No correr dessa semana, o MEC apresentou aos Reitores das Universidades Federais e, depois, à sociedade, uma proposta que, alegadamente, equacionaria o financiamento da educação superior e, ao mesmo tempo, reforçaria a autonomia acadêmica.
Considerados desapaixonadamente os fatos, o projeto Future-se ( sic) não faz nem uma coisa nem outra.
O programa é tão vago que chega a ser difícil criticá-lo a não ser pelos fundamentos que o justificam, pela lógica que a ele preside, e pelas eventuais consequências que sua adoção suscitaria.
O Secretário da SESU abriu sua exposição anunciando que o problema das Universidades não é de recursos, mas de gestão. Grave erro de análise: faltam recursos, sim; comprimidos estruturalmente pela EC 95 e conjunturalmente pelo contingenciamento orçamentário. De outro lado, os resultados apresentados pelas universidades públicas demonstram serem elas bem geridas.
Os elogios feitos pelo MEC à boa gestão ilustram casos de adequação à escassez. Entretanto, é exatamente a escassez que oprime e prejudica a evolução da universidade pública no Brasil . E é da escassez que o Futurese não trata.
Não quero ser injusta: o programa anuncia a criação de Fundos de Investimento no valor de aproximadamente 100 bilhões de reais, a serem constituídos com recursos obtidos pela alienação de imóveis da união. Tudo nessa proposta é virtual. Os imóveis ( quais?) ainda precisam ser alienados; os Fundos ainda têm de ser constituídos, sua gestão determinada, a apropriação de seus rendimentos, estabelecida. Tudo por vir.
Os “ novos” recursos de que se poderia também lançar mão são conversa requentada. As Universidades e Institutos já geram recursos próprios com pesquisa, extensão, prestação de serviços, inovação, incubação de empresas, inclusive startups. A maioria das startups do Brasil tem relação com universidades: públicas! Aliás, quatro das seis startups unicórnio no Brasil de 2019 procedem da USP…
O problema com os recursos próprios das Universidades não é gera-los. É usá-los – já que costumam ser contingenciados pelo governo federal…
Sempre bom lembrar que a legislação para a Inovação no Brasil já existe: a Emenda Constitucional 85, de minha autoria, promulgada em 2015 e o Marco Nacional da Ciência e da Tecnologia sancionado em 2016 pela Presidenta Dilma Roussef.
Vale ressaltar que esses recursos próprios gerados por Universidades e Institutos têm caráter complementar no financiamento de Universidades. No Brasil e no mundo inteiro. Quem sustenta as universidades de ponta no mundo inteiro, as atividades de formação, de pesquisa e de desenvolvimento, é o poder público. Inclusive Harvard, coitada, tornada, num universo de ignorantes, a Meca da Mentira Enobrecedora. Para informações detalhadas a respeito sugiro a leitura do livro O Estado Empreendedor, de Mariana Mazzucatto, de 2013, traduzido para o Português em 2014.
Ainda no capítulo “geração de recursos adicionais”, o programa menciona a Lei Rouanet para financiar as atividades de Extensão. Também não se explica como isso seria feito mas a mera sugestão indica um forte desconhecimento do que seja a Extensão universitária. Inovação e Desenvolvimento Tecnológico são, por sinal, parte da Extensão…De que modo a Lei Rouanet seria aplicável?
Relido o plano, constata-se que nele pouco há de novo. Recomendações, por exemplo, contra a prática de nepotismo já constam das normas que regulam o serviço público embora frequentemente desacatadas pelo atual governo…
E , no que há de novo, não há nada de bom.
Confunde-se, malignamente, autonomia universitária com desresponsabilização do estado frente à educação superior. Quem quer propor administração das Universidades via OS, através de contrato de gestão, está brincando ao falar de autonomia. O contrato encabrestará a instituição a metas estabelecidas de fora para dentro, sem nenhum respeito à história ou à dinâmica institucional. Crítica a esse tipo de solução foi feita há muitos anos atrás por Marilena Chauí e continua valendo.
Outra marca da proposta do MEC é a apologia do “gerencialismo”, aquela panaceia de aplicar às políticas públicas os critérios e métodos da gestão privada.
Em primeiro lugar, as recomendações são desnecessárias. Instituições submetidas a CGU, a AGU, ao TCU ( todos os componentes do Satânico Sistema U, de que falava o Professor Luís Pinguelli) não precisam de práticas adicionais de “compliance”.
Em segundo lugar, a tradição de formação de decisões em uma comunidade com as características da sociedade universitária repele a razão empresarial. No nosso caso, tratamos como autonomia intelectual e inteligência crítica o que em outros contextos pode ser chamado de “empreendedorismo”. Para fazer dentro da Universidade, não basta ter capacidade de iniciativa. É necessário ter também capacidade do convencimento.
Por último, remédios errados para doença inexistente podem comprometer a situação da saúde institucional.
Nos últimos anos Universidades e Institutos Federais protagonizaram uma condição inédita na história do Brasil: deixaram de ser instituições socialmente elitistas e territorialmente concentradas para se tornarem bens disponíveis a população brasileira, presentes nos mais remotos rincões, próximas da vida e vivas na imaginação social. Essa a razão para as magníficas manifestações populares de maio deste ano. As Universidades tinham se tornado o sonho possível, de que o povo brasileiro não quer abrir mão.
Em nenhum país que preze por sua soberania e por seu desenvolvimento, Universidades podem ser tratadas como problema. Universidade é na verdade condição para uma evolução estratégica, de longo prazo, com justiça, prosperidade e paz. É esse o Futuro que conta. E por esse prometemos lutar.
Margarida Salomão é deputada federal (PT/MG), professora universitária, foi reitora da UFJF
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