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Uma democracia com direitos | Luiz Marques

O professor da Universidade Jonhs Hopkins, Yascha Mounk, em O povo contra a democracia, elenca três “condições de escopo” para explicar a existência da democracia liberal. Nenhuma sobreviveu ao vendaval da contemporaneidade. Pareciam sólidas, mas desmancharam no ar.

1) A primeira condição alude ao predomínio dos meios de comunicação para limitar a circulação de ideias antissistêmicas e, em paralelo, desenvolver um conjunto de valores e fatos compartilhados para cercear a disseminação de críticas radicais e também de informes falsos. À época, não passava pelo topete démodé de um folclórico estadunidense e pelo pesadelo do bronco brasileiro da Barra da Tijuca se tornarem presidentes, nos respectivos países. A questão é que a internet enfraqueceu os difusores tradicionais de informação, e trouxe à tona movimentos e políticos outrora à margem.

Para muitos, a internet é uma Tecnologia da Libertação com capacidade de ampliar a participação nas deliberações políticas de interesse da sociedade e do Estado. Basta um Wi-Fi para se comunicar com qualquer ponto do planeta, pelo Facebook e o Twitter. Como a prensa de Guttenberg, a internet transformou as bases estruturais da comunicação. Apostou-se que as mídias sociais empoderariam a cidadania para transmitir notícias, exprimir opiniões, denunciar injustiças, mobilizar protestos, monitorar eleições, vigiar o governo e expandir a liberdade. Até que Donald Trump arrematou a presidência dos Estados Unidos, com a ajuda de recursos tecnológicos e estratégias para manipular as consciências com a utilização de algoritmos, robôs, trolls… Os bandidos foram espertos.

A perda de influência dos veículos informativos corporativos não levou ao empoderamento dos comuns. Para Manuel Castells, em A sociedade em rede, povos, países, continentes inteiros estão excluídos da globalização. Ao passo que onde funcionam as plataformas digitais, é o populismo de ultradireita que tira vantagem. Não demorou para que a informática parisse o monstro d’A era do capitalismo de vigilância, como caracterizou Shoshana Zuboff. Nunca se produziu tantas fake news, nem se direcionou tanto o desejo dos consumidores. “É cedo para dizer se isso vai mudar o mundo para melhor ou para pior. Mas resta pouca dúvida de que, no curto prazo – ou seja, pelo resto de nossas vidas – vai contribuir para um mundo mais caótico”, avalia com pessimismo Yascha Mounk.

2) A segunda condição aponta a elevação no padrão de vida das famílias, dada a estabilidade democrática. Ninguém julgava que os direitos na democracia pudessem sucumbir qual o império romano ou o comunismo soviético, do dia para a noite. A questão é que, hoje, as pessoas se sentem estagnadas, sem opção. Os filhos não conseguem atingir as metas dos ancestrais. Na comparação, os pais lograram progressos superiores. O neoliberalismo, a partir dos anos 1980, agravou a distância entre as classes sociais e aprofundou o fosso de ressentimentos generacionais. O sol se escondeu.

De acordo com Thomas Piketty, em 1928, o 1% mais rico concentrava entre 15% e 20% da renda em países europeus e quase 25% nos EUA. Em 1960, a distribuição da riqueza estancou de maneira considerável: na França e no Reino Unido, o 1% mais rico detinha 12% da renda. Majoritariamente a população subira vários degraus no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Eletrodomésticos invadiam os lares com geladeiras e televisores. Garagens abrigavam carros, anúncios ofertavam empregos. A igualdade avançou no critério da renda, consumo e acesso aos equipamentos urbanos (energia elétrica, escolas). Quando o crescimento global despencou, as desigualdades aumentaram.

Ocorreu uma queda vertiginosa em vastos setores. Nos EUA, de 1935 a 1960, o padrão de vida da classe média dobrou. De 1965 a 1985, voltou a dobrar. A partir de 1985, congelou num patamar. Trinta anos depois, continuou sem evoluir. A situação é angustiante para os jovens principalmente. A promessa de que o trabalho conduziria à ascensão financeira, evaporou. O ruim escorregou para o pior. A democracia deixou de ser um sinônimo de prosperidade. Os eleitores já não acreditam que o “sistema” está do lado deles. Ao contrário, o establishment afigura-se contra eles a cada manhã.

3) A terceira condição recorda que as democracias estáveis foram fundadas em nações monoétnicas ou estiveram sob domínio de um grupo étnico (branco, cristão, heterossexual). A questão é que, na atualidade, as lutas pela igualdade étnica confrontam a dominação atávica, o que carimba a sua inevitável extemporaneidade. O Reino Unido acaba de empossar um premiê não branco, Rishi Sunak, descendente de indianos. É a exceção que confirma a regra da exclusão. Como no romance de George Orwell, todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros.

Não espanta que o item “imigração” esteja no topo das preocupações, no Velho Continente. Em 2016, 71% dos dinamarqueses, 67% dos húngaros e 57% dos alemães reivindicavam esse tema com premência na conjuntura política dos Estados-membros da União Europeia. Nos EUA, no mesmo ano, para 70% do eleitorado a imigração implicava no principal mote para votar. O famoso muro de concreto, na extensão da fronteira com o México, deu a vitória ao demagogo candidato republicano. Era uma excrecência da barbárie, apenas aos olhos dos humanistas. O curioso é que a ex-colônia inglesa desde a fundação se autodefiniu como um país de imigrantes, daí exigir como prova de fidelidade o “juramento à bandeira e à república que ela representa”. A predisposição para aceitar a democracia multiétnica se resumiu aos oriundos das nações europeias. Ao Sul, são cucarachas.

A xenofobia da extrema-direita propagou ódio aos imigrantes, com prioridade, em sua identidade partidária. Na Áustria, o líder do Partido da Liberdade afiançou que “Viena não vai virar Istambul”. Na Alemanha, a AfD surfou nos temores ao clamar por “mais filhos para as famílias alemãs”. Na Dinamarca, o sentimento anti-imigração era tão flagrante que o Partido Popular criou o slogan: “Du ved, havad vi star for” / “Você sabe pelo que lutamos”. As opiniões sobre imigrantes e minorias étnicas estão relacionadas às intenções de voto que vão do Brexit (Reino Unido) a Marine Le Pen (França) ou a Viktor Orbán (Hungria) ou a Giorgia Meloni (Itália). A crise econômica achou o culpado pela decadência do nível social dos trabalhadores. Os inimigos são os estrangeiros.

Saudade dos adversários

No período extraordinário em que o trumpismo triunfou e ocupou a Casa Branca, Yascha Mounk confessa que encontrou afinidades com os antigos desafetos políticos. “Eu reconheço que nosso compromisso com a democracia liberal é muito mais profundo do que nossas discordâncias sobre políticas públicas. Minha sincera esperança é de que, em algum momento de um futuro próximo, o objetivo que nos une não seja tão urgente. Com um pouquinho de sorte, talvez cheguemos a viver o suficiente para ver períodos tão normais que possamos voltar a nos considerar adversários”.

Entre nós, para salvar a democracia do naufrágio bolsonarista, a esquerda abriu o leque à centro-direita. Há motivos: 30 milhões de cidadãos passam fome; 20 milhões vivem insegurança alimentar; o desemprego dispara; a desindustrialização se alastra; a privatização lesa-pátria do patrimônio nacional inviabiliza a regulação do Estado, na economia; as florestas padecem um desmatamento irreversível; e as instituições republicanas estão debilitadas. A destruição, em curso, justifica o arco de alianças contra a necropolítica. Porém, a classe C com renda média de R$ 4 mil por família não se sensibilizou com o apelo, e aderiu ao “capetão” para escapar do inferno. A resiliência esteve na memória dos mandatos do presidente Lula. Com o que raiou o bom senso nordestino, gracias.

As “elites” brasileiras são extrativistas, de baixa qualidade. Sua violência histórica potencializou o uso multibilionário da máquina estatal e privada para corromper o pleito. Na geografia de maior contingente de negros após a Nigéria, entre 1928 e 1938, o país teve um partido nazista com 2,9 mil filiados, atrás somente da Alemanha, sem contar os simpatizantes da superioridade eugênica. Em 2019, contabilizou centenas de células neonazistas, 99 em São Paulo (28 na capital), 69 em Santa Catarina, 66 no Paraná e 47 no Rio Grande do Sul. Os ogros respondem à chamada defronte dos quartéis, rezando por uma intervenção militar. A aporofobia (social e racial) é um preconceito incrustado na formação da nação, adoecida na irracionalidade, hostil às pretensões progressistas.

A assunção de Lula / Alckmin interrompeu a escalada do pensamento totalitário e das políticas neoliberais. Contudo, no clima da Copa, a quadrilha no poder vendeu a Refinaria de Manaus, num acinte à soberania programática das urnas. Da Petrobrás, da Amazônia e do Bolsa Família devem vir os acenos do futuro. A reconstrução exige símbolos. O desafio consiste em solidificar uma democracia com direitos, como antídoto aos retrocessos civilizacionais. Essa é a missão de um governo de transição para o Estado de Bem-Estar Social, com participação popular, no Brasil.

Luiz Marques é Docente de Ciência Política na UFRGS, ex-Secretário de Estado da Cultura no Rio Grande do Sul.

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