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Financeirização dos Estados | Juarez Guimarães

Se há um capitalismo financeirizado no século XXI, é porque houve a financeirização dos Estados nacionais, em primeiro lugar dos EUA e, depois, da governança da União Europeia, isto é, a captura dos poderes estatais para criar um regime político de acumulação centrado nas finanças.

A identificação do capitalismo da época do neoliberalismo como um capitalismo financeirizado pode ser provada em cinco dimensões combinadas. Em “O longo século XX”, Giovanni Arrighi nos fala que a financeirização é uma tendência de conjunturas de crise de hegemonia no sistema mundo. Mas este processo de financeirização no capitalismo do século XXI certamente tem singularidades próprias da crise da hegemonia do Estado norte-americano e do grau de maturação e integração sistêmica do capitalismo mundial.

A financeirização se entende, em primeiro lugar, pela dominância do capital financeiro sobre o capital industrial, agrário, comercial. O capital financeiro enfraquece a sua função sistêmica virtuosa no ciclo capitalista, de financiamento da produção, dos investimentos, do consumo, para tornar-se ele próprio o setor da acumulação privilegiado, mais lucrativo e mais rentável. E, mais do que isso, passa a subordinar internamente as próprias dinâmicas de acumulação dos capitais industriais, agrários e comerciais.

Em segundo lugar, esta financeirização se expressa pelo crescimento da massa de ativos financeiros em relação ao PIB mundial, isto é, os primeiros passam de uma relação de equivalência para uma dimensão três vezes superior ao PIB mundial ao fim da segunda década do século XXI. Não submetida ao controle estrito de nenhum Estado nacional, esta massa de ativos financeiros opera com uma dinâmica própria de reprodução, de poder político e de desestabilização da economia mundial.

Este caráter cosmopolita do processo de financeirização mantém uma relação contraditória com o Estado norte-americano, seu principal sustentáculo, e os Estados do centro capitalista. De um lado, tem servido ao domínio imperial dos EUA, que controla ainda a principal moeda, as principais praças financeiras e as principais instituições de regulação da ordem capitalista mundial; de outro, atuam com seu poder de corrupção, especulação e predação para minar as próprias bases internas de legitimidade do Estado liberal norte-americano.

A quarta dimensão deste processo de financeirização é a sua característica especulativa, rentista (não produtiva), predatória (de empresas e fundos públicos, da natureza) e de evasão fiscal. O capitalismo financeirizado é um sistema de tendências recessivas e de baixo crescimento, de destruição das sociabilidades típicas da época fordista, de crescimento das desigualdades e de desemprego, de regressão civilizatória.

Por fim, a financeirização promove um protagonismo cultural e midiático das grandes corporações financeiras a todas as esferas da vida social. Com seu poder de mobilidade e flexibilidade, os capitais financeiros agenciam escolas, museus, filmes e séries, jornais e revistas, publicidade, casas de espetáculos e de entretenimento, outdoors, redes virtuais, times de futebol, planos de saúde ou previdência, culturas alternativas e programas assistenciais, economias verdes e agros: dominam pela saturação e naturalização de sua presença.

 

Um novo regime político de acumulação

As teses da luta de classes (o neoliberalismo como uma espécie de revanche dos capitalistas contra os direitos e ganhos das classes trabalhadoras alcançados após as primeiras décadas do pós-guerra), da crítica da economia política marxista (o neoliberalismo como uma reversão mesmo insegura e parcial das tendências de longo prazo decrescentes da taxa de lucro capitalista), das escolas de regulação (o neoliberalismo como uma dinâmica de crises sistêmicas permanentes), das teorias do desenvolvimento e decoloniais (o neoliberalismo como globalização e retomada aprofundada das dinâmicas coloniais) certamente captam dimensões centrais do neoliberalismo. Mas são parciais se não colocam no centro a financeirização, que concentra e sintetiza todas estas dimensões.

Deve-se a Bob Jessop, o grande herdeiro teórico de Poulantzas,  em “ Authoritarian Neoliberalism: periodization and critique” e no verbete “Neoliberalism” na Blackwell Encyclopedia of Globalization (2012, vol. 3), um conceito fundamental para operar uma síntese política da financeirização. Retomando as últimas elaborações de Poulantzas sobre a crise do Estado capitalista e trabalhando a sua teoria do Estado como articulado pela hegemonia de uma esfera dos capitais sobre as outras. Bob Jessop nos fala de um novo regime de acumulação financeiramente centrado, o qual implicaria uma nova hegemonia burguesa em seu interior.

Em síntese, o neoliberalismo seria um novo regime de Estado liberal, diverso daquele organizado no pós-guerra nos países centrais de democracias organizadas pelo liberalismo social ou keynesiano, organizado por novas coalizões políticas orgânicas às grandes corporações financeiras. Se há capitalismo financeiro no século XXI, é porque houve antes uma vitória desta nova coalizão política nos Estados capitalistas centrais, a começar nos EUA e também, de forma importante, na governança da União Europeia, deste novo regime político de acumulação financeiramente centrado.

A conquista deste novo regime político de acumulação exigiu (e exige ainda) um processo de destruição/ criação nas várias temporalidades dos Estados capitalistas contemporâneos. A este processo de mudança de regime político de acumulação podemos chamar de financeirização dos Estados liberais, isto é, a funcionalização de suas Constituições, instituições macroeconômicas, jurisprudências e governanças aos interesses dos capitais financeiros, bem como a captura de seus centros de poder por coalizões políticas agenciadas por estes interesses.

Mais do que outros regimes de acumulação do capitalismo, este novo regime financeiramente centrado é estritamente dependente em todo o seu ciclo do controle sobre os poderes do Estado. A gestão da moeda, do crédito, do câmbio, da gestão da dívida pública, do orçamento, do sistema tributário, dos fundos e empresas públicos, toda esta institucionalidade mais que condiciona, determina a reprodução dos capitais financeiros. Por isso, o seu antagonismo central é a democracia.

 

Soberania dos bancos ou soberania popular?

Esta síntese conceitual e histórica do neoliberalismo reivindica colocar no centro da crítica, disputa e construção de alternativas a financeirização. Pois a financeirização dos Estados, como foi definida, significa exatamente a sua profunda e estrutural  desdemocratização, mesmo nos limites postos classicamente pela democracia liberal.

Esta desdemocratização implica justamente em minar ou simplesmente destruir os espaços tradicionais nos quais as classes trabalhadoras organizavam suas culturas de resistência e luta por direitos dentro da ordem liberal. A lógica da financeirização, que se autovaloriza em circuitos que mantêm uma relação de grande autonomia com a produção de mercadorias, implica não propriamente em derrotar o trabalho, criando correlações de forças desfavoráveis a ele, mas de fato eliminá-lo enquanto identidade, cultura e programa.

Seria preciso  entender melhor e de forma mais profunda como o neoliberalismo se propôs a destruir o trabalho como identidade, cultura e programa.

 

 

 

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