No dia da Jornada Nacional de Lutas dos Movimentos Sociais, leia artigo de Nalu Faria e Sarah de Roure sobre os impactos da crise internacional sobre as mulheres: “As análises sobre a crise, quando se referem aos trabalhadores, tratam genericamente do tema do desemprego e do consumo. Apontam que o emprego afetado é majoritariamente o masculino ou que a crise atinge igualmente a todos e todas. No entanto, compreendemos que essas abordagens são limitadas e que devemos visibilizar a extensão da crise”.
Nalu Faria e Sarah de Roure *
As análises sobre a crise, quando se referem aos trabalhadores, tratam genericamente do tema do desemprego e do consumo. Apontam que o emprego afetado é majoritariamente o masculino ou que a crise atinge igualmente a todos e todas. No entanto, compreendemos que essas abordagens são limitadas e que devemos visibilizar a extensão da crise.
Ao relembrar a crise asiática nos anos 80, observa-se que as respostas dadas pelo FMI e o Banco Mundial foram mais liberalização financeira e diminuição do Estado. Foram exatamente essas instituições que receberam dos governos presentes à ultima reunião do G20 o aval para gerenciar as saídas da atual crise. Assim como naquele momento, hoje as respostas por eles oferecidas são insuficientes diante da dimensão dos problemas.
No processo de reacomodação pós-crise asiática, o desemprego triplicou. As riquezas reais diminuíram em 40%, o trabalho infantil e a prostituição aumentaram enormemente. Os problemas econômicos e as tentativas de ajustes geraram empobrecimento com impactos diferenciados para homens e mulheres. Mais do que isso, o processo asiático trouxe à tona que a desigualdade entre homens e mulheres, produzida pela liberalização econômica, explicita-se em tempos de crise.
Com o desemprego masculino naquele momento, cresceu porcentagem de mulheres comprometidas com o trabalho remunerado e com o doméstico na tentativa de sustentar a vida. Além de buscarem outras fontes de renda para compensar a perda no orçamento familiar, mais bens e serviços, que antes eram comprados no mercado, passaram a ser produzidos em casa. Assim, os efeitos da crise no cotidiano foram amortecidos pela intensificação do trabalho doméstico realizado pelas mulheres. [1]
Com relação à crise atual, é importante compreender em que contexto a crise nos encontra. Foram mais de duas décadas de hegemonia da globalização neoliberal, que alterou profundamente a relação capital-trabalho, aprofundando a concentração da riqueza e as desigualdades, inclusive no interior da classe trabalhadora. Neste processo, o sistema aprofundou a divisão sexual, inclusive como estruturante da divisão internacional do trabalho. No Sul global, as mulheres estão concentradas em setores da produção internacionalizada, seu trabalho é explorado e nenhum direito é garantido, tanto na indústria (as montadoras na América Central), como na agricultura (produção de frutas no Chile, aspargos no Peru, flores na Colômbia ou castanhas na Bolívia).
As análises da economia feminista incorporam a divisão sexual do trabalho e, ao chamar a atenção para o terreno da reprodução, denominado produção do viver, nos permite elucidar a interconexão entre as esferas da produção e reprodução. Um dos pilares do neoliberalismo é a utilização do tempo das mulheres como variável de ajuste, ou seja, ele é visto como elástico, um recurso inesgotável. A exploração do tempo e trabalho das mulheres, combinada com a desresponsabilização do Estado e homens com esse trabalho, produziu uma crise dos cuidados.
A crise como oportunidade e risco
O debate dos movimentos sociais e de mulheres tem sido permeado pela afirmação de que a crise pode ser vista como risco, mas também como oportunidade. Ela abre um maior espaço na sociedade para a crítica ao neoliberalismo pelos impactos que causou, mas também por sua falência como modelo. Por outro lado, a grande ameaça para os povos é que os rearranjos econômicos, políticos e sociais sigam os cardápio anti-crise apresentado por vários governos e organismos internacionais, que na verdade são mais do mesmo.
No caso das mulheres, há o risco de refuncionalizar no que se considera seu papel tradicional. Ou seja, a partir de um discurso de positivação do feminino e das mulheres como boas gestoras dos recursos das famílias, se afirma que a forma de conter a crise é investir nas mulheres. Já parecem os estudos que dizem que é importante investir nas mulheres, pois, enquanto elas destinam 90% de sua renda para a família, os homens destinam apenas 35%.
Efeitos e saídas para a crise a partir da América Latina e Caribe
Em nossa região, o avanço da luta política colocou em curso um processo de construção de alternativas soberanas e populares. A resistência ao neoliberalismo nos anos 90 organizou um campo social que derrotou a ALCA e elegeu governos progressistas. É nessa conjuntura que se recoloca o tema da integração regional como alternativa à hegemonia global e também como uma das saídas para a crise.
O crescimento econômico, estável desde 2003, permitiu uma pequena recuperação do emprego formal e uma leve diminuição das desigualdades. No entanto, um dos limites é que esse crescimento esteve vinculado a um marco de reprimarização da economia e de manutenção do enfoque extrativista, exportador de comoddities e recursos naturais.
Com a crise, o preço desses produtos caiu abruptamente impactando a balança comercial dos países da região. Outro efeito da crise na America Latina é a superprodução de mercadorias especialmente nos ramos mais globalizados como o setor automotivo. Ainda que as notícias não mostrem, os empregos das mulheres têm sido mais afetados (vide o artigo “Trabalho e mulheres em tempos de crise”, na edição de julho da Folha Feminista).
Uma visão anticapitalista da crise passa por questionar o atual modelo de produção e consumo e isso implica discutir que tipo de emprego nos interessa.
As feministas têm afirmado a importância de olhar para a economia real, o que significa considerar não só a produção, mas também a reprodução. Mais do que olhar para o mercado formal é necessária uma visão ampliada que reconheça as diversas relações de trabalho e as formas de produção e comercialização fora do modelo hegemônico, como a produção indígena agrícola e artesanal e a economia solidária.
É necessário democratizar as decisões econômicas para debater e alterar profundamente o modelo de produção e consumo que alimentam o lucro dos capitalistas. É do dialogo entre Estado e Sociedade que sairão as alternativas para a crise e não da relação entre Estado e Sistema Financeiro.
A dimensão internacional da crise e sua profundidade indicam que as saídas não se darão em um só país, mas a partir de relações solidárias entre as nações. Uma integração geradora de igualdade, nesse momento, é imprescindível.
[1] SUMMERFIELD, Gale e ASLANBEIGUI, Nahid The Asian Crisis, Gender,and the International Financial Architecture in Feminist Economics Vol.6 Number Three. Nov.2000. Houston- USA* Nalu Faria e Sarah de Roure são militantes da Marcha Mundial das Mulheres. Artigo originalmente publicado na Folha Feminista, edição de julho/2009 – disponível em www.sof.org.br.
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