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Elites escravocratas | Miguel Rossetto

Entre 1995 e 2015, 50 mil trabalhadores foram resgatados de situação análoga à escravidão por meio da fiscalização integrada pelo Ministério do Trabalho. Entre 2011 e 2015, foram 10 mil resgatados. Esses números mostram como o combate a essa terrível prática, no meio rural e nas cidades, foi evoluindo neste período e o Brasil se tornou referência mundial na ação contra o trabalho escravo. Em 2014, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) dizia que aqui existiam mecanismos como em nenhum outro local do mundo. Um exemplo são os grupos especiais de fiscalização que circulam por todo o território nacional e são os responsáveis pelo número expressivo de resgatados nos últimos 20 anos. A divulgação dos nomes de empresas e pessoas no cadastro de empregadores, a “lista suja” do trabalho escravo, a partir de 2003, também foi uma forma de coibir essa barbaridade contemporânea.

Quem são esses trabalhadores resgatados? No Brasil, a maioria, homens adultos pobres, originários das regiões Norte e Nordeste, de cidades com baixo índice de desenvolvimento, acabaram aliciados ao partirem de suas casas em busca de um emprego. No início das operações, os escravizados eram jovens analfabetos encontrados em áreas rurais. Hoje, também homens mais velhos e escolarizados sofrem em trabalhos desumanos nos grandes centros urbanos, como a costura de roupas para grandes marcas da indústria têxtil e a construção civil. Mulheres e menores de idade também são encontrados, mas em menor proporção. O Brasil foge à regra mundial. No resto do mundo, mulheres e crianças são as que mais sofrem com a escravidão.

Os grupos especiais de fiscalização são integrados por auditores-fiscais do Trabalho, membros do Ministério Público do Trabalho, delegados e agentes da Polícia Federal, Policiais Rodoviários Federais, membros da Procuradoria Geral da República e defensores Públicos da União. Nesses 20 anos de operações, foram inúmeras as tentativas de barrar o trabalho da fiscalização. Os agentes públicos sofreram ameaças, represálias e até atentados de empregadores criminosos. A chacina de Unaí tornou-se um caso emblemático, infelizmente. Em 2004, quatro funcionários do Ministério do Trabalho – três auditores fiscais, Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage, Eratóstenes de Almeida Gonçalves, e o motorista Aílton Pereira de Oliveira – foram mortos em uma emboscada quando investigavam uma denúncia de trabalho escravo em fazendas da região de Unaí, em Minas Gerais. Após 13 anos, os mandantes do crime, mesmo condenados, seguem soltos tentando anular a sentença.

Os interesses de criminosos como esses são escusos, diversos e vão muito além de anular o valor do trabalho para aumentar o lucro de seus negócios. É quase uma regra nas operações de resgate de trabalhadores, o flagrante de outras atividades ilegais como desmatamento em áreas proibidas, tráfico de drogas e exploração sexual, por exemplo. Por isso mesmo, é intensa a campanha desses grupos para evitar a fiscalização, encobrir seus crimes e proteger seus nomes.

A “lista suja”do trabalho escravo foi criada em 2003 e desde então é um eficaz instrumento de transparência do Estado brasileiro, considerado pela ONU um modelo de combate à escravidão moderna. Ao mesmo tempo que aponta os empregadores que violam as leis do trabalho e, mais que isso, a dignidade humana, a lista tornou-se um poderoso recurso de pressão sobre o mercado.

Em 2005, com o lançamento do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, empresas brasileiras e multinacionais comprometeram-se a proteger suas cadeias produtivas do trabalho escravo. Desde então, bancos públicos e privados também utilizam a lista para negar créditos aos criminosos e, empresas brasileiras e internacionais podem monitorar fornecedores para mostrar seu compromisso em erradicar essa prática abominável.

O nome na lista suja é um atestado escravagista. O sistema de inclusão de nomes é rigoroso e segue um rito que passa pelo flagrante dos auditores em campo, autuação do empregador e um processo administrativo pelo qual a empresa pode se defender em duas instâncias. Se o Ministério do Trabalho confirma a infração e caracteriza a situação encontrada como análoga à escravidão, o empregador paga multas, direitos trabalhistas e previdenciários, assume compromissos e tem seu nome colocado na lista.

Em junho de 2014, o Brasil obteve um grande avanço no combate ao trabalho escravo e o tema entrou na Constituição Federal. A partir dali, propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde houvesse exploração de trabalho escravo deveriam ser expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário. Além disso, todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência da exploração de trabalho escravo seria confiscado e revertido a fundo especial com destinação específica. Essa emenda na Constituição significou a expressão de uma grande conquista pela qual cresceu na sociedade a recusa a essa barbárie. Mas, como uma pauta em constante disputa, a reação veio na proposta de regulamentação dessa emenda, até hoje bloqueada no Congresso, que tenta descaracterizar a definição de trabalho escravo e descumpre o Código Penal brasileiro.

Causa estranhanheza e indignação que a reação ao combate do trabalho escravo venha sempre dos setores patronais que insistem em preservar essa prática absurda. Em dezembro de 2014, o STF suspendeu a publicação da “lista suja”, atendendo a um pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), organização que reúne algumas das principais empreiteiras do país.

Desde essa decisão do STF, o MTE decidiu aperfeiçoar as regras e sanar interpretações que impedissem a divulgação da lista. Foi o que fizemos em 2016. Meu último ato como ministro do Trabalho e Previdência Social foi assinar, no dia 11 de maio, juntamente com a ministra Nilma Lino Gomes, responsável pelos Direitos Humanos, uma portaria (nº 4, publicada em 13 de maio de 2016) que restabeleceu a publicação do cadastro sujo de empregadores, esse instrumento poderoso de denúncia e de combate ao trabalho escravo, e atendia aos questionamentos do STF, que liberou a lista dias depois e determinou uma atualização de seis em seis meses.

Sete meses após o STF liberar a lista, em dezembro de 2016, o Ministério Público do Trabalho moveu uma ação civil pública para obrigar o ministério do Trabalho a divulgá-la, mas o ministro que assumiu após o golpe, conseguiu, por via judicial, suspender sua publicação. Chegamos mesmo a tempos sombrios. O órgão responsável pelas políticas de incentivo ao trabalho decente lutou na Justiça para barrar o principal instrumento de pressão sobre o trabalho escravo no país. E  ainda foi mais longe. Seguindo a linha dos empregadores, o Ministério do Trabalho continuou lutando na Justiça contra a lista e, numa medida arbitrária e abominável, publicou novas regras que descaracterizaram o trabalho escravo no país e que só atendem a quem comete este tipo barbárie.

A nova portaria, publicada em outubro, muda o conceito de escravidão contemporânea, por isso reduz as situações que caracterizam o crime, dificulta a fiscalização, politiza o tema e transforma o ministério do Trabalho num balcão de negócios.

Entidades da sociedade civil, procuradores, juízes e os próprios auditores do trabalho, responsáveis pela fiscalização, classificaram a portaria como um retrocesso, autoritária e desumana. A portaria foi publicada sem nenhum debate anterior e ainda vincula a decisão final sobre a inclusão de um nome na lista suja à autorização expressa do ministro do Trabalho, ou seja, inviabiliza o rigor técnico das fiscalizações e politiza o tema.

Condições degradantes de trabalho incompatíveis com a dignidade humana, jornada exaustiva, trabalho forçado e servidão por dívida são elementos, juntos ou isolados, que caracterizam o trabalhado análogo ao escravo, segundo o Código Penal brasileiro. Mas a nova portaria diz que os elementos isoladamente não caracterizam trabalho análogo ao escravo e só considera jornada exaustiva ou condição degradante, se houver privação do direito de ir e vir, ou seja, ignora o Código Penal. Outro critério da portaria é a determinação de que uma segurança armada impeça o trabalhador de se locomover. Hoje, as condições degradantes de trabalho são o principal elemento de autuação dos flagrantes. Muitos trabalhadores foram encontrados dormindo no mesmo local de trabalho, às vezes debaixo de lonas ou em currais junto com animais e seus dejetos, sem alimentação, proteção ou higiene adequadas. Para Temer e sua turma, isso não é violação da dignidade humana. Para eles, tudo bem se um trabalhador passar 15 horas trabalhando, sem descansar ou comer adequadamente.

O STF suspendeu os efeitos da nova portaria, e por enquanto, seguem valendo as regras anteriores. Uma vitória momentânea. A definição de trabalho análogo ao escravo no país se tornou um exemplo para o mundo porque criou critérios claros e modernos, muito bem adaptados à realidade do que os auditores encontraram em campo nos últimos 20 anos. O debate vai continuar no plenário do Supremo e precisa ganhar o apoio da sociedade. É inaceitável permitir essa barbárie no nosso país.

O ministério do Trabalho também perdeu na Justiça a suspensão da lista e foi obrigado a publicá-la ainda em outubro. A nova relação traz 131 empregadores que submeteram empregados a condições análogas à escravidão.

Os 400 anos de escravidão não foram suficientes para as elites escravocratas brasileiras.

Miguel Rossetto foi ministro do Desenvolvimento Agrário, da Secretaria-Geral da Presidência da República, do Trabalho e Previdência Social e vice-governador do Rio Grande do Sul.

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