Poema em voz alta para ser lido nas vigílias em defesa da Democracia. Por Pedro Tierra
I.
Armazém das Utopias. Cais do porto.
Descrevemos uma larga parábola
como se desenhássemos a cartografia
de um improvável regresso
ao que fomos um dia (e já não somos)
ao largar do porto de partida:
um chão de fábrica,
um remoto campo de futebol.
Aqui estamos num verão tardio
sobre esse chão castigado por séculos de suor.
Salgado pelos pés de negros e estivadores.
Os rostos marcados por tantas batalhas.
E essa luz de estrelas,
talvez extintas,
nos fere os olhos e o coração, mais uma vez.
Envolvido pela algaravia das vozes,
pelo calor dos corpos,
esperanças e enganos que me cercam,
teço com os dedos do espírito,
num relâmpago,
como na tela plana de um computador,
essa íntima geografia de tempo e silêncio
por onde miro as sólidas estruturas de ferro,
tijolo
e sonhos
que nos abrigam, por um momento,
da ferocidade dos inimigos.
Contemplo a fria lâmina dos ódios
que desatamos.
Temperada por séculos no fogo lento
dos banguês, das caldeiras
desse engenho tropical de mando
movido à surda força de espora e rebenque
e penso:
como podemos esperar um ato
de contenção ou respeito
da mão que nos desce o látego
sobre o lombo em carne viva?
E maneja a lâmina, de golpe,
contra a cabeça que se levanta?
A mesma mão guiada pela fúria
de quem dia após dia,
por vergonha,
desejou nos encarcerar no ventre?
E nos negar a luz e o ar que respiramos?
E nos calar a voz e interditar o gesto?
Essa ibérica senhora coberta de rendas,
e arrogância,
habitante do solar da Casa Grande
para quem nunca deveríamos ter nascido?
E saber que apesar dela nascemos…
Contra seu ventre, nascemos…
renascemos todos os dias,
como se fôramos uma vingança da vida,
com outra luz, que ilude o cerco da sombra,
e acende uma aqui uma nova face,
outra estrela recolhida
no estoque infinito das utopias,
renascemos…
II.
Que a cidade possa nos ouvir
desde o Cais do Valongo.
Que o país possa nos ouvir
pela voz sobrevivente de João Cândido
um dia enterrado em cal virgem.
Renasce aqui o rumor das ruas
entre a canção e o grito
que se desata de dentro das veias
para alcançar os ouvidos da multidão
anestesiados pela Hidra de Lerna
ou do Jardim Botânico? Pergunto.
Será esse o lugar
onde viemos beber canções
pisadas pelos pés de negros,
guiados pela batida dos tamborins,
que se ouvem nos becos da Lapa,
nos morros da Providência e da Conceição
para retomar a marcha?
Aprendemos nos Pelourinhos
que não se palmilha
desertos tão vastos, sem recuos.
Sem erros na rota que traçamos
e o vento varreu do areal durante a noite.
Sem traições, desvios, vilanias.
Sem as perdas de muitos
que a tempestade apartou de nós.
Sei, desde tempos subterrâneos,
que não estão vendados os olhos da Justiça.
Que Justiça pode fazer a justiça de uma só face?
Que Justiça pode fazer a justiça de classe?
Mira com um olho só
a justiça dos meninos de granja.
Invocamos nossos santos e orixás,
nossos combatentes e sua memória
para redesenhar o percurso.
Repercute no peito o som do surdo.
Ecoa a cadência de um samba antigo,
sempre novo, para alimentar esse delírio
que nos assalta a medula:
fomos condenados à liberdade.
Seguiremos proscritos
por uma ordem sem remédio.
Alimentados pela voz rouca do peão
que não se dobra ao açoite.
Devo curvar-me até ao chão
para recolher os estilhaços da estrela,
a palavra e o sal
que sustentam nossas dúvidas
e nossas certezas:
não seremos expulsos do tempo
que nos coube viver.
Contemplo vigas, tijolos, palavras.
Os rostos. Os corações abertos.
As cores, os abraços. As lágrimas.
Os olhos das pessoas inundados
pelo sublime veneno da esperança.
Estamos de pé,
para retomar a marcha interrompida.
Agora é a vigília.
Agora é a rua, a praça, os becos, os morros, os cais.
O chão da fábrica, o assédio à cerca do latifúndio.
As escolas ocupadas pelos que nasceram depois de nós.
A guerrilha digital contra a acidez do ódio
Que dissolve a invencível alegria de nossa gente.
Rio, 27/02/2016
Brasília, 10/03/2016
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