Por Vicenç Navarro, na Carta Capital
Uma das características da situação dos dois lados do Atlântico Norte foi o enorme crescimento das desigualdades, com uma grande concentração dos rendimentos e da propriedade, unida à grande deterioração das instituições democráticas, causada por esta concentração. As instituições políticas dos países estão muito influenciadas por poderes financeiros e econômicos e pelos setores com maior riqueza, que induzem as intervenções públicas a favorecer os interesses destes poderes e setores à custa dos da maioria da população.
Isto está criando uma perda de legitimidade e de apoio popular às instituições chamadas representativas, junto com a diluição da confiança que a cidadania tinha no poder do Estado (dirigido pelas autoridades políticas) para garantir um progresso do desenvolvimento econômico do país, de tal maneira que as gerações novas vivessem melhor que as anteriores. Esta esperança desapareceu. Na realidade, grandes setores da população, que em alguns países chegam à maioria, são conscientes de que “os filhos não viverão melhor do que os seus pais”. Este sentimento ficou muito bem refletido nas declarações do candidato, mais tarde presidente de França, François Hollande, expressadas durante a campanha eleitoral naquele país. “Até há pouco – disse Hollande – todos tínhamos a convicção de que os nossos filhos teriam melhores vidas que nós. Já não é assim. Esta convicção, que respondia a uma realidade, está a desaparecer”. Esta situação é paradoxal, pois a riqueza dos países (incluindo a França) continua a crescer, na medida em que cresce a sua economia, realidade que só se interrompeu recentemente com a Grande Recessão. Mas esta convicção (e realidade que a sustenta) já existia antes da recessão, ainda que se tenha acentuado mais com a crise atual.
Como é possível que a sociedade seja mais rica e que, em contrapartida, os filhos vão viver pior que os seus pais?
A resposta a esta pergunta é que o crescimento econômico se distribui muito desigualmente, concentrando-se nos rendimentos superiores, como resultado das políticas públicas que se aplicaram na maioria dos países do Atlântico Norte. Estas políticas foram iniciadas pelo presidente Reagan nos EUA e pela Sra. Thatcher na Grã-Bretanha, na década de oitenta do passado século.
No seu artigo “The Rich get Richer. Neo-liberalism and Soaring Inequality in the United States” na revista de economia norte-americana Challenge (março-abril de 2013), o autor, Tim Koechlin, detalha a grande concentração dos rendimentos e da riqueza nos EUA como consequência da aplicação destas políticas. Em 1979, os 1% da população com maiores rendimentos (os super ricos) ganhavam 9% de todo o rendimento dos Estados Unidos. Em 2007, esta percentagem aumentou para 24%, a mais elevada registrada desde 1920, quando se iniciou a Grande Depressão nos EUA.
De onde procede esta concentração dos rendimentos e da riqueza? A resposta reside na má distribuição da riqueza criada pelo mundo do trabalho. Os dados mostram-no claramente. A produtividade do trabalhador durante o período 1973-2008 praticamente duplicou. Isto é, um trabalhador produzia por hora quase mais duas vezes em 2008 do que o que produzia em 1973. O seu salário, no entanto, cresceu só 10% durante o mesmo período. Mas os diretores das grandes empresas viram crescer os seus rendimentos desmesuradamente. Enquanto o CEO (Chief Executive Officer) de uma grande empresa recebia em 1973 22 vezes mais que o trabalhador médio da sua empresa, em 2008 esta relação subiu para 231 vezes (segundo Lawrence Mishel, The State of Working America. A report of the Economic Policy Institute. 2012, table 4.33).
Uma situação ainda mais acentuada ocorre quanto à distribuição dos elementos da propriedade que geram renda (tais como terras, ações, bônus, etc.). Entre 1983 e 2010, os 5% da população com maior propriedade viram-na crescer 83%, enquanto os 80% de toda a população (a grande maioria da cidadania) viam descer a sua propriedade em 3,2%. Em consequência, os 1% da população com maior riqueza, que tinham 20% de toda a riqueza em 1971, passaram a ter 35% em 2007. Os 10% dos super ricos em 2007 tinham 73% de toda a riqueza, enquanto os 40% das famílias (as classes populares) tinham só 4,2% de toda a propriedade. A concentração da riqueza atingia níveis ainda mais exuberantes em alguns tipos de propriedade. Assim, os 10% da população tinham 98,5% de todos os valores financeiros (ações e outros títulos de crédito), enquanto os 90% restantes tinham só 1,5%.
A concentração de poder econômico e financeiro enfraquece enormemente a democracia, até o ponto de eliminá-la em muitos países.
Esta enorme concentração dos rendimentos e da riqueza dificulta e impede o desenvolvimento democrático de um país, pois os sectores ricos e super ricos da população exercem uma enorme influência, poderia dizer-se controlo, sobre os aparelhos dos seus Estados e os seus ramos executivos, legislativas e judiciais. Mais, estes grupos e setores desenvolvem as suas próprias redes, associações e conferências (nas quais são incorporados dirigentes políticos de todas as sensibilidades políticas), promovendo as suas ideologias, que coesionam e defendem os seus interesses, apresentando-os como os únicos aceitáveis ou respeitáveis, e as suas políticas (que favorecem os seus interesses) como as únicas possíveis.
As alianças destas elites desempenham um papel chave nas realidades políticas. O casamento entre os super ricos e ricos, por um lado, e os políticos conservadores e liberais (e de uma maneira crescente algumas personagens da social-democracia), pelo outro, é uma constante nos sistemas políticos, fonte de contínua corrupção. Há múltiplos exemplos disso. A influência da família que governa um sistema quase feudal, o Qatar, nas instituições políticas europeias não é menor. O presidente Nicolas Sarkozy deu amplas vantagens fiscais aos interesses dessa família, que lhe subvencionou as campanhas eleitorais e mais tarde as suas atividades pós-presidenciais. Tony Blair é um dos assessores melhor pagos do J.P. Morgan (e é frequentemente convidado por fundações e grupos de reflexão para dar lições sobre o futuro da social-democracia). E estou escrevendo estas linhas no mesmo dia em que o Sr. Giuliano Amato foi proposto como Presidente da Itália pelo Partido Democrático da Esquerda italiana, sendo esse político um assessor bem pago do Deutsche Bank. Na Espanha, a lista de Presidentes, Ministros e autoridades políticas dos partidos majoritários em grandes empresas e nas suas CEO (Endesa, Telefónica, Repsol, etc.) é enorme. Não é casualidade que o preço da eletricidade e das chamadas telefônicas, bem como o do petróleo, sejam dos mais caros da UE. Esta cumplicidade entre os grupos financeiros e econômicos e a classe política dominante é a característica destes tempos. A imunidade da banca, com os seus conhecidos paraísos fiscais, baseia-se precisamente nesta cumplicidade.
Não é preciso dizer que há muitos políticos que não fazem parte desta engrenagem de cumplicidades. Mas as elites dirigentes estão sim plenamente entrelaçadas com interesses fáticos que configuram em grande maneira as suas políticas públicas. Daí que a grande maioria destes super ricos e ricos não pague impostos, ou pague muito menos em termos proporcionais, que o cidadão normal e corrente, coisa que é feita até com a lei na sua mão, sem precisar de comportamentos ilegais (sem excluir, no entanto, estas práticas, que estão também generalizadas).
Este sistema está em profunda crise. O casamento do poder financeiro-econômico com o poder político é o eixo do descrédito das instituições chamadas democráticas, que tem a sua origem (causa e consequência) nas enormes desigualdades. A excessiva proximidade entre a classe política dominante e as classes sociais dominantes (as elites financeiras e empresariais e os sectores afins de rendimentos superiores) mostra-se com toda a clareza na distância existente entre as elites dirigentes e as suas políticas públicas, por um lado, e as classes populares, que constituem a maioria da população, pelo outro. Estas últimas desejam políticas diferentes e opostas às que as primeiras estão a promover e implementar. Existem múltiplos exemplos disso. A grande maioria das populações do Atlântico Norte consideram que 1) os rendimentos do capital deveriam ser taxados na mesma proporção que os rendimentos do trabalho, sem que isso tenha sido aceito pelos governos; 2) o pagamento de imposto deveria ser progressivo, de maneira que os super ricos e ricos pagassem (na realidade, e não só nominalmente) em impostos tantas vezes mais do que o cidadão normal e corrente paga quanto seja a diferença de rendimentos e propriedade entre os super ricos e ricos, e o cidadão normal e corrente; 3) dever-se-iam eliminar os paraísos fiscais; 4) dever-se-ia estabelecer um máximo de riqueza e de nível de rendimentos, como mecanismo de redução das desigualdades; 5) dever-se-iam reduzir as desigualdades que (os 78% de cidadãos como média da UE) consideram excessivas; 6) dever-se-ia eliminar a influência do dinheiro nas campanhas políticas e na solvência dos partidos políticos; 7) dever-se-ia romper o casamento entre instituições financeiras e empresariais e o mundo político; 8 ) um político não deveria poder trabalhar no setor que regulava ou vigiava na administração pública, nos primeiros cinco anos após deixar o cargo; 9) o Estado deveria intervir no setor financeiro para garantir a disponibilidade do crédito a famílias, indivíduos e médias e pequenas empresas; 10) deveria haver um salário mínimo que permita uma vida decente e que aumente de acordo com o aumento dos preços; 11) dever-se-iam garantir os serviços públicos do Estado de Bem-estar, evitando a sua privatização; e assim um longo etc. Nenhuma destas políticas está a ser levada a cabo nestes países. E, a nível macroeconômico, a maioria da cidadania deseja o fim das políticas de austeridade e quer políticas de expansão dirigidas a criar pleno emprego. O fato de que não se realize cada um destes pontos deve-se à excessiva influência que os grupos que concentram os rendimentos e a riqueza têm sobre o Estado. E aqui está o problema da democracia. Frente a esta realidade, limitar o debate à reforma política sobre se devem ou não haver listas abertas, parece-me muito, mas muito insuficiente.
*Artigo publicado originalmente por Vicenç Navarro na coluna “Domínio Público” do diário PÚBLICO (Espanha), 9 de maio de 2013. Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
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