(Hoje, nesse último dia de março, lhes ofereço uma leitura para homenagear duas mulheres. Dagmar e Mazé. Minhas irmãs. 61 anos depois do golpe as mulheres do Brasil que conhecem os subterrâneos da dor, da prisão, do exílio e do silêncio quotidiano da resistência, cuidando dos velhos que sequer alcançavam o sentido ou o sem sentido de toda a violência da ditadura, sopram a brasa da memória para manter acesa a presença das que se foram e das que ainda estão aqui, atentas combatendo os herdeiros do fascismo.)

E sobreveio um Tempo sem entranhas.
Anos de pedra espessa,
dias de muro e medo:
a morte invadiu
com seus exércitos
o espaço aberto das ruas
e o silêncio das armas
sepultou com seus ferros
e o manto verde-oliva
os ossos dos meninos trucidados.
E os coveiros do Continente
estenderam seu império
de delatores,
carrascos,
elegantes assassinos
de farda impecável
e coturnos reluzentes,
até o porão das fábricas,
a marcha dos retirantes,
os barracos das favelas,
os bancos das escolas,
os sonhos dos saqueados,
até a última fresta
onde a boca dos humanos
passasse ao humano ouvido
palavras de rebeldia.
E a noite pensou de si mesma
que era um Tempo sem prazo,
sem passado, sem futuro,
um tempo que se bastava,
da própria dor se nutria.
Os olhos da Noite cega
não viram fagulhas saltando
na alma das oficinas,
não viram tochas ardendo
na marcha dos retirantes,
não viram os favelados
recriando o fogo vivo
nas estações depredadas
e os olhos dos estudantes
clareando de esperança
as ruas submetidas.
Os olhos da Noite cega
não viram o solho do Povo
reacendendo fogueiras
no ventre da escuridão
enquanto busca romper
as turvas cadeias do sol
e AMANHECER!
(Presídio Político de S. Paulo, maio de 1975,
Brasília, 31 de março de 2025)