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Bolsonaro, pandemia e pandemônio | Marcelo Uchôa

“O brasileiro quer trabalhar, esse negócio de confinamento aí tem que acabar, temos que voltar às nossas rotinas. Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência” (…) “Não podemos agir dessa maneira irresponsável. O vírus, mais forte ou mais fraco vem. É igual uma chuva, vai aparecer, você vai se molhar e toca o barco e não pode simplesmente se esconder, se enclausurar”.

(Jair Bolsonaro. Programa Brasil Urgente, 27 de março de 2020)

 

O presidente da República Jair Bolsonaro não pode ser responsabilizado pela ocorrência da pandemia de coronavírus, mas pode e deve ser responsabilizado por ações e omissões tomadas à frente do comando do país ante a crise de saúde. Precisar em que medida isso deverá ser realizado é que será o xis da questão.

A Constituição da República expressa taxativamente no art. 85 que são crimes de responsabilidade do presidente aqueles que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra: “I – a existência da União; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração;”.

A Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento, repete o enunciado do comando constitucional no art. 4º, elencando, nas disposições seguintes, cada uma destas violações.

No art. 5º, inciso 9, considera crime de responsabilidade praticado contra a existência da União: “não empregar contra o inimigo os meios de defesa de que poderia dispor”. Recentemente, a jurista Carol Proner, da Associação de Juristas pela Democracia, escreveu texto (Brasil de Fato, 21 de março de 2020) em que presume a necessidade de conferir-se à situação jurídica em curso um caráter de guerra, afinal, “Macron foi enfático quanto ao inimigo invisível. Trump invocou ato de produção de defesa civil para garantir álcool gel e máscaras em escala militar. Merkel qualifica o vírus como o maior desafio da Alemanha desde a 2ª Guerra Mundial”. Havendo guerra, há inimigo (o coronavírus), devendo o presidente empregar contra este os meios de defesa de que poderia dispor. Estaria o presidente empregando-os adequadamente?

No art. 7º, inciso 9, a Lei 1. 079/50 prescreve ser crime de responsabilidade praticado contra o livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais: “violar patentemente qualquer direito ou garantia individual constante do art. 141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo 157 da Constituição”. A Constituição vigente à época do comando legal era a de 1946. Apesar da revogação daquela Carta Magna, os direitos previstos em seus artigos 141 e 157 foram transportados para o Título II da Constituição atual (Dos direitos e garantias fundamentais), sendo ali acrescidos. Um dos direitos sociais enaltecidos foi o direito a saúde previsto no art. 6º: “São direitos sociais a educação, a saúde…”. É elementar que se tome por direito à saúde não apenas o direito a gozar de uma estrutura estatal de atenção à saúde, mas o próprio direito de não adoecer, isto é, de manter-se são. Estaria o presidente da República corroborando com isso?

O art. 8º, inciso IV da Lei de 1950 define ser crime de responsabilidade realizado contra a segurança interna do País “praticar ou concorrer para que se perpetre qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal” e “não dar as providências de sua competência para impedir ou frustrar a execução desses crimes”. Garantir a segurança interna do País significa prover a estabilidade nacional, trabalhar para que seus cidadãos vivam protegidos, cuidados, preservados. Propiciar condições para uma vida não somente protegida, mas preservada, é uma inferência que deve perpassar a conotação de guarda policial e contemplar uma ideia mais ampla de segurança em todos os níveis, inclusive nos níveis regulares de saúde. O presidente da República vem colaborando com esse estado de garantia?

O art. 9º, inciso 7, da comentada lei prevê como crime de responsabilidade exercido contra a probidade na administração: “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Não há uma fórmula que defina todas as nuances do que deva ser responder à altura do cargo, porém infere-se que respeitar a lei, obrigação imposta, indistintamente, a todas e todos, é uma requisição básica à mais alta autoridade política nacional. Estaria o presidente preenchendo este imperativo?   Se qualquer dos quatro dispositivos constitucionais citados tiver sido afrontado pelo presidente da República, houve cometimento de crime de responsabilidade suscetível de impeachment.

Pois bem. O título VIII do Código Penal brasileiro destina-se a tipificar os crimes contra a incolumidade pública. Inserido no capítulo III (sobre as violações à saúde pública) o art. 267 prevê o crime de epidemia: “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”. Para tal ilícito, a lei prevê pena de reclusão de dez a quinze anos, sendo aplicada em dobro se do fato resultar morte (§ 1º), por alteração da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos). Por força do art. 2º, inciso I, desta lei, o crime também passa a ser insuscetível de anistia, graça e indulto (inciso I, em combinação com o inciso XLIII, do art. 5º, da Constituição). Já se o crime for culposo a pena será de detenção de um a dois anos, mas se resultar morte, de dois a quatro anos (§ 2º).  O art. 268, por sua vez, que trata do crime de infração de medida sanitária preventiva, estipula que “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa” leva à pena de detenção de um mês a um ano, e multa. Em toada semelhante, o art. 330 do Código Penal, ao tratar do crime de desobediência, estipula que “desobedecer a ordem legal de funcionário público” leva à pena de detenção, de quinze dias a seis meses, e multa. O Código também disciplina no art. 132, sobre perigo para a vida ou saúde de outrem, que “expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente” leva à pena de detenção, de três meses a um ano, se o fato não constituir crime mais grave.

A pandemia de coronavírus (COVID-19) foi declarada pelo diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Ghebreyesus, no dia 11 de março, após o surto avançar, em pouco mais de três meses, sobre 114 nações, provocar 118 mil infecções e resultar em 4.291 mortes. Na ocasião, o funcionário internacional alertou: “preparem-se, detectem, protejam, tratem, reduzam o ciclo de transmissão, inovem e aprendam”. No mesmo dia 11 de março, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, comentou que a crise epidemiológica consistia numa ameaça comum a todas as nações. Dias antes, o Brasil havia promulgado a Lei n. 13.979, de 6 de março de 2020, dispondo sobre “medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”. Por força da disposição do art. 5º da referida lei, “toda pessoa colaborará com as autoridades sanitárias na comunicação imediata de: I – possíveis contatos com agentes infecciosos do coronavírus; II – circulação em áreas consideradas como regiões de contaminação pelo coronavírus”.

Esta mesma lei de 6 de março, através do parágrafo único de seu art. 2º, faz conexão com o Decreto n. 10.212, de 30 de janeiro de 2020, que promulgou o texto revisado do Regulamento Sanitário Internacional, acordado na 58ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, em 23 de maio de 2005. Este regulamento internacional, aprovado no âmbito da OMS, dispõe no artigo 7, sobre compartilhamento de informações durante eventos sanitários inesperados ou incomuns, que “caso um Estado Parte tiver evidências de um evento de saúde pública inesperado ou incomum dentro de seu território, independentemente de sua origem ou fonte, que possa constituir uma emergência de saúde pública de importância internacional, ele fornecerá todas as informações de saúde pública relevantes à OMS. (…)”.

Dos diplomas domésticos e internacionais mencionados observa-se que consiste em crime corroborar com a propagação de surto contangiante, sendo expressamente determinado que casos suspeitos e confirmados devem ser devidamente informados às autoridades nacionais e mundiais vinculadas à temática, a fim de que providências de contenção epidemiológica sejam patrocinadas. No dia 15 de março, porém, posteriormente à promulgação de todas as normas, o presidente da República, recém-chegado de viagem dos Estados Unidos, consciente de que membros de sua comitiva haviam contraído o coronavírus, integrou ato público em defesa de seu governo à frente do Palácio do Planalto, contra os Poderes Legislativo e Judiciário. A partir de então, passou a referir-se constantemente sobre o surto epidemiológico como “gripezinha”, mantendo-se apático ao drama de saúde pública que viria consumar-se.

Desde o retorno dos Estados Unidos, 23 pessoas integrantes de sua comitiva confirmaram teste positivo para a Covid-19. O presidente, porém, sustenta haver testado negativo para o teste, recusando-se a demonstrá-lo mediante a apresentação do exame. No dia 13 de março, a Fox News anunciou em matéria jornalística que o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, havia confirmado o teste positivo do pai. A polêmica continua aberta sem que o chefe do Executivo manifeste intenção de esclarecer a população, de maneira categórica, sobre seu estado de saúde. De qualquer maneira, se estiver mentindo, cometeu crime ao não comunicar adequadamente às autoridades de saúde sobre sua condição; por haver interagido diretamente com o público podendo tê-lo contaminado; por haver infringindo as normas nacionais que disciplinam sobre a postura diante do surto, para não falar da contribuição à persistência da disseminação epidemiológica através de suas falas, ações e medidas. Na contramão desta postura, no último dia 26 de março, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson confirmou haver testado positivo para a doença, reforçando a premissa elementar de que se alguém se reconhece como atingido pelo surto, não precisa apresentar o teste, entretanto, se se reconhece saudável, a prova conclusiva precisa ser apresentada para que as autoridades competentes tomem as providências adequadas.

Resistentes a ideia de que o Brasil deveria manter-se indiferente à pandemia, em cumprimento às diligências determinadas pela Lei n. 13.979/20, governadores estaduais e prefeitos passaram a tomar providências a fim de evitar aglomerações de pessoas, determinando a suspensão de atividades comerciais, culturais, escolares e religiosas, circulação em geral, entrada e saída humana nas diversas divisas. Mas, no dia 24 de março, o presidente do país, em pronunciamento oficial em cadeia de rádio e televisão, anunciou que tais medidas eram ineficazes e conclamou a população a retomar suas atividades normais, sob pena de agravamento do cenário econômico. Ao que se sabe, está prestes a dar início à campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, repetindo desastrosa fórmula adotada pela prefeitura de Milão, “Milão não para”, que, após incentivar à manutenção das atividades econômicas normais, deparou-se, um mês após a deflagração da propaganda, com um cenário de mais de 35 mil pessoas com contágio de coronavírus confirmados apenas na região da Lombardia, cerca de 5 mil óbitos, representando 40% e 55% do total de contágios e óbitos do país, respectivamente. No dia 22 de março, o prefeito de Milão, Giuseppe Sala, desculpou-se publicamente pela fatídica recomendação.

Nada, entretanto, parece frear o ímpeto letal do presidente brasileiro. Em 27 de março, em entrevista concedida ao apresentador José Luiz Datena no programa Brasil Urgente, o mandatário voltou a defender o fim das estratégias do que considera “alarmismo” de certas autoridades dos executivos estaduais e municipais, o isolamento social, para conter o avanço da pandemia. Assim pontuou: “O brasileiro quer trabalhar, esse negócio de confinamento aí tem que acabar, temos que voltar às nossas rotinas. Deixem os pais, os velhinhos, os avós em casa e vamos trabalhar. Algumas mortes terão, mas acontece, paciência” (…) “Não podemos agir dessa maneira irresponsável. O vírus, mais forte ou mais fraco vem. É igual uma chuva, vai aparecer, você vai se molhar e toca o barco e não pode simplesmente se esconder, se enclausurar”. Na entrevista, o presidente confessou que estava “conversando” com ministros de seu governo para convencê-los a abandonar as estratégias de isolamento social. Em poucos minutos as hashtags #BolsoNero e #ImpeachmentDeBolsonaro viraram assuntos do momento no Twitter.

Esta posição presidencial contraria a orientação da OMS e da ONU e segue na direção oposta do adotado pela expressiva maioria das nações no mundo inteiro que vê no distanciamento entre as pessoas a única forma de mitigar a assustadora progressividade da pandemia. Mundo afora adiaram-se jogos olímpicos, suspenderam-se competições e eventos internacionais, fecharam-se fronteiras, restringiram-se fluxos aéreos e marítimos. Não seria tudo isso suficiente para reconhecer que o presidente do Brasil atua temerariamente à frente do Executivo nacional? Muito coerentemente a jurista da ABJD Gisele Ricobom, em texto co-assinado com o biólogo Lucas Aguiar na Revista Carta Maior, em 25 de março, conclui que essa resistência do presidente às recomendações científicas de saúde, associada à aberta indisposição com as medidas federativas estaduais e municipais de contenção epidêmica, podem repercutir em “subnotificação de mortos e na ausência de um controle estatístico por falta de testes”, legitimando projeções mais pessimistas do número de mortos no Brasil.

Para além disso, levando em conta o número de mortes já atestado e a probabilidade de alavancar-se a fatalidade após tamanha inconsequência, não seria de se supor que a ação da autoridade nacional foi criminosa, resultando em mais mortes, portanto, no cometimento de múltiplos homicídios? Em sentido diverso, ao estimular a retomada das atividades normais e facilitar o curso crescente da pandemia não teria a autoridade federal incorrido numa provocação ao contágio?

A ação de incitar publicamente a prática de crime está prescrita no art. 286 do Código Penal, com previsão de pena de detenção de três a seis meses, ou multa. O homicídio em si, matar alguém, tem pena de reclusão de seis a vinte anos, segundo ao art. 121 do Código. Na pior das hipóteses, a ação criminosa do mandatário federal poderia ser compreendida como induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação. Neste caso, a lei penal em seu art. 122 prevê a pena de seis meses a dois anos, ressaltando que se a mutilação ou tentativa de suicídio resultar em lesão corporal de natureza grave ou gravíssima a pena será de reclusão de um a três anos (§ 1º) e se efetivamente consumar-se a morte a pena será de reclusão de dois a seis anos (§ 1º). Haverá duplicação da pena se o crime for praticado por motivo egoístico, torpe ou fútil ou se a vítima for menor ou tiver capacidade de resistência diminuída (§ 3º, I e II).

Se, por outro lado, o crime for interpretado como homicídio em massa (ou melhor, de massa) a hipótese passa a ser de genocídio, delito que é normalizado pela Lei n. 2.889, de 1º de outubro de 1956, que o define como conduta atribuível (art. 1º) “a quem com a intenção de destruir, no todo ou em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso: a) matar membros do grupo;  b) causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submeter intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física total ou parcial”. Para as situações das alíneas a, b e c são previstas as penas de reclusão de doze a trinta anos, dois a oito anos e dez a quinze anos, respectivamente. Sendo crime hediondo não é passível de recebimento de anistia, graça e indulto, segundo comentado.

Pior, para além de ser crime hediondo, o genocídio é prática extravagante, excepcional, tomado como de extremada gravidade até mesmo quando comparado com outras modalidades criminais. Configura uma conduta tão repugnante para a civilização que ganha status de crime internacional. A Constituição do Brasil dispõe no § 4º do art. 5º que “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. Em decorrência, o Brasil integra o Tribunal Penal Internacional (TPI), regido pelo Estatuto de Roma adotado em 17 de julho de 1998, em vigor na ordem internacional em 1º de julho de 2002, com promulgação interna pelo Decreto n. 4.388, de 26 de setembro de 2002. Pelo art. 1º do Estatuto, o TPI tem competência para apurar e decidir sobre o crime de genocídio. Dispõe a norma no art. 6º que o genocídio consiste em:   a) homicídio de membros do grupo; b) ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo; c) sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial. Isto é, ainda que a conduta do presidente não tenha sido de morte direta, já estaria apta para configurar-se como genocídio por sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar sua destruição física, total ou parcial.

No art. 7º, o Estatuto do TPI refere-se aos crimes contra a humanidade. Por ali, se vê que são assim considerados, desde que “cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”, que bem poderia ser inferida à situação: a) homicídio; b) extermínio; e, ainda, k) outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

Em resumo, alguém já parou para pensar sobre em que poderá ter se metido o presidente do Brasil com sua inescusável ignorância? E mais, nas consequências jurídicas que podem advir da malfada postura se a incitação pró-fim do isolamento for levada adiante pela população e mortes acontecerem por sua causa, sem nem mencionar os prejuízos de adoecimento não letais que advirão da difusão do surto epidêmico? Por tratar-se de pandemia definida pela OMS, ameaça à humanidade segundo a ONU, as ações e omissões do presidente brasileiro possuem fio doméstico, mas irradiam para o cenário internacional, podendo seu dolo ou culpa ser apreciados pela ordem jurídica internacional, mesmo que a condição da jurisdição do Tribunal Penal Internacional seja compreendida como complementar e subsidiária à do direito doméstico.

Bom lembrar que, pela redação do art. 27.1 do Estatuto do TPI, a imunidade de Chefe de Estado não “eximirá a pessoa em causa de responsabilidade criminal nos termos do presente Estatuto, nem constituirá de per se motivo de redução da pena”, sendo a norma internacional taxativa no incisivo 2: “As imunidades ou normas de procedimento especiais decorrentes da qualidade oficial de uma pessoa; nos termos do direito interno ou do direito internacional, não deverão obstar a que o Tribunal exerça a sua jurisdição sobre essa pessoa”. Ou seja, se assimilada a natureza internacional do crime cometido, o Brasil poderá ser compelido a entregar o presidente da República à Corte Internacional para consequente responsabilização, caso denunciado. Acertou o deputado federal Marcelo Freixo quando tuitou no último dia 24: “temos uma pandemia e um pandemônio”.

Não é objetivo deste texto apresentar conclusões, mas, tão-somente, provocar os intelectuais do país a um exercício de hermenêutica sobre esse complexo dilema que reúne, ao mesmo tempo, fusão de possíveis crimes de responsabilidade e crimes de natureza comum; crimes domésticos e, quem sabe, internacionais. Ressalte-se que esta conjectura recai apenas sobre as ações e inações presidenciais no enfrentamento direto da pandemia de coronavírus, não traz à baila os conflitos federativos e institucionais inflamados, o destempero no lidar com a imprensa, a omissão de informações, fatos adjacentes ao drama. Tais incidentes suscitariam a ocorrência de mais crimes de responsabilidade (contra o livre exercício dos Poderes e unidades federativas e o respeito à probidade da administração, especialmente a atenção ao decoro do cargo), além de outros crimes comuns, alguns já apreciados, outros escapados à memória. Ademais, o que pauta o texto é apenas o cenário no entorno da pandemia. Exclui-se de apreciação tantos e tantos eventos possivelmente motivadores de muitos outros ilícitos desde a posse na presidência da República.

Marcelo Uchôa é Advogado e Professor Doutor de Direito Internacional da Universidade de Fortaleza. Integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) – Núcleo Ceará.

Artigo publicado originalmente em ABJD.

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