Neste 25 de outubro de 2025, o Estado Democrático reconquistado pela sociedade brasileira se fez presente numa iniciativa da sociedade civil para afirmar seu compromisso com a liberdade de expressão e com a vigilância em defesa de uma democracia permanentemente ameaçada. E para pedir perdão

Para Paulo Frateschi, militante.
A gigantesca Catedral da Sé, no centro do São Paulo, ficou pequena para acolher o número de pessoas que atenderam ao chamado do Instituto Herzog, do Sindicato dos Jornalistas e da Comissão Arns. Mais que um convite, foi uma convocação para participar do Ato inter-religioso em memória dos 50 anos da morte do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura em 25 de outubro de 1975, nas dependências do Doi-Codi do II Exército.
A Catedral vai sendo preenchida pela geração de perseguidos políticos, seus filhos, netos, parentes próximos, amigos, companheiros, jornalistas, advogados, ex-exilados, sobreviventes das prisões da ditadura, militantes solidários com as causas da democracia, da liberdade de expressão, da defesa dos Diretos Humanos.
Cabelos brancos e aquele ar desajeitado de quem está pouco afeito a frequentar ambientes religiosos, templos. Esses suaves hereges vão se acomodando como podem nas bancadas da nave central e logo nas laterais. Os que chegam mais tarde e não encontram um lugar, permanecem mesmo de pé para acompanhar melhor os passos da cerimônia. Um grupo coral à esquerda do altar, entoa os acordes aqui e ali reconhecíveis da Missa Criolla de Ariel Ramirez.
O som não é bom, nem ruim. É inaudível… aparentemente, a acústica não estava entre as preocupações relevantes dos arquitetos celestiais. As colunas monstruosas e as abóbadas góticas dispersam o som e exigem a máxima concentração dos ouvintes para discernir o que está sendo cantado: “O bêbado e o equilibrista” (João Bosco e Aldir Blanc) e “Cálice” (Chico Buarque e Gilberto Gil).
Cinquenta anos depois, a manifestação busca reproduzir a histórica liturgia ecumênica, realizada em outubro de 1975, conduzida por D. Paulo Evaristo Arns, Cardeal de São Paulo, pelo Pastor Presbiteriano James Wright e pelo Rabino Henry Sobel no sétimo dia após a morte de Vlado, como era conhecido o jornalista. O objetivo claro daquele ato religioso era desmentir diante do Brasil a versão de suicídio apresentada pelo Exército. E restabelecer a verdade dos fatos, diante de uma sociedade acossada pela violência e pelo medo.
A mobilização silenciosa de diferentes segmentos sociais ignorou as ameaças do aparato repressivo do regime e marcou uma virada na percepção dos brasileiros a respeito da brutalidade, da tortura, dos assassinatos, dos desaparecimentos forçados em que o regime mergulhara o país.
A sociedade sinalizou ao poder ditatorial um ponto de não retorno. Não era mais possível tolerar “Tanta mentira, / tanta força bruta”. Menos de três meses depois – 17 de janeiro de 1976 – a “tigrada”, para lembrar a expressão de Elio Gaspari, deu o sinal de que seguia viva e operante: o operário Manoel Fiel Filho foi assassinado nas mesmas dependências do Doi-Codi. E o anúncio de sua morte repisou a mesma causa: suicídio. Dessa vez o general Ednardo D’ávila Melo foi sumariamente demitido, por Geisel, do comando do II Exército.
Neste 25 de outubro de 2025, o Estado Democrático reconquistado pela sociedade brasileira se fez presente numa iniciativa da sociedade civil – sindicatos, movimentos sociais de defesa dos direitos humanos, Comissão Arns, Instituto Herzog, personalidades do campo do direito e da cultura – para afirmar seu compromisso com a liberdade de expressão e com a vigilância em defesa de uma democracia permanentemente ameaçada. E para pedir perdão.
Ouvimos atentos o discurso do presidente da República, em exercício, Geraldo Alckmin reafirmando o compromisso com a democracia e os direitos humanos e, sobretudo, da presidente do Superior Tribunal Militar, ministra Maria Elizabeth Rocha, com o pedido de perdão pelos erros e omissões cometidos pelo Estado brasileiro durante mais de vinte anos de ditadura impostos ao Brasil.
A cerimônia contou com a participação de centenas de familiares de mortos e desaparecidos políticos, de sobreviventes das prisões e do exílio impostos pelo regime militar para ouvir as palavras iniciais do cardeal D. Odilo Scherer, do rabino Rav Uri Lam e da reverenda Anita Sue Wright.
Eles trouxeram para o presente de um país fragmentado, mais do que um eco da denúncia profética, corajosa de D. Paulo Evaristo Arns, Jaime Wright e Henry Sobel, proferida há cinquenta anos, a advertência contra a cultura autoritária, golpista, que assedia de todas as formas as instituições democráticas e se lança abertamente contra elas sempre que surja uma oportunidade, como ocorreu no 8 de janeiro de 2023.
O Rabino Rav Uri Lam, incluiu no seu pronunciamento a leitura de um dos “Poemas do enforcado”, escrito em outubro de 1975, no Presídio do Barro Branco e incluído no volume dos “Poemas do Povo da Noite”:
A ÚLTIMA NOITE
Sexta-feira. Noite. / Noite mais longa/ que os sete anos de André, / os nove anos de Ivo, / noite mais longa/ que a angústia de Clarice.
Na carne da sombra/ outras sombras se desenham/ buscando formas humanas/ (é necessário um disfarce mínimo) / contra o claro corte da luz.
Ninguém viu como chegaram. / Em torno, a treva abriga/ o passo de seus filhos.
As mãos sedentas de gritos, / de prisões, de chagas, / arrastam teu corpo / ao território da treva. / Mas não estás sozinho, / nunca mais estarás sozinho. / Teus irmãos te resgatam/ e adiam para amanhã/ o riso dos chacais.
De tuas mãos ainda brotará/ o último noticiário da noite. / Preso entre os dedos, / o endereço da morte.
(São Paulo, Outubro de 1975).
Os nomes dos mortos e desaparecidos forçados fluem – horizontais e silenciosos – sobre as telas negras à direita e à esquerda do altar e se depositam uns sobre os outros como escombros de palavras e de vidas destroçadas ou talvez como sementes para nomear os lutadores da geração seguinte. De todo modo, permanecem ali por alguns minutos, tempo suficiente para nos marcar como brasas vivas, a memória que o Estado ditatorial buscava apagar e nós cumprimos o dever de cultivar.
Outras imagens comovem. Os rostos de D. Paulo, Henry Sobel e Jaime Wright durante a cerimônia de outubro de 1975 evocam a tensão – e a coragem – que permearam aquele gesto de desafio aos generais. A sociedade brasileira recuperava ali o direito à verdade sobre as circunstâncias da morte dos seus filhos perseguidos pelo poder do Estado: não se tratava de suicídio. Vladimir Herzog fora assassinado sob tortura numa dependência do Exército. Tratava-se de assassinato, portanto, e assim seria lavrado na sentença da História.
O nome de Audálio Dantas ressoa na fala emocionada da representante do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Audálio Dantas, então presidente do Sindicato, desempenhou o trabalho essencial de contestar a mentira dos porões sobre o suicídio. E se incumbiu de mobilizar as redações e articular a resposta que resultou no ato ecumênico celebrado pelos três religiosos.
O testemunho do Dr. José Carlos Dias, decano dos defensores de Direitos Humanos, ressalta a indispensável ação dos advogados na defesa dos presos e perseguidos políticos, as tensões e os desafios que chegavam, naqueles anos, até a Comissão de Justiça e Paz, espaço de acolhimento para os acossados do Brasil e do Cone Sul, submetidos ao terror de Estado que anoitecia o continente.
Ivo Herzog conduz nosso olhar para a incontornável dimensão familiar e afetiva dessa tragédia que marcou uma virada na luta da sociedade brasileira contra o arbítrio do regime militar. Sem perder a percepção aguda do alcance do drama vivido por sua família sobre o desenlace da resistência e da luta da sociedade brasileira contra a ditadura, ele se dirigiu a uma plateia comovida.
Ao percorrer a saga de sua mãe em busca da verdade e justiça, desde o impacto da dor brutal pela perda de Vlado, naquele 25 de outubro; da recusa a cumprir um luto encoberto pela mentira flagrante de que seu pai teria atentado contra a própria vida; da decisão do rabino Sobel de não sepultá-lo no espaço destinado aos suicidas, um gesto que, por si, destruiu a versão sustentada pelo Exército; do ato inter-religioso que expressou ao país, sete dias depois, a indignação e o inconformismo da sociedade brasileira contra “tanta mentira,/ tanta força bruta”, até a sentença do juiz Márcio José de Moraes condenando o Estado brasileiro pelo assassinato. Corajosa. Necessária. Tardia.
Assim se move o Estado brasileiro.
Aqui estão presentes a presidente da Comissão de Anistia, a procuradora federal Dra. Ana Maria de Oliveira e a presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos, procuradora Eugênia Augusta Gonzaga. Duas mulheres que, neste momento, conduzem instrumentos indispensáveis para o Brasil por de pé uma Justiça de Transição. A sociedade brasileira se move, ainda que sob o peso histórico do patriarcado, se move.
A luta prossegue, por verdade, memória, justiça e reparação. A voz de Ivo Herzog falou em nome de centenas de familiares de lutadores da resistência à ditadura e em defesa da democracia.
Percebo aqui a oculta carpintaria trabalhada pelas mãos e pela sensibilidade de Rogério Sotilli, Paulo Vannuchi, da Comissão Arns, do Instituto Herzog, do Sindicato dos Jornalistas para manter acesa com este ato a memória indispensável à consolidação da democracia brasileira.
Uma palavra final para não perdermos a percepção dos riscos deste momento contra a tentativa de virada histórica num país desde sempre sitiado pelas sombras do autoritarismo. Dias depois do ato “Por Vlado”, e do discurso proferido pela ministra Maria Elizabeth Rocha, presidente do STM, a sociedade ouviu a reação dos porões insepultos pela boca do brigadeiro Carlos Augusto Amaral Oliveira, ministro do próprio STM.
Buscava, o brigadeiro, com uma retórica típica dos oradores de turma da AFA – a AMAN da Força Aérea – desautorizar o pedido de perdão pelos erros e omissões do Estado brasileiro durante o período da ditadura expresso pela ministra presidente da Corte, na Catedral da Sé. Uma espécie de “não em nosso nome”, para deixar claro que segue viva nas instituições a ideologia autoritária que sustentou por mais de duas décadas uma ditadura civil-militar Brasil. Viva o suficiente para impedir o Estado democrático que a sucedeu de, passados tantos anos, concretizar uma Justiça de Transição digna desse nome.
Em suma: a frágil democracia brasileira segue dormindo com o inimigo.
Brasília, novembro de 2025.
Pedro Tierra é poeta, militante da resistência à ditadura de ontem e ao neofascismo contemporâneo. Ex-presidente da Fundação Perseu Abramo.
Via Teoria e Debate