Nestas quatro últimas décadas em que tem sido a linguagem política central das classes dominantes, o neoliberalismo tem abrigado um amplo espectro que vai desde as experiências de centro-direita de Blair e Clinton até as formações de direita neofascistas. Mas a sua raiz, sua dinâmica profunda e sua projeção empurram o campo da política para a extrema-direita.
A deriva à direita da política no mundo nas últimas quatro décadas pode e deve ser explicada em um enfoque geopolítico e de mudança nas correlações de forças. Ou seja, através da dinâmica de potência imperialista dos EUA, fortalecidos após a dissolução da URSS e seu impacto nas várias conjunturas regionais, e pela perda de força dos principais partidos e organizações das tradições das classes trabalhadoras. Esta explicação centrada nas dinâmicas da potência de poder, no entanto, é insuficiente ou parcial se não se compreende que o programa e o sentido histórico da ação das classes dominantes, profundamente financeirizadas, moveu-se para a extrema-direita com a transição de um liberalismo social ou keynesiano para o neoliberalismo. Esta transição inclusive precede e organiza esta alteração na correlação de forças mundial e nacional.
Aquelas forças de esquerda em crise ou de centro-esquerda que aderiram a um programa neoliberal foram destruídas ou colocadas à margem. Partidos de centro-direita neoliberais, como é o caso por excelência do PSDB brasileiro, foram arrastados para a direita do espectro. E forças políticas de extrema-direita passaram a crescer e ocupar o centro da polarização.
Existe hoje, principalmente no plano internacional, uma vasta literatura que vincula neoliberalismo à extrema-direita e aos fenômenos de crescimento de políticas proto-fascistas no século XXI. Esta relação não é externa ou do tipo causa-consequência: o neoliberalismo na sua origem é uma linguagem de extrema-direita. Embora certamente não fascista pois não defende um Estado com poderes autocráticos de intervenção na economia e na sociedade.
Compreender isto é fundamental agora quando uma mídia programaticamente neoliberal guarda uma certa distância do bolsonarismo político enquanto radicaliza um discurso de oposição ao recém empossado governo Lula/Alckmin. Pois só será possível derrotar o bolsonarismo enquanto fenômeno político resiliente na sociedade brasileira se se construir as condições para uma superação histórica do programa da extrema-direita neoliberal.
Cinco razões
Há cinco razões para caracterizar o neoliberalismo como uma linguagem política de extrema-direita.
A primeira delas é que ele organiza a sua teoria política denunciando a Carta dos Direitos Humanos de 1948. Na obra magna de Friedrich Hayek, considerado o principal autor do neoliberalismo, esta denúncia é feita claramente no volume 2 de “ Direito, Legislação e Liberdade” (1973), que recebe o nome de “A miragem da justiça social”. No apêndice ao capítulo 9, “Justiça e direitos individuais”, a Carta da ONU é denunciada por procurar fundir a tradição liberal ocidental com o marxismo russo revolucionário, ou seja, os direitos civis e os direitos sociais e econômicos. Cita como documento os trabalhos preparatórios dos debates promovidos pela UNESCO. Critica em especial o caráter genérico dos artigos e seu pretenso universalismo. Assinala a sua semelhança com os documentos da tradição da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Esta denúncia da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de fato já feita por Hayek em artigo de meados dos anos sessenta, não é lateral mas está no centro do seu argumento. A pretensão em universalizar direitos sociais e econômicos legitimaria necessariamente uma intervenção crescente do Estado na “ordem espontânea do mercado”. No plano nacional e internacional, a reivindicação de uma igual ou maior dignidade para todos produziria uma verdadeira desestabilização da “justiça” própria às regras do jogo mercantil. A própria separação e contraposição entre liberdade e igualdade, que está no centro da teoria de Hayek, perderia sentido.
Neste sentido, o ataque virulento aos direitos humanos não é uma criação de Trump ou Bolsonaro mas está em linha com a origem da teoria neoliberal.
Uma nova “guerra fria”
Desde os anos trinta, quando polemizou publicamente com Keynes, Hayek veio adensando e tornando mais rigorosa, nos termos de sua teoria, a crítica ao liberalismo social. Isto se revela em particular na sua relação inicialmente ambígua com o liberal mais importante do século XIX, John Stuart Mill, renovador do utilitarismo inglês e formador da tradição do “liberalismo social” ou “liberalismo igualitário” e, ao final, fortemente crítica (Mill é chamado de “traidor do liberalismo”).
Se o inimigo central foi desde sempre o socialismo, em suas tradições revolucionárias, o pensamento de Hayek desde “O caminho da servidão”, de 1943, identificou nas diversas formas híbridas do liberalismo com o trabalhismo, a social-democracia e as dinâmicas do planejamento público e do Estado do Bem-Estar Social, um inimigo desde dentro da tradição liberal, dissolvente de sua identidade histórica. A linguagem que dirige aos liberais sociais não é propriamente adversarial ou de oposição mas de execração e de impugnação: são acusados de organizarem um outro caminho histórico, progressivo e inevitável, para o totalitarismo! Então, Keynes totalitário, Roosevelt totalitário!
O que o neoliberalismo promove, assim, é uma extensão e um aprofundamento da polarização da “guerra fria”, agora travada não apenas contra o socialismo histórico mas dentro das próprias cidadelas liberais dos países capitalistas centrais. Procura dar, inclusive, um tratamento histórico teórico a esta polarização, impugnando as tradições não anglo-saxãs de formação do liberalismo, em particular a cultura política francesa.
Na crítica amadurecida e radicalizada de sua linguagem política, no afã de criticar o senso comum da época do Bem-Estar Social, Hayek chega a dizer ao final do terceiro volume de “Direito, Legislação e Liberdade” que “90 % da população do Ocidente são socialistas”!
Se hoje as chamadas democracias ocidentais estão circunstanciadas em um grau elevado de polarização política, isto se deve em grande medida à linguagem política de extrema-direita do neoliberalismo. De novo, quando Trump acusa Biden ou Bolsonaro acusa Fernando Henrique Cardoso de “socialistas” isto não se deve propriamente a uma ignorância ou rusticidade políticas, embora elas sejam inegáveis, mas por se inscreverem em uma tradição política que durante décadas centralizou-se na denúncia de seus oponentes liberais como inimigos e proto-totalitários.
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