“Não se pode duvidar da minha dor. Mas se eu tivesse que ficar na minha indignação de judia sem ver a devastação que Gaza sofreu, não conseguiria compreender o quadro completo.”
Judith Butler tem um tom pacato e a voz baixa, o poder da mensagem está nas palavras e nos gestos.
Estamos na Universidade de Bari onde ela está para receber, pela primeira vez na Itália, o doutorado honoris causa em Estudos de Gênero.
Durante a cerimônia, a filósofa estadunidense, que entre seus muitos livros publicou A força da não violência: um vínculo ético-político, falará de “imaginação além do medo e da destruição”. Uma lectio magistralis que não dá descontos a ninguém: do governo italiano ao regime russo, até a Igreja católica, existe uma frente global que transformou o “gênero” de um instrumento de análise crítica e libertação num “fantasma” em torno do qual catalisar os principais medos do mundo contemporâneo. Vamos falar com ela sobre a situação no Oriente Médio.
A entrevista é de Giansandro Merli, com colaboração de Roberta Martino, publicada por Il Manifesto, 17-10-2023. A tradução é de Luisa Rabolini.
Entrevista:
Quando um evento cria um choque tão grande que fica evidente que haverá um antes e um depois – o 11 de Setembro de 2001, a invasão russa da Ucrânia ou o recente ataque do Hamas –, parece que cada um seja chamado a escolher um lado. A reconstrução da história e do contexto é julgada uma inutilidade ou até mesmo uma traição. Esse tipo de presentismo é um dever ou um perigo?
Devemos condenar publicamente a violência contra os israelenses que ocorreu em 7 de outubro e perpetrada pelo Hamas. Mas devemos também nos questionar se isso é tudo o que deve ser condenado. Estamos chocados com o fato de crianças, idosos e civis indefesos terem sido mortos. Mas também estamos chocados pelas décadas em que Israel bombardeou casas, escolas e hospitais em Gaza? Sabemos que Israel diz: são escudos humanos, usados para proteger instalações militares. Mas temos os números das crianças mortas em Gaza. São milhares. Vimos pessoas mortas e casas destruídas por bombardeios.
Devemos nos perguntar por que a nossa indignação está reservada aos civis israelenses. Eu sou judia e quando judeus são mortos meu coração se parte. Quando ouço que este foi o ataque mais grave a qualquer grupo de judeus desde a Segunda Guerra Mundial, fico horrorizada. Não se pode duvidar da minha dor. Mas se eu tivesse que ficar dentro da minha indignação de judia sem ver a devastação que Gaza sofreu, restringiria a minha visão e não conseguiria compreender o quadro completo.
Se não quisermos mais assistir a tais violências, devemos nos perguntar o que é preciso fazer para eliminá-las para sempre. A resposta não é o extermínio dos habitantes de Gaza ou a sua expulsão do Egito, como pensam alguns líderes de Israel. A resposta é libertar os palestinos da ocupação e encontrar uma forma de coabitação política que permita às pessoas, a todas as pessoas, viver com igualdade, liberdade e justiça. Só uma solução de democracia radical poderá pôr fim à violência.
Traçar a sua história é um exercício teórico ou serve para encontrar tal solução?
Devemos aprender a história de Gaza. Quando foi construída? Quem foi colocado lá contra sua vontade? Onde vivia antes? O que sabemos sobre sua expulsão e sobre a ocupação? E mais ainda: como o Hamas foi formado? Quando? Sabemos quantos palestinos o apoiam? Conhecemos as diferenças entre as alas política e militar do Hamas? Isso não é teoria, é história, é sociologia. É política.
Precisamos conhecer toda a história, de ambos os lados, incluindo a colonização dos israelenses naquelas terras e a expropriação dos palestinos enquanto os judeus procuravam um refúgio. O conhecimento dessa história é necessário para ter uma visão suficientemente ampla para levar a uma paz definitiva.
O que significa o ataque do Hamas, com aquele tipo de violência e de projeto político, para os movimentos de esquerda que apoiam a causa palestina em todo o mundo?
A esquerda deve condenar as táticas do Hamas. Eu nunca as defenderia. Mas estou interessada em saber como eles chegaram lá. A condenação e a compreensão histórica não são contraditórias. É preciso entender não para desculpá-las, mas para encontrar uma maneira de superá-las. Em geral, os movimentos de esquerda que apoiam os palestinos deveriam insistir na luta não violenta. Um problema é que mesmo aqueles de nós que apoiam o movimento pelo “boicote, desinvestimento e sanções” são chamados de terrorista.
A violência dos oprimidos é igual à dos opressores?
Não, mas ambas estão erradas. É claro que é diferente subjugar os povos ou rebelar-se.
Por exemplo, o New York Times define o Hamas como uma organização terrorista. Em vez disso, eles se veem envolvidos na luta armada contra uma ocupação. O Estado de Israel sente-se empenhado numa legítima defesa. Podemos nos perguntar se essa autodefesa funciona por vezes como um veículo para o roubo da terra ou a prisão de civis palestinos que não representam uma ameaça para ninguém? Aceitamos que o Hamas esteja envolvido numa luta armada como outras, como na África do Sul por exemplo? Aceitamos que Israel opera apenas em legítima defesa ou é também uma potência militar agressiva que procura manter os palestinos numa subjugação permanente? Temos que nos questionar sobre essas formas de descrever a violência.
São questões importantes. Espero que seja possível discuti-las publicamente para melhor compreender a situação. Receio que reagimos rapidamente demais ou aceitamos a linguagem dos meios de comunicação sem uma compreensão crítica sobre a origem de tal linguagem.
Na representação que aquela linguagem produz, defender Israel significa defender a democracia ocidental contra os bárbaros. Concorda?
Não. Não há dúvida de que a violência do Hamas seja horrível, mas os pedidos dos palestinos por liberdade e justiça são coisas diferentes. É extremamente importante e legítimo o desejo de viver em uma democracia, com direitos políticos. Não acredito que possa útil chamar aquelas pessoas de “animais” ou “bárbaros”. Serve apenas para fazer uma sua caricatura essencialista e racista.
E não creio que Israel represente a melhor versão de democracia. É um estado baseado numa ocupação violenta. Em expulsões violentas. Despojou pessoas de seus direitos para produzir a sua democracia. O que significa democracia baseada na negação dos direitos? Que é uma democracia para alguns e não para todos. Que aos não cidadãos cabe uma desigualdade radical.
Não é a versão de democracia que quero defender. Tenho grandes esperanças na democracia e espero para vê-la na região. Mas não creio que isso já tenha acontecido ainda.
Quando a guerra irrompe, todo o resto fica em segundo plano. Não é a hora do feminismo ou o feminismo também pode desempenhar um papel em tal momento?
O movimento feminista contra a guerra, a violência estatal e a luta armada é extremamente importante. Vimos isso nos Balcãs, na Turquia, na África do Sul e na América Latina, onde existem movimentos enormes para a democracia e contra a violência. Ni Una Menos ou as lutas indígenas não estão envolvidas na luta armada, mas em mobilizações de massas que lutam para estender a democracia para toda a população. Na antiga Jugoslávia as “mulheres de preto” eram contra a violência, toda violência, sérvia ou croata.
Temos muito que aprender dos movimentos feministas porque refletiram por décadas sobre a violência em todos os níveis, seja ela de parte do Estado, da polícia ou da família.
A não violência é possível durante uma guerra?
Não, mas isso não é motivo para renunciar a afirmá-la. Às vezes afirmamos o impossível. Alguém tem que fazer isso. Caso contrário, todos nos tornaremos guerreiros, aceitaremos a realpolitik. É possível que as pessoas nos considerem louca. Até mesmo ingênua ou idealista. Vamos deixar que pensem o que quiserem.
Via Instituto Humanitas Unisinos
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