Márcio Pochmann fala sobre salário mínimo e políticas de emprego.
Economista e pesquisador da Unicamp, o Secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo sabe que diminuições substantivas nos números do desemprego só virão por ações do Governo Federal. Mesmo assim, projetou uma série de programas que interferem diretamente no problema, em iniciativas locais.
Com o sucesso das políticas implantadas, ultimamente Márcio Pochmann tem se permitido manifestar também sobre as ações necessárias no plano federal. É esse o tema dessa conversa com o Democracia Socialista, que publicamos aqui.
Quando assumiu a Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, Márcio Pochmann já tinha familiaridade com o problema que iria enfrentar. Economista e pesquisador da Unicamp, Pochmann implantou programas locais de distribuição de renda e combate ao desemprego. No entanto, não cansou de afirmar que seria impossível alterar o quadro sem mudanças nas políticas do Governo Federal. Nessa entrevista, ele fala justamente das decisões do governo sobre salário mínimo e emprego.
Você afirmou, recentemente, que um salário mínimo de 300 reais faria bem para o país. Qual a base desse raciocínio?
Nós na verdade não nos fixamos num valor monetário, mas fizemos um exercício para demonstrar a importância do salário mínimo em termos de sua associação com três elementos chaves, no nosso modo de ver. O primeiro, o combate à desigualdade intra-salários. O fato de o salário mínimo ser muito baixo faz com que a diferença entre o maior e o menor salário seja muito elevada, absurda, para dizer a verdade.
O segundo diz respeito à importância do salário mínimo no combate à pobreza. Há várias formas de mostrar isso, como o aumento do mínimo repercute favoravelmente no combate à pobreza. E, por fim, no que diz respeito à difusão de um padrão de consumo para a população. Quando você tem a elevação do salário, há repercussão na renda das famílias mais pobres.
Ele seria, então, uma ponte entre a política econômica e a política social?
Exatamente. Talvez o que mais me tenha frustrado é justamente a ausência de uma política nacional para o salário mínimo. Os constrangimentos à sua elevação são conhecidos desde o golpe de 64, já que de 1940, quando o salário mínimo foi criado, até hoje, há duas nítidas fases. De 40 a 64, nós tivemos um salário mínimo voltado para o mercado de trabalho, para o combate à desigualdade de rendimentos, para o combate à pobreza e a necessidade de elevação da renda dos mais baixos salários para atingir um padrão de consumo mínimo.
De 64 pra cá, o que nós tivemos foi uma transformação na política do salário mínimo. Ele tornou-se um elemento residual da política econômica, deixou de ser uma política do Ministério do Trabalho para se transformar numa política econômica. O Ministério da Fazenda passou a ser responsável, em geral, pela definição do mínimo, que se transformou então num instrumento de combate à inflação, principalmente durante o regime militar. No período democrático, de 1985 pra cá, o salário mínimo transformou-se num elemento de ajuste fiscal.
Toda vez que nós vamos discutir a sua elevação, o primeiro argumento contrário que aparece é o seu impacto na previdência ou nas finanças públicas. Então ele perdeu referência. E, nesse sentido, seria fundamental nós termos uma política para o salário mínimo. Se nós já sabemos quais são os obstáculos para a elevação do mínimo, o que interessa à população – mais importante até que o valor monetário nesse momento – é dizer o seguinte: temos tais e tais obstáculos, que nós vamos resolver da seguinte maneira para que então o salário mínimo possa ter uma elevação consistente.
Nós precisamos de uma política para o salário mínimo que enfrente os obstáculos que impedem atualmente o salário mínimo de recuperar o seu valor. Em 1960, por exemplo, o salário mínimo tinha um valor três vezes maior do que é o atual. E isso num momento em que a economia não tinha um ganho de produtividade e desenvolvimento tecnológico que tem hoje. Portanto, tem uma questão técnica e uma questão política. Precisamos focar prioridade na política de salário mínimo, coisa que não há hoje.
Quais aspectos precisariam ser considerados para a consecução dessa política?
Eu acredito que precisaria haver uma separação de ações. Uma coisa é o que tem a ver o salário mínimo com o mercado de trabalho. Que impacto tem ele na formalização da mão-de-obra, no combate à desigualdade de renda, no impacto dos custos das empresas e no consumo também, porque o salário mínimo é um elemento de consumo. Então a recuperação do mínimo exigiria e pressionaria uma demanda sobre determinados bens, sobretudo os bens salários. A indústria, a agricultura, sobretudo a familiar. Isso exigiria uma preparação do país para atender a demanda decorrente da elevação do mínimo.
Outra discussão é a que associa salários mínimos e políticas públicas: a previdência, a assistência social, ao seguro desemprego. Essa é uma outra discussão importante, embora devamos reconhecer que não há vinculação possível sem política pública. No que diz respeito a políticas públicas, não havia, no passado, vinculação com o salário mínimo. O provento das aposentadorias era profundamente prejudicado pela hiperinflação. Especificamente em relação à previdência social, a vinculação se procedeu a partir de 88, com a constituição federal. E foi importante, ao meu modo de ver, inclusive para proteger o valor real das aposentadorias.
Portanto, essa desvinculação proposta pelo governo entre o salário mínimo e a previdência seria um problema?
Exatamente. Nós não sabemos qual é, por exemplo, o valor do salário mínimo adequado para atender às necessidades básicas dos trabalhadores e suas famílias no dia de hoje. Precisaria haver um levantamento. Também seria necessário um levantamento científico a respeito do custo de vida para o trabalhador aposentado. Aí seria diferente. Um levantamento nesse sentido indicaria, por hipótese, que o valor adequado, na aposentadoria, deveria ser de, vamos dizer, 800 reais. Mas hoje é 260 reais.
Você precisa, então, uma política específica de elevação do piso da previdência. Lamentavelmente, quando da reforma da previdência, não se considerou o debate sobre o piso da previdência, somente sobre o teto. O valor do piso é uma questão fundamental, porque sem isso teremos cada vez mais a presença de aposentados que recebem seus valores da previdência, mas que continuam trabalhando. Ou seja, perde-se o significado da aposentadoria. Segundo o IBGE, em dados de 2002, há 6 milhões de aposentados que continuam no mercado de trabalho.
Quais as conseqüências que podemos esperar de um reajuste de apenas 20 reais no salário mínimo?
Concretamente, o aumento do salário mínimo representa, se dividirmos o mês por 30 dias, um acréscimo diário de 66 centavos, o que equivale praticamente a três pãezinhos. Não é um reajuste adequado, satisfatório, e também eu acredito que mesmo para aqueles que estão reinvindicando valores bem maiores, como 330 reais, mesmo nesse patamar não deixaria de ser um salário inadequado para atender pelo menos àquilo que a constituição estabelece como sendo um valor adequado para o mínimo.
Notavelmente, existe relação do SM com as opções feitas para a política econômica. Há um cálculo feito pelo vereador Odilon Guedes de que 7% do que o Brasil gastou com o pagamento de juros da dívida no ano passado seria o suficiente para sustentar um aumento para 300 reais, por exemplo. Como você vê essa relação?
Nós estamos nos especializando em fazer cálculos estáticos. Por exemplo, se você aumentar o salário mínimo este mês ele vai “custar” tanto para a previdência, para as empresas, para o setor público. Mas o estudo acaba nesse dado estático. Não se considera que o fato das pessoas receberem mais, um salário maior, implicará em consumo maior. Consumo maior significará mais impostos, maior demanda, então tem um efeito da dinâmica decorrente do impacto da elevação do mínimo que é pouco considerado. Especialmente quando nós estamos vivendo ainda um quadro de desaceleração da economia, uma recuperação muito lenta, em que, sobretudo nos setores chamados de bens salários, a capacidade ociosa continua muito alta. Nós teríamos, então, um efeito dinâmico considerável da elevação do mínimo, extremamente importante para sustentar mais rapidamente a recuperação da economia. Seriam efeitos diretos e a longo prazo na própria arrecadação tributária, amenizando os dispêndios que o governo tem ao pagar no primeiro mês a maior elevação da aposentadoria.
Alguns estudos mostram que entre as pessoas que recebem até 1 S.M. estão principalmente mulheres, jovens e negros, e que portanto ele teria um papel para além do econômico, mas de correção de certas desigualdades sociais.
De fato. Como nós estamos vivendo um aprofundamento da discriminação no interior do mercado de trabalho, são justamente esses segmentos citados aqueles que vivem em condições mais deploráveis de vida. Então, a elevação do salário mínimo propiciaria um enfrentamento da própria discriminação.
Voltando-se agora para o debate sobre emprego, de maneira geral. É possível buscar o pleno emprego, ter isso como meta?
Tecnicamente, é possível. Ao meu modo de ver, o pleno emprego não está no centro da agenda. Em geral tem havido um discurso derrotista, de que não há muito o que fazer. Eu defendo que o país tivesse meta de empregos. Assim como tem meta de inflação, meta de superávit fiscal, eu gostaria de ver como seriam as atas do Copom se o Banco Central também estivesse preocupado com as metas de emprego.
Quais políticas de curto prazo você consideraria as principais para impulsionar o crescimento do nível de emprego?
Obviamente que a questão fundamental do emprego é o crescimento econômico. Sem o crescimento econômico, nós não temos muitas alternativas, não tem como fazermos milagre. No entanto, há medidas que podem ser tomadas em paralelo à construção da economia, medidas que visariam políticas passivas de emprego. São aquelas políticas que não têm por objetivo elevar o nível de emprego, mas fundamentalmente retirar pessoas do mercado de trabalho.
Seriam medidas que chamamos de redistributivas, que transferem renda, por exemplo, para jovens. Nós temos no Brasil 34 milhões de jovens, e 17 milhões não estudam. Ou seja, essa juventude está ficando comprometida em termos da possibilidade de inclusão pelo mercado de trabalho para os próximos anos. Seria fundamental que o Brasil tivesse um programa de transferência de renda para que esses jovens saíssem do mercado de trabalho e se comprometessem com o estudo e atividades comunitárias. Na França, de cada 10 jovens, 1 está no mercado de trabalho. No Brasil, são 7 em cada 10. Os jovens estão condenados ao trabalho e precisamos libertá-los disso, dando condições de elevação da escolaridade. Essa é uma medida pela qual você não aumenta emprego, é verdade, mas tira a pressão sobre o mercado de trabalho.
Como você enxerga a importância da reforma agrária nesse processo de combate ao desemprego?
A questão do desemprego passa certamente por três reformas. A agrária é uma delas. Teria sido muito importante que o Brasil tivesse feito a reforma agrária nos anos 50 e 60, mas o fato de nós não termos feito não significa que nos dias de hoje ela não continue sendo importante. De um lado, porque inexoravelmente vai continuar vindo um conjunto de pessoas do campo para a cidade, então a reforma agrária é uma maneira de postergar essa transferência, manter mais pessoas durante mais tempo no campo. De outro lado, porque ela também é um mecanismo importante de distribuição de renda.
O modelo do Estado de bem estar social ainda é uma referência a ser buscada?
Pensando dentro do modo de produção capitalista, eu não identifico alternativa para a questão do emprego e da desigualdade que não passe pelo Estado. O que nós tivemos no Brasil nos últimos 14 anos foi um aprofundamento do neoliberalismo que levou à destruição do Estado, à baixa capacidade de intervenção na economia. São os problemas que o governo Lula está tendo agora.
Você tem uma estratégia, tem uma política, mas tem dificuldade de implementá-la. Vão dizer que é incompetência da gerência, mas não é verdade. É uma dificuldade operacional, porque o Estado está despreparado, descapitalizado. Há um desaparelhamento do Estado para fazer regulação pública. Inclusive nos dias de hoje, nos Estados Unidos e mesmo na Europa, de cada 10 postos de trabalho, 6 dependem do gasto público. Portanto, não é o setor privado que vai resolver o problema do emprego. Aliás, não é da lógica do setor privado contratar por uma questão de fraternidade, de solidariedade, ele vai contratar tão somente por uma lógica econômica. É o Estado que pode colaborar, por um lado, para elevar o nível de ocupação e, por outro lado, libertar segmentos da população da condenação ao trabalho.
A Fazenda apresentou, no início do ano, um estudo que “orientava” os gastos sociais. Nele havia uma série de considerações, questionando-se, inclusive, os gastos com universidade pública. Vocês publicaram um documento em contraposição a esse estudo. Quais os problemas que vocês perceberam na análise da Fazenda?
Essencialmente, foram três princípios. Primeiramente, nós questionamos a lógica da subordinação da política social à política econômica. Essa lógica que faz com que o estudo do Ministério da Fazenda nem faça referência à financeirização da riqueza, da qual o Estado, no Brasil, tem sido um dos principais sustentadores e que permite que a política macro-econômica esteja aprisionada por tão somente 15 mil famílias.
Em segundo lugar, nós questionamos o fato de também o Ministério da Fazenda não considerar a tributação, a chamada justiça tributária, como um dos principais mecanismos de combate à desigualdade social e de renda. O Brasil é um dos países que não teve uma reforma tributária, fazendo com que os ricos não paguem impostos. Quem paga imposto no Brasil são os mais pobres. Você tem uma estrutura tributária regressiva, são os impostos indiretos que mais operam. A última tentativa de reforma tributária no Brasil foi incapaz de aprovar, por exemplo, um tributo sobre herança. Em qualquer país de capitalismo civilizado, você tem uma estrutura tributária progressiva, que faz com que os ricos paguem mais impostos que os pobres.
Em terceiro lugar, no que diz respeito ao gasto social. Nós não acreditamos que o Brasil esteja gastando o suficiente em termos de gastos sociais. Já gasta uma quantia importante, mas não o suficiente. Nem mesmo está acima do limite que aparentemente o estudo tentaria induzir, ao afirmar que “não há mais como gastar na área social, trata-se agora apenas e tão somente de racionalizar”. Nós consideramos importante o gasto social. Pode haver modificações a serem feitas, mas não pode ser como o documento da Fazenda, que tenta responsabilizar o gasto social pela desigualdade de renda no país. Isso é um absurdo.
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