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De onde eles vêm, comentário sobre o livro de Jefferson Tenório | Luiz Marques

A mais recente obra de Jefferson Tenório, De onde eles vêm, publicada pela Companhia das Letras (2024), destaca as encruzilhadas contemporâneas e, em especial, as angústias experimentadas por jovens cotistas nas universidades federais. A personagem central do romance, Joaquim, lembra uma ideolágrima de Paulo Leminski: “1° dia de aula / na sala de aula / eu e a sala”. A dificuldade dos negros nas estruturas institucionais, dominadas pelo racismo, tem no conhecimento e na atividade intelectual apenas um paliativo para a estranheza – seu “lugar de fala” – na sociedade e na história.

A mobilidade social via educação formal crava novos espinhos na pele. “Então eu era colocado num lugar específico no imaginário deles: pobre coitado sem muita cultura, sem muita leitura, que não sabia falar inglês” (p. 26). Em face do incômodo sentimento, o desafogo aparece na providencial disciplina de produção de texto ficcional. A vocação literária funciona como o milagre operado pela imaginação para sublimar a violência, sem aviso prévio, da realidade. “Misturava passagens dos livros com acontecimentos da própria experiência, como se a literatura e a vida fossem a mesma coisa. Mas não eram” (p. 21). Neste ponto, a trajetória da criatura se confunde com a do criador.

“Não era possível que a síntese da minha vida fosse um ônibus lotado em meio a um calor insuportável de verão… Há de haver alguma beleza nessa vida fodida de merda, pensei. Fechei os olhos. Eu era um idiota tateando no escuro em busca de beleza num ônibus fedido… a caminho de Alvorada. Tive ali a consciência de que a beleza era a coisa mais imprecisa do mundo” (ps. 35-6). O pesadelo se passa no Rio Grande do Sul, na região metropolitana de Porto Alegre. Não obstante, o relato transcende a topografia local, aplicando-se a qualquer polo urbano brasileiro na atualidade.

O custo para se deslocar até a Capital é queixa constante dos estudantes. A pandemia do coronavírus e as enchentes agravaram o problema no território gaúcho. Uma justificativa econômica para o não comparecimento às aulas é recorrente. A pobreza é um fator incontornável da evasão escolar hoje. A prefeitura têm responsabilidade. Cortou o passe estudantil e espaçou os horários para a condução.

É comum a alusão ao sofrimento como a chave para a criação artística, na narrativa. Por exemplo, em um sarau que evoca um poema da folclorista e ativista afro-peruana Victoria Santa Cruz: “Tinha sete anos apenas / Sete anos, nada! / De repente umas vozes na rua / me gritaram: ‘Negra!’ / ‘Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra! Negra!’ / ‘Por acaso sou negra?’ – pensei / SIM! / ‘E o que é ser negra?’ / ‘Negra!’ / E eu não sabia a triste verdade que aquilo escondia. / E me senti ‘negra’ / ‘Negra!’ / Sim / ‘Negra!’ / Sou / ‘Negra!’ / Negra / ‘Negra!’ / Negra sou!” (p. 86). A catarse denuncia a dor nos atos discriminatórios, “racista fdp”, sem o que não existem os versos poéticos.

O sofrimento nunca mente; mas não o das circunstâncias superficiais ou fúteis. A tortura suscitada no silêncio das desigualdades. “Eu escrevo com o corpo”, exclama um angolano ao recusar a crença pueril e tola de que “a poesia é só uma coisa mental, como se o pensamento fosse superior à nossa fisiologia. Essa separação entre corpo e mente é tão estranha. Você não acha Joaquim?” (p. 202).

A noção do sofrer enquanto estágio para o desvelamento da verdade na forma artística devemos aos antigos, para os quais a melancolia produz a boa arte. Um produto em escassez na prateleira dos modernos, que voltam ao Éden nos shopping centers com um cartão de crédito platinum. Aldous Huxley, em Admirável mundo novo, faz o Administrador retirar do panorama humano a arte para, juntamente, eliminar o sofrimento na sociedade: “Temos de escolher entre a felicidade e o que as pessoas costumavam chamar de arte superior. Sacrificamos a arte superior”. Sem arte, sem dor; e vice-versa. Aqui, a distopia equivale à perversão do gestor neoliberal ao calar os direitos sociais.

No meio dos livros

O texto de Jefferson Tenório não se furta de apresentar as críticas duras que ainda ecoam no campus universitário e na sala de professores: “Me sinto impotente diante da crueldade desse sistema de ensino (com cotas étnico-raciais). Querem tapar o abismo com um remendo. A história já condenou dolorosamente essas tentativas. Tínhamos que estar preocupados com a educação básica, e não colocar gente despreparada aqui dentro” (p. 42). O ceticismo recende o preconceito. As pesquisas mostram que, passados os primeiros sustos, os cotistas alcançam um ótimo desempenho nos cursos.

Inicialmente determinados assuntos são de domínio dos alunos normais; não para os excepcionais. “Eu mesmo pensava que as cotas eram uma espécie de esmola, sabe? Como se fosse uma facilidade para os negros, como se não tivéssemos capacidade de fazer uma prova como todos os outros. Mas eu entendi que não era bem isso. Entendi que não tinha as mesmas chances. Entendi, por fim, que um exame de vestibular não provava nada. Nada sobre minhas capacidades” (p. 133-4). Depois: “Não me via mais como intruso por ter entrado pelo sistema de cotas. Além disso, eu começava a me destacar nas aulas. O que me proporcionava respeito da parte dos colegas” (p. 85). Oxalá.

Joaquim especula o que sua avó poderia pensar dele sobre o desejo de ser escritor, projetando nela as dúvidas que igualmente o afligiam, no íntimo. “Olha, guri, a gente se fodeu a vida toda. Meus avós se foderam. Meus pais se foderam. A sua mãe se fodeu. Uma geração inteira se fodeu. Por séculos os negros se foderam pra que você chegasse até aqui. E agora é isso que você vai fazer da sua vida? Um curso de letras? Um curso que não vai ajudar os negros a sair dessa merda toda? Não se tornará um advogado? Um médico? Um engenheiro? Até onde você vai com isso?” (p. 61).

O poder não é apenas aquilo a que nos opomos, mas também aquilo de que dependemos para existir e que abrigamos e preservamos nos seres que somos. “O modelo habitual do processo é – o poder se impõe sobre nós; enfraquecidos pela sua força, interiorizamos ou aceitamos seus termos”, sublinha Judith Butler que disseca o fenômeno dialético em A vida psíquica do poder. Sim, a “sujeição” é paradoxal. Artisticamente torna complexo o desejo dos sujeitos. Na política, converte a tática em uma estratégia duradoura e orgânica de aproximação com o Centrão, para amenizar as contradições.

Na leitura, epifanias agem à guisa de uma declaração de guerra sentimental à alienação do espírito. Vide o simbólico episódio da descoberta na faculdade de As palavras, de Jean-Paul Sartre, espécie de autobiografia da infância do filósofo francês. “Eu achara a minha religião: nada me pareceu mais importante do que um livro. Na biblioteca eu via um templo. Comecei minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros” (p. 64). “Acreditei com toda a força e sinceridade que os livros poderiam me salvar” (p. 135). O fato de Jorge Luis Borges ou Alberto Manguel não serem citados prova o cacoete eurocêntrico da academia, e o quanto prossegue distante do Sul global.

A receita da escrita é atribuída ao deus egípcio Theuth. Um paraíso para a memória e a sabedoria, apesar de o Faraó não se convencer e alegar não ser um remédio para a memória, mas simples ajuda para relembrar e que, ao revés da sabedoria, servia para estimular a presunção de sábio. Há muito os escritores debatem se a literatura tem algum efeito prático para mudar o mundo. As adversidades mostram que o debate está longe de terminar; a resiliência ao obscurantismo e negacionismo, idem.

O autor premiado com o Jabuti, em O avesso da pele (2020), entrega com De onde eles vêm um belo trabalho de final comovente numa sociedade governada pela tirania do mérito. “Ninguém tinha me educado para o insucesso. Ninguém havia me dito que na vida há poucas recompensas por sermos boas pessoas.” (p. 187). As cotas não são suficientes para reparar 350 anos de escravidão. As entidades estudantis e as reitorias aos poucos tomam iniciativas para acolher melhor os cotistas e dar mais condições de que permaneçam na universidade. “Eu continuava me fodendo como todos os outros negros sempre se foderam. Aquele era o nosso destino” (p. 169). Será? – Leia o livro.

Luiz Marques é docente de Ciência Política na UFRGS, ex-secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

Publicado originalmente na revista Teoria e Debate

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