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Origens e Construção da DS no Rio Grande do Sul -1970 /1980 | Raul Pont – Parte I

Origens da DS no Rio Grande do Sul

O projeto de um periódico nacional – o jornal Em Tempo – iniciado no segundo semestre de 1977 foi decisivo para que um grupo de militantes socialistas no Rio Grande do Sul construísse uma relação de confiança e identidade política com outros companheiros de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro, na formação da corrente política Democracia Socialista.

A proposta de uma frente jornalística visava dar vida a um periódico que fosse além da experiência do jornal Movimento (1), no sentido de uma crítica mais radical ao regime militar. Um jornal nacional de um ponto de vista socialista e que fosse um espaço de expressão dos movimentos sociais que ressurgiam, em especial, dos trabalhadores e do movimento sindical. Esse projeto enquadrava-se plenamente na perspectiva que organizava o grupo gaúcho: articular com grupos locais e regionais, visando uma reorganização da esquerda que já rompera com o reformismo e o populismo.

Em Porto Alegre não havia uma sucursal organizada do jornal Movimento como em outros Estados. Quando algumas dessas sucursais – a partir de Minas Gerais e São Paulo – romperam com o projeto do jornal Movimento, buscaram contatos em Porto Alegre para a ideia do jornal Em Tempo. Esses contatos foram via relações pessoais e via as correntes estudantis que atuavam na Universidade: o grupo Centelha da UFMG e a corrente Peleia, na UFRGS.

O caráter de uma ampla frente jornalística, com muita democracia interna e a perspectiva de um jornal que se assumisse como socialista, numa crítica ao regime militar pela ótica da luta classista dos trabalhadores, atraiu um grande número de militantes: jornalistas, sindicalistas, estudantes, ex-presos políticos e grupos sobreviventes que haviam sido reprimidos pelo regime militar.

Quase duas centenas de apoiadores assumiram cotas de apoio e compromisso de trabalho voluntário para organizar e sustentar a sucursal gaúcha. Alguns parlamentares do MDB, jornalistas e profissionais universitários que assumiram cotas de apoio, o faziam mais como engajamento na luta democrática do que por uma identidade plena com a visão que norteava seu núcleo central organizador.

O projeto aglutinou ex-presos políticos de várias organizações dos anos 60 como o Partido Operário Comunista (POC), a Vanguarda Armada Revolucionária (VAR- Palmares), a Ação Popular Marxista Leninista (APML) e a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Mas, reuniu, também, uma nova geração que vinha do movimento estudantil e da resistência à ditadura dos anos 70, sindicalistas e um bom número de jornalistas.

O caráter voluntário, as enormes dificuldades para estabelecer relações de trabalho profissionalizado e as outras frentes que se abriam na luta pela Anistia, nos sindicatos e mesmo nos espaços do MDB, tornavam muito fluido e irregular o compromisso da maioria dos “sócios-acionistas” ao projeto do periódico nacional Em Tempo.

Nossa organização já atuava junto há alguns anos, a partir de um pequeno grupo de militantes. Alguns vinham das experiências dos anos 60 e a maioria de uma nova geração da juventude estudantil dos anos 70. Mantínhamos uma organização discreta, clandestina, como a conjuntura exigia, com mais rigor de disciplina e dedicação e atuávamos como frentes e/ou correntes de opinião. Na Universidade, primeiro como Nova Proposta e depois Peleia. No meio secundarista, no final da década, com a corrente Alternativa. No MDB, em seu Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (IEPES), espaço de debates e formulação programática bastante autônoma em relação ao Partido e sua direção.

Na Universidade, a corrente obteve vitórias eleitorais nos DAs e CAs, chegando a vencer a disputa do DCE-UFRGS. No IEPES abria-se um espaço para quem saía da Universidade ou já trabalhava. Esse trabalho permitiu o crescimento do grupo e a abrangência política da nossa ação.

A eleição de 1974, primeira grande derrota eleitoral da ditadura e seu partido, a ARENA, nos mostrou que a política do voto nulo chamada em 68 e 72 para denunciar a ditadura e o bipartidarismo imposto estava superada. O voto, em 1974, contra a ARENA e o governo militar cresceu muito e no RS o MDB tornou-se maioria. Foi um plebiscito contra o regime.

Várias candidaturas de jovens recém egressos da Universidade e/ou vereadores jovens de cidades do interior foram bem votados e alguns se elegeram. Setores trabalhistas reorganizavam-se no MDB e era evidente que esses espaços precisavam ser ocupados. Em 1976, à Câmara Municipal de Porto Alegre elegeram-se, pela esquerda, Glênio Peres, Marcos Klassman e Antonio Cândido Ferreira, o popular e politizado engraxate “Bagé”.

Através do Setor Jovem e em conjunto com companheiros da Corrente Popular que atuava no MDB, a eleição de Klassman teve um forte componente oposicionista. Com a campanha “VOTE CONTRA O GOVERNO” houve uma atração de jovens e setores de esquerda que se engajaram na vitória. Glênio e Marcos foram cassados no primeiro mês do mandato, mas o caminho estava aberto.

A partir daí passamos a atuar organicamente no Setor Jovem do MDB. E, em 1978, já tínhamos uma Tendência Socialista (TS) no partido, com adesões em várias cidades do interior.

Com isso, ampliavam-se contatos e relações com o movimento sindical, com servidores públicos que lutavam pelo direito à sindicalização e com o movimento universitário e secundarista em grande ebulição na segunda metade dos anos 70, que culminou com a reorganização da UNE. Para isso, ajudou muito a iniciativa dos encontros estudantis por áreas de estudos para driblar a repressão e as reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) onde ocorriam reuniões e debates paralelos aos eventos.

Em 1978, tivemos a incorporação do deputado Américo Copetti na Tendência Socialista e trabalhamos para sua reeleição, o que ampliou o espaço no interior do MDB e a Tendência Socialista consolidou-se como uma referência de organização e programa de luta. Crescia o número de militantes e novos espaços de atuação se abriam.

Víamos no MDB um espaço a ser ocupado e onde se podiam combinar atividades massivas, trabalhar junto com seus setores mais combativos e até lançar candidatos para postos que pudessem ampliar a luta contra a ditadura. Por seu caráter de ampla frente de resistência democrática, não tínhamos ilusões de que o MDB viesse a ocupar um papel de força revolucionária e transformadora em um novo momento de reorganização partidária. Nem mesmo uma ilusão de que aquela frente política de oposição à ditadura viesse a se consolidar como um Partido, com coesão programática e de longo prazo.

O programa da TS para as eleições de 1978, uma espécie de Plataforma Política, usada na campanha, já afirmava distinções claras em relação ao MDB e, em seu primeiro item, na luta por liberdades democráticas já aparecia a proposta “por um partido dos trabalhadores”. (2) Assim, como a campanha de 76, a eleição de Américo Copetti para Assembleia Legislativa e o voto indicativo para deputados federais combativos, possibilitou a ampliação de contatos no Estado e uma ousada propaganda programática que ia além do MDB.

Para nosso grupo, o projeto de um periódico nacional era a grande possibilidade de “sair da província”, de acompanhar o debate e a reorganização da esquerda brasileira; acompanhar o que ocorria no eixo Rio – São Paulo, retomar contatos perdidos e socializar as novas experiências que estávamos vivendo na resistência ao regime militar.

O Instituto de Estudos Políticos, Econômicos e Sociais (IEPES) e o Setor Jovem promoviam, regularmente, conferências e palestras com intelectuais, professores e dirigentes políticos que lotavam o plenário e o auditório Dante Barone, da Assembleia Legislativa.

Quase todos os pesquisadores e membros do Centro Brasileiro de Análise e Pesquisa (CEBRAP) estiveram em Porto Alegre, ao longo da década de 70, tratando dos mais variados temas. Das pessoas e grupos que assumiram o projeto Em Tempo em Porto Alegre, nossa corrente jogou-se de corpo e alma para viabilizar a sucursal, manter rede de apoio, estabelecer formas de distribuição em bancas e venda de assinaturas, bem como, uma ampla venda direta em escolas, universidades, cinemas, gabinetes parlamentares e sindicatos. Essa tarefa era sustentada por dezenas de militantes que assumiam, voluntariamente, a divulgação do jornal. A venda de cotas de participação e apoio alcançou quase duas centenas de profissionais universitários, jornalistas, parlamentares, professores e estudantes. Isso não seria possível sem o espaço que conquistamos na luta institucional, num momento em que a ditadura ainda manejava toda a máquina repressiva e contava com a conivência do judiciário.

Nas origens da DS-RS, as esquerdas dos anos 1960-70

O caráter de frente jornalística transformava o Em Tempo e suas sucursais numa permanente disputa de espaço, de orientação política editorial e isso tornava difícil e complexa a sustentação do projeto. Mas era uma experiência riquíssima, pois o jornal, desde seus primeiros números, incorporava as questões de gênero, raça, de livre orientação sexual, da cultura, com a mesma importância dos editoriais e das matérias de política nacional e internacional.

Tínhamos plena consciência de que o projeto era decisivo para nosso futuro político. Éramos um grupo sem nome, sabíamos que isolados numa Capital, num Estado, seria um equívoco nos autointitularmos de partido, mas tínhamos consciência de que o projeto do jornal seria um instrumento importantíssimo para a reconstrução de uma força política nacional que assumisse a bandeira do socialismo e incorporasse as críticas e experiências vividas nos anos 60.

Acreditávamos que nossa organização precisava ser rigorosa, disciplinada, voluntária, consciente, mas, que seríamos parte de um movimento que se reconstruía no país, em muitas cidades e Estados, bem como sabíamos que, mais cedo ou mais tarde, contaríamos com companheiros que saíam das prisões ou que resistiam e se reorganizavam no exílio. As lutas e mobilizações pela Anistia estavam sempre presentes nas manifestações estudantis, nas campanhas eleitorais e na reorganização das entidades sindicais e populares.

Apesar da juventude e pouca experiência da maioria dos integrantes do nosso grupo e das dificuldades impostas pelo regime militar, dedicávamos um bom tempo da nossa militância para a leitura e o conhecimento da história da esquerda brasileira. Estudávamos e discutíamos a revisão teórica e programática vivida nos anos 60 tanto no campo das organizações tradicionais da esquerda como os limites e as insuficiências da experiência do populismo nacionalista vividas no Brasil e na América Latina.

Acompanhávamos, com as dificuldades da época e do regime repressivo, as tentativas dos exilados na busca de um trabalho comum e na produção teórica de aproximação de experiências organizativas como da revista Brasil Socialista e da publicação Quarta Internacional, produzidas fora do Brasil, mas que traziam o debate dos companheiros exilados. (3) Considerávamo-nos herdeiros de uma vertente socialista que nos anos 60 – mesmo antes do golpe militar de 64- já se opunha ao projeto de aliança de classes e de defesa de uma etapa democrática-burguesa e anti-imperialista que os Partidos Comunistas defendiam como uma estratégia etapista e necessária da revolução brasileira.

Alguns de nós haviam enfrentado a luta interna no PCB nos anos 65 e 66 em torno dessa estratégia, da concepção stalinista da construção partidária e da interpretação sobre o significado e as consequências do golpe cívico-militar de 1964 na história brasileira.

Recolhíamos da experiência da Organização Revolucionária Marxista – Político Operária (ORM-PO) a concepção do caráter socialista da revolução brasileira, a crítica ao stalinismo e a tarefa central dos socialistas, que era construir um partido de trabalhadores com independência de classe, programática e ideologicamente.

Essa experiência da ORM-PO,inclusive, dera origem ao Partido Operário Comunista, em 1968, através da fusão da ORM-PO e da Dissidência Leninista do RS, grupo formado por militantes do PCB que romperam com o Partidão em função das teses para o VI Congresso do PCB que, basicamente, mantinham as posições de atrelamento aos “setores progressistas da burguesia” e ao stalinismo vigente na construção partidária,sem democracia interna. Era um partido verticalizado sob comando de um comitê Central e seu todo – poderoso secretário-geral, subordinados à burocracia soviética e a uma concepção etapista da revolução brasileira.

O novo partido viveu todos os problemas da clandestinidade numa ditadura militar e, também, seus próprios limites. O POC herdou da ORM-PO também alguns de seus equívocos e insuficiências teóricas. Em especial, a visão doutrinária, meramente propagandista, a concepção de que bastava a estratégia correta para que as adesões e o crescimento ocorressem. Isso já foi frustrado na incapacidade de dialogar e incorporar no processo de fusão outras dissidências que ocorriam no Partidão nesse período, em especial, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A simples propaganda e a doutrinação socialistas não organizavam movimentos massivos, não dialogavam com outras forças e não respondiam problemas como a questão democrática, sem cair na rendição programática e ideológica das alianças com partidos burgueses.

A essa influência teórico – programática agregamos a experiência prática, concreta, de uma nova geração da vanguarda estudantil dos anos 70, que não vivera tão intensamente o golpe militar, mas possuía uma grande disposição de resistência e uma enorme abertura para o repensar autocrítico da esquerda brasileira.

Buscava-se entender a trágica derrota do Che na Bolívia, os desdobramentos do Maio de 68 na França, desde as transformações existenciais e ideológicas que este movimento significou para uma geração e para a esquerda mundial e, também, as novas formas de resistência e luta contra o regime militar.

A rápida urbanização e industrialização vivida no país transformavam a velha estrutura agrária, rural e com forte tradição na família patriarcal em algo do passado. As questões de gênero eram assumidas por movimentos feministas radicalizados. O combate à discriminação racial incorporava-se, lentamente, na luta política. As condições de vida em grandes metrópoles criavam novos conflitos de moradia, transporte e serviços públicos. Uma nova cultura urbana muito mais permeável ao debate, à informação e à participação anulava e se contrapunha à cultura do medo e da atomização das pessoas, desejada pela ditadura para impedir o surgimento e/ou reorganização dos movimentos sociais.

Trazíamos uma forte influência do caráter doutrinário da esquerda revolucionária do final dos anos 60 que não assumiu uma concepção “foquista” ou de “guerra popular prolongada no campo”. Tínhamos, também, uma avaliação crítica do vanguardismo de alguns grupos que propunham esses objetivos, mas que não foram além de ações de expropriações, montagem de aparatos clandestinos ou de simples propaganda armada, nas ações realizadas.

O golpe militar no Chile (1973) e o assassinato de Salvador Allende em pleno palácio presidencial e, logo depois, a traumática repressão e um novo golpe militar na Argentina em 1976, foram situações que despertaram um profundo debate entre nós. Traziam o desafio de como organizar e travar a luta democrática em condições tão adversas e nessas claras demonstrações do caráter autoritário e golpista das classes dominantes na América Latina.

A experiência da luta ideológica na Universidade, da contestação da escola como aparelho de reprodução ideológica da sociedade capitalista, marcou muito nossa militância que defendia as lutas gerais por mais verbas, mais vagas, melhores condições de ensino e o genérico “abaixo a ditadura” eram insuficientes para uma estratégia de transformação.

Havia que agregar o componente ideológico anticapitalista para uma contestação mais profunda ao regime militar. Essa prática contestatória, de luta ideológica, despertava uma ávida curiosidade cultural para outros campos que não apenas da filosofia, da economia ou da política. Ser de esquerda era estar junto com os que resistiam no teatro, na música de protesto ou tentavam fazer cinema do seu cotidiano existencial. As experiências nos centros acadêmicos e diretórios centrais onde a Nova Proposta participava eram sempre marcadas por publicações, jornais, textos que polemizavam, além das reivindicações específicas, na direção da disputa e formação ideológica anticapitalista. Era uma das razões que nos distinguiam de outras correntes estudantis.

A luta por liberdade contra o regime militar pressupunha um debate livre, sem dogmas, sobre o fazer político. Tínhamos convicção que a luta cultural no campo das artes, do teatro, do cinema, constituíam-se, também, em elementos politizadores. Fazer o enfrentamento ideológico nas salas de aula, fazer a disputa de interpretações da História, da Economia, era fator de politização e engajamento de estudantes que nem sempre estavam disponíveis para as ações de rua e de enfrentamento à repressão. A prática de produzir cadernos, revistas e até a reprodução de livros mimeografados não ficava apenas nos diretórios acadêmicos. O Setor Jovem do MDB publicava o caderno Textos e Debates, a Tendência Socialista fez o caderno Crítica e chegou a editar vários números do jornal Tchè, como porta-voz público.

Certamente, isso estava relacionado com a vaga de rebeldia e contestação que o Maio francês, a Primavera de Praga e a recusa da juventude norte-americana de ir morrer no Vietnã expressavam nesse período. O processo desigual dessa onda não sofreu na América Latina o corte abrupto da reação gaullista na França ou dos tanques soviéticos na Checoslováquia. A inspiração e as influências foram mais longe, em vários lugares do mundo, inclusive, na América Latina.

Raul Pont é militante político, fundador da DS e do PT.

(1) O Jornal Movimento, um dos mais importantes jornais da imprensa alternativa dos anos 70, editado pelo jornalista Raimundo Rodrigues Pereira, por sua vez ,nascera também de um afastamento do editor do jornal Opinião, criado em 1972 num projeto de Fernando Henrique Cardoso e Fernando Gasparian.
(2) Plataforma Eleitoral da Tendência Socialista. No item 1, a luta por liberdades democráticas, na letra g, por um partido dos trabalhadores. Cartaz – manifesto editado pela TS, nas eleições de 1978. O jornal ET n°2, fevereiro de 1978, publicou matéria sobre o lançamento da TS através do presidente do Setor Jovem Metropolitano do MDB, José Carlos de Oliveira.
(3) A revista Brasil Socialista, editada na Europa e que buscava um enlace de exilados da POLOP, do MR-8 e da APML, e a Revista Quarta Internacional, editada na Argentina por um grupo onde atuavam exilados no POC, nos anos 72/74.

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