Dados e inteligência artificial a serviço da luta dos trabalhadores
Na Conferência “IA com direitos sociais” realizada em São Bernardo do Campo, o professor Sérgio Amadeu, da UFABC, fez uma provocação que julgo ser estratégico e de suma importância: criar uma infraestrutura tecnológica soberana pelo movimento sindical em relação ao controle dos dados e na utilização da Inteligência Artificial a serviço da luta emancipatória dos trabalhadores.

O movimento sindical dispõe de um ecossistema rico em dados e informações, construído ao longo de décadas de luta e representação coletiva. São dados que refletem realidades de trabalho, saúde, remuneração, organização produtiva e relações de poder — uma base informacional muitas vezes mais densa e qualitativa do que aquela acessível ao próprio Estado ou às empresas.
Esse conjunto constitui um patrimônio de conhecimento coletivo, que precisa ser organizado, protegido e usado estrategicamente — tanto para planejar ações políticas, quanto para construir uma infraestrutura sindical soberana de dados, capaz de disputar narrativas e orientar políticas públicas.
Nos Grundrisse, Marx introduz o conceito de “general intellect” — a inteligência geral da sociedade, resultado do acúmulo de ciência, técnica e cooperação humana. Esse conceito é chave para compreender o mundo digital de hoje.
A IA, os big data, os sistemas de automação e até as redes sociais são expressões diretas do “general intellect”: o conhecimento social tornado força produtiva imediata.
O problema é que o capital se apropria privadamente desse intelecto coletivo, extraindo valor sem reconhecer o trabalho que o produz. Cada dado, cada interação online, cada contribuição intelectual ou emocional é transformada em insumo para o lucro.
A tarefa histórica do movimento dos trabalhadores é reapropriar o “general intellect”, devolvendo à sociedade o controle sobre o conhecimento e suas aplicações. Isso é o que, no contexto atual, chamamos de soberania digital e tecnológica.
Portanto, a disputa pelo futuro do trabalho e da organização sindical passa, cada vez mais, pelo controle dos dados e das tecnologias de inteligência artificial. No mundo digitalizado, os fluxos de informação tornaram-se instrumentos de poder — e quem os domina, define as regras. Por isso, falar em infraestrutura soberana é falar em autonomia da classe trabalhadora diante da captura tecnológica promovida pelo capital.
Nos bancos, nas fábricas e nos serviços, os algoritmos passaram a medir, vigiar e dirigir o comportamento dos trabalhadores. A gestão algorítmica transformou dados em armas de controle: cada clique, atendimento ou pausa é convertido em métrica de produtividade, e cada meta em dispositivo de coerção. Essa infraestrutura digital — redes, plataformas, softwares e sistemas de IA — é hoje parte da engrenagem de exploração.
Mas a tecnologia não é neutra. Ela pode servir tanto ao controle patronal, quanto à organização coletiva. A diferença está em quem define suas finalidades.
Ter infraestrutura soberana significa não depender das plataformas, servidores e bancos de dados controlados por grandes corporações, que exploram e monetizam as informações de trabalhadores e entidades sindicais. Significa construir, coletivamente, bases tecnológicas próprias e seguras, capazes de armazenar, processar e analisar dados em benefício da classe, com governança sindical e transparência democrática.
Uma infraestrutura soberana envolve servidores e armazenamento próprios ou cooperativos, hospedados em ambientes controlados por organizações sindicais, universidades públicas ou consórcios sociais. Também está no escopo o desenvolvimento de ferramentas de IA desenvolvidas com código aberto, auditáveis e adaptadas às necessidades de análise sindical — como monitorar condições de trabalho, mapear adoecimento, detectar práticas abusivas de gestão e planejar campanhas.
É essencial garantir capacitação técnica e política para que dos sindicatos compreendam e operem as tecnologias, sem se tornarem reféns de fornecedores privados.
A inteligência artificial pode ser instrumento estratégico para fortalecer a luta sindical, desde que controlada coletivamente. Ela pode apoiar diagnósticos de saúde laboral e vigilância epidemiológica sindical; A IA pode apoiar o sindicato a comunicar-se com milhares de trabalhadores, segmentando mensagens por categoria, região ou perfil de engajamento. Chatbots com atendimento 24h respondem dúvidas sobre direitos, assembleias e contribuições; além disso, a análise de sentimento ajuda a entender o que a base pensa, ajustando campanhas e estratégias; pode ser usadi para identificar padrões de adoecimento, rotatividade e desigualdade de gênero e raça dentro dos bancos e empresas; é possível mapear e antecipar efeitos das reestruturações tecnológicas, subsidiando a formulação de políticas sindicais proativas, entre inúmeras outras possibilidades.
Trata-se, portanto, de garantir uma infraestrutura soberana e de disputar o uso da IA, não como ferramenta de gestão empresarial, mas como ferramenta de emancipação — um conhecimento produzido pelos e para os trabalhadores.
A luta de classes hoje também se dá no terreno dos dados e dos algoritmos. Controlar a infraestrutura é o primeiro passo para que a tecnologia volte a servir à emancipação humana — e não ao lucro e à dominação.
Está mais do que na hora de arregaçar as mangas e pôr as mãos à obra. Vamos “torcer o destino a golpes de vontade”!
Mauro Salles Machado é Secretário de Saúde da CONTRAF/CUT; ex-presidente do SindBancários de Porto Alegre.