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Uma vitória histórica e a abertura de um novo ciclo de transformações democrático-populares no Brasil

Contribuição da Democracia Socialista para o debate do DN/PT de 13/03/2023.

A vitória obtida nas eleições de 2022 deve ser interpretada como um fato histórico da luta de classes nacional e internacional. Histórica porque interrompe uma conjuntura de nove anos de defensiva das forças democrático-populares, de seis anos de governos afinados com uma radical contra-revolução neoliberal e quatro anos de um governo abertamente fascista. Representou claramente a luta de classes ao opor a votação dos setores mais pauperizados das classes trabalhadoras, dos negros, das mulheres, dos lutadores LGBTQI+, dos defensores do meio-ambiente aos votos organizados pelos setores capitalistas e conservadores.  Ela derrotou o principal governo de extrema-direita no mundo e projeta Lula como a principal liderança internacional de raiz popular e programa anti-neoliberal . Ela impacta imediatamente toda a conjuntura latino-americana e, com mediações, a luta por uma saída progressista da grande crise de civilização gerada pelo capitalismo neoliberal no século XXI. Ela só foi possível graças à liderança histórica de Lula, aos acúmulos da resistência dos movimentos populares e democráticos no período, à construção de uma renovada e ampla unidade das forças de esquerda e centro-esquerda. Em particular, na vitória obtida no segundo turno das eleições presidenciais foi decisivo o apoio de lideranças neoliberais não bolsonaristas.

A votação de Bolsonaro não expressou apenas uma força eleitoral, mas um bloco de forças sociais que se organizou em torno ao seu governo envolvendo o capital financeiro, entidades empresariais, a força do agro-negócio, as Forças Armadas e Polícias Militares, além de setores populares organizados e cultivados por lideranças evangélicas e católicas conservadoras. É claramente a expressão de uma articulação internacional de forças fascistas, com centro na liderança de Trump nos EUA. Mas esta votação foi claramente alavancada por todo tipo de violações aos princípios minimamente democráticos e constitucionais, muito parcialmente contidos pelo STF. Sem estas violações, seria quase certa a vitória da chapa Lula/Alckmin no primeiro turno. Compõe a derrota das classes dominantes, a crise agônica do partido histórico do neoliberalismo brasileiro, o PSDB, e de sua coligação.

A resultante central deste diagnóstico do significado da conquista de 2022 é a compreensão de que se abriu como possibilidade um novo ciclo histórico de transformações democráticas e populares no Brasil. Este novo ciclo histórico exige a atualização do programa e da estratégia de todas as esquerdas brasileiras, dos partidos aos movimentos sociais. Na conjuntura mais difícil – com Lula na prisão, em plena Operação Lava-Jato, após o golpe de 2016, frente a um contexto de ataques a todos os direitos, de tutela militar e de violências, com as esquerdas ainda desunidas – soubemos construir uma disputa pela maioria para voltar a governar o país, preservando a esperança e lançando as sementes de uma vitória que afinal veio. Agora, em uma nova cena histórica, é preciso construir um projeto programático de transformações históricas e estruturais, que abra o caminho para a superação do neoliberalismo. Este programa está, em suas dimensões centrais, expressos nos documentos coletivamente construídos da “ Reconstrução e transformação do Brasil”.

Uma análise realista da conjuntura do início do  governo Lula/Alckmin deve reconhecer que ele age e está condicionado por uma contradição em processo. Isto é, é possível estabelecer como uma previsão razoável que o bolsonarismo como movimento político organizado encontrará sérias dificuldades no próximo período para manter a sua base social e sua capacidade de atuação política centralizada, que em grande medida foi alavancada pelo uso que fazia do governo central do país. Se é certo que a conquista de certas posições institucionais, seu enraizamento organizado em algumas regiões  e seus vínculos internacionais lhe garantirão uma certa resiliência, a exposição de suas lideranças e métodos à judicialização de seus crimes, a dispersão do caráter fisiológico de sua base parlamentar e mesmo de uma parte de sua base evangélica e um processo crescente de afirmação do governo Lula podem limitar severamente a sua audiência social e sua capacidade de desestabilização política. De outro lado, vive-se hoje desde o período inicial de consolidação das forças neoliberais no Brasil, através dos governos FHC, a maior crise de legitimidade e de capacidade de articulação do neoliberalismo, bem expressos na crise agônica do PSDB e de sua coalizão. Esta crise, que tem decerto relação com os impasses do neoliberalismo no próprio centro capitalista, é fundamental e estratégica para pensar o potencial de transformação deste novo ciclo histórico. Em suma, uma crise combinada do bolsonarismo e dos partidos históricos do neoliberalismo abre um campo político de construção possível de uma hegemonia democrático e popular no próximo período, em um processo progressivo de acumulação de forças.

Esta previsão de uma possível alteração qualitativa da correlação de forças políticas em favor do campo democrático-popular deve incorporar o diagnóstico fundamental de que, no momento de sua posse, o governo Lula/ Alckmin não dispõe de uma correlação de forças que lhe permita realizar de forma plena o programa de reconstrução e transformação do Brasil para o qual foi eleito. Há quatro limites que agem de forma simultânea para limitar de início uma aplicação plena de seu programa:

– A força resiliente do bolsonarismo e suas relações com as Forças Armadas, que se manifestou na tentativa de golpe em 8 de janeiro e deve continuar mantendo ações de desestabilização. Se Lula se impôs ao demitir o comandante do Exército, ao transferir o GSI para o controle da Casa Civil, e está em curso um amplo processo de criminalização dos golpistas pelo STF, não se criaram condições para um pleno controle democrático sobre as Forças Armadas, limite histórico que vem desde a transição conservadora.

– A maioria conservadora e fisiológica no Congresso Nacional, que impõe limites à aprovação de leis e mudanças progressistas na Constituição, exigindo um grau importante de pactuação para a manutenção de um mínimo de governabilidade. Se o apoio a lideranças conservadoras e corrompidas foi escolhido como forma de garantir uma base de apoio ao governo e isolar o bolsonarismo, ele arrisca comprometer toda uma agenda necessária de reforma política fundamental para reconstruir a democracia brasileira em mínimos padrões republicanos.

Um grau profundo de enfraquecimento da economia do setor público (com privatizações e a desestruturação da Petrobrás), de devastação do mercado de trabalho, de desindustrialização, de endividamento e de constrangimentos fiscais, de alienação da soberania sobre o Banco Central que impõem enormes dificuldades para a retomada de um ciclo de retorno a um crescimento sustentado com distribuição de renda e ecologicamente sustentável.  Estas dificuldades se inserem num quadro de estagnação e crise da economia mundial, o que evidencia que um novo ciclo virtuoso dependerá centralmente de uma dinâmica interna, puxada pelo governo. O fundamental do programa do governo Lula e sua popularidade, em sua dimensão trabalhista e social, dependerão do grau de enfrentamento das dinâmicas e instituições neoliberais herdadas.

– Um último limite, e de dimensão central para um governo que enfrentará tais impasses, é o grau de corrosão do protagonismo das classes trabalhadoras, submetidas a anos de ataque frontal dos governos neoliberais e fascista. Fome, desemprego e precarização massiva, recuo das políticas sociais básicas, enfraquecimento do movimento sindical e da rede de organizações populares, requerem que se dê centralidade à reorganização do protagonismo político das classes trabalhadoras, central para construir uma base ativa e militante de apoio ao governo Lula e para alterar qualitativamente a correlação de forças no país a favor do campo democrático-popular. A grande vitória de 2022 é, deste ponto de vista, apenas o início de um grandioso processo de auto-organização que deve ganhar amplitude e profundidade nos próximos anos.

Desta visão geral das potencialidade e limites abertos neste novo período, resultam três imperativos.

  • O primeiro deles é que o governo Lula já se inicia com um grau elevado de polarização política com o bolsonarismo e o neoliberalismo. Será decisivo que as federações de partidos e os movimentos sociais construam desde o início uma disputa programática anti-bolsonarista e anti-neoliberal na sociedade em relação com as disputas travadas pelo governo. Apenas a disputa democrática nas ruas e nas redes pode compensar a correlação de forças desfavorável ao programa no governo e na institucionalidade.
  • O segundo imperativo é que é necessário desatar desde já um amplo e nacional processo de democracia participativa no governo, colocando em prática a proposta de orçamento participativo (em contraponto ao orçamento secreto na Câmara e contra as restrições neoliberais), convocar conferências que dê legitimidade às agendas de mudanças, renovar e dar dinamismo a todo o processo de representação da sociedade civil organizada nos Conselhos Nacionais.
  • O terceiro se relaciona ao tempo das mudanças. É fundamental que o governo comece a cumprir já as suas promessas de campanha como em relação ao salário mínimo, atualização da tabela do imposto de renda, reajuste do funcionalismo federal, mudanças nas leis trabalhistas, reforma tributária, agendas sanitárias emergenciais.

Mesmo com estes constrangimentos e limitações, é possível para o governo Lula sustentar e até aumentar a sua popularidade nestes dois primeiros anos de governo. Esta dinâmica progressiva se somada a um grande esforço concentrado de organização do campo democrático-popular, em particular nos grandes centros urbanos, pode pavimentar o caminho para grandes vitórias eleitorais nas eleições de 2024. Somada à possibilidade de uma alteração fundamental na direção do Banco Central, esta dinâmica de acúmulo político pode permitir até 2026 inclusive disputar uma maioria de esquerda e centro-esquerda para a formação do Congresso Nacional e na disputa dos principais governos estaduais.

De novo em sua história, o PT vê-se diante do grande desafio de manter a sua democracia e seu protagonismo político em um quadro em que o centro político de sua direção, como a liderança de Lula, se desloca para dentro do Estado brasileiro. Já a realização do VII Congresso do partido evidenciou recuos importantes na democracia e na representação do pluralismo das tendências na formação da direção nacional do partido. Estas distorções só se aprofundaram no processo de direção da campanha eleitoral e, agora, na própria formação do governo, quando as instâncias partidárias não foram sequer consultadas sobre a definição dos ministérios. O governo Lula precisa de um PT forte, democrático e enraizado nas bases, com capacidade alargada de direção política para desenvolver a plenitude de seu programa. O Diretório Nacional do partido deve, pois, discutir e promover um plano de fortalecimento da democracia e das suas direções, em sua agenda de lutas combinado com os grandes desafios do governo Lula.

Uma conquista decisiva para a vitória nas eleições de 2022 foi a construção da unidade das federações de partidos e da unidade dos movimentos sociais, reunidos nas Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo. Este princípio de unidade conquistada deve ser agora aprofundada com a construção de um programa histórico comum de transformações, com a construção democrática das federações de partidos e com um esforço unitário de construção de organismos territorializados de organização das classes trabalhadoras. É esta unidade estratégica que garantirá que o novo ciclo de transformações democráticas e populares no Brasil abra o caminho para superar os obstáculos históricos e estruturais que o capitalismo impôs à construção de uma verdadeira república democrática e popular no Brasil.

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