O Congresso Nacional e os casuísmos

Raul Pont

O Parlamento brasileiro é pródigo em estabelecer benefícios e privilégios a seus membros. Salários, verbas indenizatórias, número de assessores, maior acesso ao Fundo Eleitoral e as famigeradas emendas impositivas ao Orçamento, tornaram o Congresso recordista mundial em custos ao Erário. O mais escandaloso é a Previdência própria custeada pelo Orçamento Público, quando os parlamentares deveriam ser os primeiros a dar exemplo e cumprir a Lei que determina que os cargos eletivos de vereador a Presidente da República, contribuam durante seus mandatos para a Previdência Pública (INSS), como qualquer cidadão.

Foto: Pedro França/Agência Senado

Em 1991, no início daquela legislatura, todos os 36 deputados do PT oficiaram o Presidente da Casa, Deputado Ibsen Pinheiro, a recusa de contribuírem para o então Instituto de Previdência do Congresso (IPC), pois sua existência afrontava a Lei e estabelecia um privilégio. A Mesa Diretora rejeitou o pedido alegando que o IPC era uma instituição pública e que a contribuição, como para ao INSS, era compulsória, obrigatória.

Com a reforma previdenciária do Governo FHC, o Instituto mudou de nome, aumentou a contribuição, o número de mandatos, e a idade para receber o benefício, mas se consolidou o privilégio, a sustentação do Orçamento Público e esqueceu-se de cumprir a Lei. Predominou o espírito de corpo, a acomodação e o processo de burocratização no Congresso e nos partidos.

Privilégios ocorrem, também, no Judiciário, cada vez mais indefensáveis e que criam um abismo entre seus membros e de outras carreiras jurídicas com a população, com o povo brasileiro que, conforme com os dados do Censo do IBGE, em sua grande maioria, tem que viver com um ou dois salários mínimos.

Não há paralelo nas sociedades capitalistas industrializadas com a desigualdade social reinante no Brasil. E quando isso ocorre também nas funções públicas é evidente que a legitimidade e a confiança nessas instituições torna-se presa fácil do descrédito de suas funções originais.

Mas, voltemos aos casuísmos do Congresso. Com a posse do Deputado Hugo Motta, na Presidência da Câmara, ressurgiu um problema que a Casa posterga a cada Censo realizado. Determina a Lei que a cada Censo (em princípio 10 anos), à luz da nova realidade demográfica dos Estados, o TSE deveria proceder ao cálculo de adequação dos novos números com a representação proporcional de deputados na Câmara Federal. Simples e objetivo assim.

Resulta que há mais de dois Censos a Câmara Federal não cumpre a Lei. Em matéria publicada no Portal GZH, no dia 26/2/25, o  deputado Hugo Motta, para não incomodar seus pares, traz uma brilhante solução. Ao invés de cumprir a lei, ele sugere que se aumente o número de deputados dos 513 atuais para 527 e com isso se atenderia aos Estados que reclamam que estão sub-representados. O novo presidente não nega sua origem: um acordão e todos saem satisfeitos. Claro, o Orçamento da Casa teria um “módico” acréscimo de R$ 46 milhões ao ano, fora algumas reformas nos prédios e gabinetes para os novos deputados.

A mesma lógica das vantagens, salários e privilégios resolvidos por casuísmos, por conciliações. A matéria do GZH diz que o cálculo desse novo custo foi feito por economistas ligados ao Instituto Millenium, estes ainda citam uma das distorções que deveriam ser corrigidas. Atualmente, Amazonas e Paraíba com a mesma população tem, respectivamente, 8 e 12 deputados na Câmara Federal.

É claro que o casuísmo de Hugo Motta tem que ser criticado. A Câmara tem que adequar a composição conforma o novo Censo e não criar mais despesas num Parlamento já recordista de gasto público. Mas o problema aí é só aparente e é incrível que o jornal que se jacta de seu caráter investigativo, tenha ficado no superficial.

O problema da Câmara Federal não é só não respeitar as alterações demográficas das últimas décadas, mas no caso da proporcionalidade da representação da cidadania é não ter chegado ainda ao princípio elementar das revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX – um cidadão, um voto.

Não se trata de adequações apenas para Amazonas e Paraíba. O sistema eleitoral na Constituição de 1988 manteve quase tudo do sistema ditatorial. Um dos itens mais antidemocráticos que vieram da ditadura era a prática de transformar os antigos Territórios em Estados e garantir-lhes, independente da população, um mínimo de oito deputados, o que vale também para os pequenos Estados ou novos criados mais recentemente.

Se tem algo a mexer no sistema eleitoral, imediatamente, é essa brutal distorção antidemocrática que perdura até hoje e distorce os resultados. Ou seja, uma verdadeira fraude eleitoral  (não a da urna eletrônica como queriam os golpistas de 8 de janeiro), que foi incorporada na CF de 1988 e sobrevive e é mantida pela maioria da Câmara. A CF de 1988 manteve que nenhum Estado pode ter menos que oito deputados e nenhum mais que 60 deputados. Emenda constitucional nos anos 90 alterou o teto para 70, mas a distorção, a fraude continua flagrante.

Vejamos os números. Alguns Estados, por sua população, teriam um ou dois deputados, mas elegem oito! Se somarmos os 10 menores estados (RO, AP, AC, TO, RO, SE, MS, AL, PI e RN), conforme o Censo do IBGE, em 2024, temos a soma de 21 milhões de brasileiros que elegem 80 deputados federais. O estado de São Paulo, com quase 46 milhões de habitantes, portanto, mais que o dobro de habitantes, elege apenas 70 deputados federais. Isso é mais que distorção, é uma fraude no princípio da igualdade do voto da cidadania que está também na Constituição.

Se o Congresso brasileiro quiser recuperar legitimidade, consideração e respeito frente ao povo brasileiro deve corrigir essa e outras pautas, como as emendas parlamentares e o voto nominal que vem tornando o país ingovernável.

Março de 2025.

Raul Pont é Professor e ex-prefeito de Porto Alegre.

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