Obra expressa experiência de uma geração da esquerda.
JUAREZ GUIMARÃES
“Assim como Garcia Lorca ficou gravado na história literária da Espanha, como o poeta da resistência espanhola ao terrorismo franquista, esse jovem brasileiro de nome espanhol ficará provavelmente como a maior expressão poética da resistência ao terror ditatorial dos últimos quinze anos”, escreveu Alceu Amoroso Lima em 1979. Trinta anos depois, há três caminhos para confirmar esse juízo da maior liderança intelectual católica brasileira e crítico literário: o da alteridade, a temporalidade e a inscrição na tradição.
Ler Poemas do Povo da Noite é uma experiência ineludível: é como ter estado lá, encarcerado, torturado, desaparecido. É como ter estado ao lado de “alguém/ cujo rosto nunca vimos e, todavia, amamos”. Pedro Tierra é um outro nome de Hamilton Pereira, ex-militante da ALN e prisioneiro da ditadura desde 1972. Nasceu no cárcere, fez-se lá: “E cada um é um só e todos,/ é meu pai, meu irmão,/ a noiva perdida, é meu próprio corpo/ marcado de suplício.”
Essa disposição radical de ser um outro, de alteridade, é que provoca a comoção da poesia. Todo grande poeta, nesse sentido, é um Grande Outro, alguém que poderíamos ter sido. E, por isso, só por isso, a poesia nos transporta, nos transfigura.
O poema “O capuz”, por um momento, cobre também o nosso rosto. Quase morremos engruvinhados de dor no poema “O ventre” (parece quase impossível que a palavra da poesia tenha se instalado ali no coração do coração da barbárie!): “Recurvo no ventre/ cerrado,/ em dor renasço/ na recusa/ Cotovelos,/ joelhos,/ entre um e outro/ o súbito relâmpago/ me sustém no ar./ Um corisco visível/ apenas por dentro/ como se no cerne/ do corpo se acendesse./ Recurvo no ventre,/ em dor renasço/ na recusa /da minha morte”.
Meu corpo torturado já não é mais meu: “Meus olhos não anoitecem e sei:/ não era esse o corpo que usavas/ para caminhar entre os homens./ Tua carne é apenas a tua dor”.
Eu mesmo já morri: “Trago no corpo um pesado gosto/ de sepulturas. Desapareci: mas a porta range/ como se reclamasse mais carinho/ e os sapatos na sala não trazem/ o jeito sossegado de quem retorna. Tornei-me o próprio rio, onde são atirados os corpos anônimos: Fui leito de suicidas/ e assassinados./ Fui Rio da Guarda: cemitério de mendigos”.
Eternidade do poema
O que mais impressiona em Poemas do Povo da Noite é a consciência visceral do autor do que está em jogo: a morte é a anulação do tempo, a ditadura é o seqüestro do amanhã, o grito do torturado, se não virar cristal, não será ouvido. Algo assim como: faço poemas, logo existo.
A noite aqui está protegida de se tornar metáfora banal, nos versos esplêndidos: “Aqui, o rigoroso calendário da Terra/ regirando seus azuis sobre os abismos/ da sombra e das constelações, faz-se vago. Um programa de criação: Aprender todas as categorias da treva”.
Daí uma noção de rigor da poesia: “É quando a palavra dita não vem do cerne/ e se perde na cinza. Ou ainda: E a palavra não se renda / à tortura./ E quando eu disser: pedra,/ não se entenda pão”.
Entrando com os pulsos atados no campo da poesia, restaura-se o amanhã: “E adivinho, com as pupilas gastas/ pela voracidade dos refletores,/ (…) a multidão inumerável/ de violetas, gerânios,/ rosas, ibiscos, jasmins,/ o sangue breve dos cravos/ a cor profunda do barro/ que a mão humana plantou”. Para não dizer que não falei de flores.
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