência da cosmovisão histórico-moral burguesa, mesmo não sendo a classe revolucionária. O fascismo europeu em 1920-30 e o neoliberalismo contemporâneo, no Brasil, integram a categoria de revolução passiva. Idem, a Revolução de 1930 e, na versão militar, a Revolução de 1964. Parafraseando T. S. Eliot: “Assim expira o mundo / Não com uma explosão, mas com um suspiro”. Expira e renasce, pelo alto.

A tese da repaginação do liberalismo por Friedrich Hayek, Ludwig von Mises, Milton Friedman et caterva impôs uma reatualização ao abecedário cognitivo para a compreensão do passado-presente. A fórceps, quando necessário for ao culto do deus-mercado. A antítese para frear tamanha inflexão autoritária acha-se em uma autonomização das classes subalternas, pela práxis político-ideológica. A cimentação de uma contra-hegemonia é fruto de lutas cevadas com paciência e teimosia. Não por determinismo ou por destino, mas para materializar uma possibilidade, dentre outras. O processo exige a unificação dos lutadores sociais e políticos em torno de vetores programáticos nítidos.

Hoje, o método contrafogo do governo Lula no combate à infelicidade pública provocada pelo incêndio da desrazão egoica das finanças efetua-se com: a) investimento social; b) desenvolvimento sustentável e; c) participação cidadã. Nesta perspectiva, o caráter “passivo” da revolução neoliberal tem a chance então de ceder ao caráter “radical” (que vai à raiz), condição incontornável para a esquerda se reapropriar da bandeira da revolução emancipadora, estampada no quadro de Eugène Delacroix. A igualdade, a liberdade e a solidariedade indicam o rumo para o humanismo socialista.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul.

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