É preciso superar a subordinação negociada com o sistema de
poder neoliberal, expressa no chamado Novo Arcabouço Fiscal,
para realizar o programa eleito pelo governo Lula e atender aos anseios
majoritários da população.
JUAREZ GUIMARÃES é professor de Ciência
Política da UFMG. Doutor em Ciências
Sociais pela Unicamp. Autor, entre outros
livros, de Democracia e marxismo: Crítica à
razão liberal (Xamã). É membro da
Coordenação Nacional da DS.
MARILANE TEIXEIRA é economista, doutora
em Economia pela Unicamp, professora e
pesquisadora do CESIT/IEUnicamp,
assessora sindical e estudiosa das relações
econômicas e do trabalho. É membro da
Coordenação Nacional da DS.
Há uma convergência de pesquisas de opinião de vários institutos
– Quaest, IPEC, DataFolha, Atlas, CNT/MDA – indicando que desde o
início do segundo semestre de 2023 há uma tendência decrescente
da popularidade do governo Lula. Esta tendência teria alcançado
segundo estes institutos um ponto crítico nestes últimos dois meses.
Os que avaliam o governo como ótimo/bom empatam em
proporção com os que avaliam o governo como péssimo/ruim. Estes
índices seguem um padrão já conhecido nas eleições de 2022: a
aprovação do trabalho do presidente Lula é majoritária apenas no
Nordeste e minoritária em todas as outras regiões; é majoritária
entre mulheres, negros e pardos, católicos, entre os que recebem
até dois salários-mínimos; a desaprovação é majoritária entre
homens, brancos, à medida em que cresce a renda.
Na pesquisa Quaest, indagam-se as razões do descontentamento
com o governo. 49% dos entrevistados avaliam que o governo está
na direção errada contra 41% que afirmam o contrário. 38% contra
27% julgam que a economia piorou. Entre os principais problemas,
23% citam a economia, 19% a saúde, 17% a segurança pública. A
Pesquisa IPEC feita em 4 de abril revela uma insatisfação sobre
temas fundamentais. No combate ao desemprego, 40% de
ruim/péssimo contra 26% de ótimo/bom; em relação à inflação,
45% de ruim/péssimo contra 26% de ótimo/bom; na saúde, 42% de
ruim/péssimo e 28% de ótimo/bom. Na educação e no combate à
fome, a avaliação do governo se apresenta melhor, com índices
superiores ou em empate técnico de avaliação positiva.
Na pesquisa Quaest de abril, 63% avaliam contra 32% que Lula
não está cumprindo as suas promessas de campanha no governo.
Entre os que nele votaram, 71% repetiriam o voto e 19% avaliam
que fizeram a escolha errada. Em uma nova pesquisa Quaest
realizada entre 2 e 6 de maio, 55% avaliam que o governo Lula não
deveria ter uma nova chance em 2026 contra 42% que seriam
favoráveis à sua reeleição. Dos que votaram em Lula no segundo
turno das eleições de 2022, 74% repetiriam o voto e 23% não (quase
¼ em eleições que foram decididas por uma pequena margem).
Estas pesquisas indicam que há um perigoso processo de erosão
da esperança construída nos anos de resistência aos governos
Temer e Bolsonaro e que alcançou uma decisiva, mas ainda frágil
maioria nas eleições presidenciais de 2022. De modo evidente, o go-
verno Lula não vem consolidando e muito menos alargando uma
maioria de apoio contra a extrema direita neoliberal.
Este processo de erosão pode se cristalizar em uma dramática
ruptura nos próximos meses, criando um cenário profundamente
negativo para as candidaturas de esquerda ou de centro-esquerda
nas disputas municipais das capitais e dos principais centros urbanos
do país, comprometendo o futuro do próprio governo. Pode também,
é claro, ser revertido a partir de novas iniciativas e estratégias do
governo Lula, que o aproximem, apesar dos constrangimentos
neoliberais, do programa eleito em 2022.
A popularidade é a âncora fundamental de resistência e o principal
ativo de um governo antineoliberal. Se ele a perde, torna-se cada vez
mais refém das instituições e regulações neoliberais, preparando-se o
caminho para a ascensão da extrema direita. Por que houve esta
grave tendência à queda de popularidade do governo Lula?
A hipótese que quase sempre é levantada em primeiro lugar é
que o governo se comunica mal ou de maneira insuficiente. Decerto,
o governo está diante de duas poderosas redes inimigas e
adversárias: aquela formada pelo bolsonarismo, com o apoio direto
da extrema direita norte-americana, e aquela das grandes empresas
de comunicação, empenhadas em um assédio neoliberal permanente
às ações do governo. Diante delas, é evidente a deficiência
comunicativa estrutural do governo e das esquerdas brasileiras, que
ainda não encontrou um caminho de solução. Por esta hipótese, as
boas iniciativas do governo nas políticas públicas e na própria
condução macroeconômica teriam seus efeitos amortecidos ou
neutralizados pela contra-propaganda inimiga e adversária.
As teorias da comunicação mais inteligentes e referenciais
indicam que uma pessoa forma sua opinião recebendo a notícia e
opinião, conversando sobre elas em suas redes de socialização e
contrastando-a com o vivido em sua realidade. A formação do que
tem se chamado de um ecossistema de manipulação e de fake-news
certamente enviesa fortemente este processo. O núcleo dos
bolsonaristas mais fanáticos continuaria com uma avaliação
negativa do governo Lula mesmo se este lhe oferecesse um céu. Mas
uma parcela importante dos que votaram em Bolsonaro, uma larga
faixa de pessoas que não estão polarizadas e uma parte importante
dos que votaram em Lula formam suas opiniões sobre o governo
com a referência fundamental na experiência real da vida. E estas
pessoas estão formulando uma avaliação negativa ou não positiva
do governo Lula.
Em suma: embora seja uma questão muito influente e que age
negativamente, a capacidade comunicativa deficiente do governo
não explica a dinâmica principal do processo de perda de
popularidade do governo Lula entre aqueles que não compõem o
núcleo duro do bolsonarismo.
Uma segunda hipótese, levantada por setores da esquerda
petista, é que o governo não responde à polarização permanente da
extrema direita, preferindo sempre o caminho da conciliação. Teria
sido assim com a cúpula militar depois da tentativa de golpe do 8 de
janeiro de 2023, no encaminhamento do acordo com o capital
financeiro na conformação do chamado Novo Arcabouço Fiscal, nas
negociações feitas com o mal chamado “Centrão”, nas relações com
o grande agronegócio, com os evangélicos conservadores e com o
próprio bolsonarismo, evitando o apelo a manifestações de rua
contra a extrema direita.Esta preferência pelo caminho institucio-
nal e negociado pragmaticamente caso a caso, retiraria o chão para
a mobilização dos movimentos sociais, conformados a apoiar o
governo. Este seria outro ativo fundamental de um governo
antineoliberal: a mobilização social, participativa, no enfrentamento dos
valores da extrema direita neoliberal.Está bem nítido neste ano que
a extrema direita ocupou as ruas nos primeiros meses do ano de
forma muito mais importante e simbolicamente afirmativa que as
esquerdas brasileiras.
Não há como negar o que há de verdade fundamental nesta
segunda hipótese. Mas há de se reconhecer em seguida que a
agenda do governo Lula, sempre negociada em um ambiente
institucional hostil ou adverso, não propicia a organização de
campanhas nacionais massivas em apoio a elas. De novo, é a vida
real das pessoas e principalmente as situações muito adversas
vividas ainda pelas classes trabalhadoras que deve se consultar.
As agendas de políticas públicas e de iniciativas gerais do governo
até agora são uma resposta suficiente para responder às
necessidades urgentes das pessoas? A resposta é que não. Diante de
uma situação difícil, mas não aguda, pode-se propor um caminho
gradual e processual que vá construindo ao longo de uma série de
anos respostas para aquelas pessoas que vivem carências
fundamentais. O próprio sentido da resposta vai sendo
gradualmente construído, passo a passo, na medida em que as
respostas vão criando novas possibilidades. Mas esta não é a
situação vivida pelo Brasil após um impasse profundo dos governos
democrático populares, que estava já evidente em 2014, tornou-se
crise aberta em 2015 e 2016, agravou-se profundamente durante o
desgoverno Temer e alcançou um padrão calamitoso durante o
governo de destruição de Bolsonaro.
Após a grande tragédia do Rio Grande do Sul, a consciência
ecológica dos brasileiros já não é mais a mesma. O Brasil vive uma
experiência particular de predação da natureza em meio à grave
crise ecológica mundial: uma economia periférica de predação
(produção de grãos, carnes e minérios de exportação), com padrões
baixíssimos de regulação e com todos os seus biomas fundamentais
sob pressão destrutiva. É certo que virão novos fenômenos
climáticos extremos com vasto grau de destruição. Não seria
emergencial um grande programa de intervenção público de
prevenção, dotado de vultosos investimentos públicos e com uma
articulação ministerial e federativa?
Após a criminosa tragédia vivida na pandemia da Covid, com
mais de setecentos mil mortos, diante do governo mais negacionista
do mundo e com a militarização e desmonte do Ministério da
Saúde, desde sempre com grave insuficiência de aporte de recursos
pelo governo federal, pode-se pensar uma gestão normalizada do
SUS como se nada houvesse acontecido? A epidemia da dengue
bateu recorde nestes anos com mais de 400 mil brasileiros
infectados, gerando inclusive mortes evitáveis. Como enfrentar
demandas represadas de consultas e operações, precarizações do
trabalho em saúde, vazios sanitários que geram enorme custo
social, sem um plano emergencial de investimentos e programas
estruturais de construção do SUS?
Não se pode subestimar, sobretudo, a grave crise social vivida
pelas classes trabalhadoras no Brasil. Se o impasse vem mais
claramente desde 2014, quando houve praticamente uma
estagnação econômica (aumento de 0,5% do PIB), os anos seguintes
agravaram profundamente as dinâmicas de desemprego e
precarização. Há um contexto estrutural de diminuição da abragên-
cia dos direitos do trabalho em relação à população que se encontra
na força de trabalho, uma dinâmica econômica de permanente
pressão pela precarização em meio a uma regulação crescentemente
neoliberal do mundo do trabalho e sindical.
Sem direitos do trabalho nunca se construiu uma base estável
para um regime democrático. O terceiro governo Lula está diante de
um impasse histórico: este não pode ser superado por uma dinâmica
resultante de um crescimento econômico baixo em meio a uma
economia profundamente financeirizada. De novo: seria necessário
um programa emergencial e histórico de reconstrução dos direitos
das classes trabalhadoras a partir de políticas públicas de emprego e
de forte elevação do salário mínimo.
Em síntese: há um erro fatal de diagnóstico na estratégia de um
governo que pensa em resolver, de modo negociado, gradual e
processualmente, uma crise social, ecológica e sanitária que têm um
caráter dramático e emergencial.E na dura lida da vida cotidiana dos
brasileiros, a esperança vai se desfibrando.
De acordo com os resultados recentes de três pesquisas de
opinião – o Instituto França (11/2023)¹, Datafolha (12/2023) e o
Instituto IPEC (4/2024) – o tema do desemprego aparece com
destaque entre os principais problemas do Brasil e objeto de
avaliação negativa do governo. Na primeira, os principais problemas
mencionados de forma espontânea pelos entrevistados, a saúde
pública lidera com 19,9% das menções, seguido pelo
desemprego/subemprego com 12,5% das menções. Na pesquisa da
Datafolha de dezembro de 2023, o tema do desemprego ocupa a
quarta posição com 7% de menções. Na comparação com a pesquisa
anterior, caiu levemente: em setembro do mesmo ano havia
registrado 9%. Para a mesma pesquisa, o combate ao desemprego
no governo Lula é visto como ótimo ou bom por 26%, enquanto 41%
consideram ruim ou péssimo e 33% regular². Para o Instituto IPEC, a
atuação do governo Lula no combate ao desemprego é considerada
regular, ruim ou péssimo para 70% das pessoas entrevistadas,
levemente superior para mulheres e jovens de até 24 anos,
justamente um segmento que concentra as maiores taxas de
desemprego.
2.Disponível em: https://www.jota.info/executivo
/governo-lula-e-aprovado-por49-e-reprovado-por-41-diz
pesquisa-instituto-franca20112023?non-beta=1.
Desde o início do terceiro mandato do presidente Lula, as
expectativas sobre as mudanças no nível e estrutura do emprego
passaram a se apoiar fortemente na retomada da atividade
econômica. Contudo, as evidências vêm demonstrando que, ainda
que persista uma forte tendência de geração de postos de trabalho,
eles são insuficientes diante de um mercado de trabalho altamente
desestruturado e desigual. As condições gerais do trabalho se
alteraram de forma absolutamente desfavorável nesta última
década. Ampliou-se sobremaneira a participação de múltiplas
formas de trabalho precário, marcadas pela ausência de vínculos,
contratos em tempo parcial, contratos intermitentes, pejotização,
liberação da terceirização irrestrita, trabalho por conta própria,
autônomo, potencializados pela reforma trabalhista e pela forte
presença de trabalho organizado e controlado por empresas em
plataformas digitais.
A desocupação é um desafio em todo o território nacional,
embora se concentre nas regiões Nordeste e Sudeste pela sua
dimensão populacional. Em torno de 76% das pessoas
desempregadas vivem nestas duas regiões. . A taxa de desocupação
de 7,9% no 1º trimestre de 2024, não reflete a realidade de vários
estados brasileiros, cujas taxas estão acima de dois dígitos,
evidenciando as desigualdades regionais, considerando que as
maiores taxas estão concentradas nos estados da região Nordeste e
Norte.
Ao longo da última década, a desocupação passou de 7,1 milhões
em 2012, menor patamar no governo Dilma, para 13,4 milhões em
2017, 12,8 milhões em 2019 e 10,0 milhões em 2022, reduzindo-se
para 8,6 milhões em 2023 e se estabilizando no 1º trimestre de 2024.
Ainda assim, seguimos com um nível de desocupação acima de 2012
em 1,5 milhão e uma taxa 0,5% superior. A taxa atual de desemprego
é de 7,9%. Os dados também revelam que as pessoas sem ocupação
são mulheres negras, com índices mais altos de desemprego em
11,7% e jovens. 35,7% das pessoas desocupadas estão na faixa etária
entre 14 e 24 anos; 91,7% se concentram em áreas urbanas e têm
baixa escolaridade. O tempo na busca por trabalho também é mais
desigual entre as mulheres, 24% das mulheres brancas e 27% das
mulheres negras se encontravam a mais de 2 anos sem conseguir
trabalho.
Dois aspectos dessa realidade precisam ser evidenciados. O
primeiro diz respeito ao número expressivo de pessoas que
abandonaram a busca por trabalho revelado pelos dados referentes
à Força de Trabalho Potencial³ que se ampliou de 5,6 milhões em
2012 para 6,9 milhões no 1º trimestre de 2024. O segundo refere-se
ao desalento, condição em que as pessoas desistiram de buscar
trabalho: cresceu 91%, de 1,9 milhões para 3,6 milhões, entre 2012 e
- Portanto, se considerarmos a força de trabalho potencial mais
os desalentados, o número de pessoas desempregadas dobraria,
uma vez que são 10,5 milhões de pessoas que se encontram nestas
duas condições. Entre aquelas na condição de desalentadas, 74,7%
são compostas por pessoas negras. - A força de trabalho potencial
é definida como o conjunto de
pessoas de 14 anos ou mais de
idade que não estavam
ocupadas nem desocupadas na
semana de referência, mas que
possuíam um potencial de se
transformarem em força de
trabalho. Este contingente é
formado por dois grupos:I.
pessoas que realizaram busca
efetiva por trabalho, mas não se
encontravam disponíveis para
trabalhar na semana de
referência;II. pessoas que não
realizaram busca efetiva por
trabalho, mas gostariam de ter
um trabalho e estavam
disponíveis para trabalhar na
semana de referência.
E para as pessoas que conseguiram se inserir no mundo do
trabalho, destaca-se a subocupação, o assalariamento sem carteira
e o trabalho por conta própria. A subocupação por insuficiência de
horas trabalhadas⁴ é uma condição em que os indivíduos gostariam
de trabalhar mais horas do que efetivamente estão realizando: são
5,2 milhões nestas condições, de acordo com os dados do 1º
trimestre de 2024. A hipótese e de que os setores mais vulneráveis
(jovens, menor escolaridade e das regiões com mercado de trabalho
menos organizado) são os que se encontram em faixas mais
extremas de tempo dedicado ao trabalho, por estarem em
atividades por conta própria e na subocupação por horas
insuficientes. 49,9% das pessoas declaradas como subocupadas
recebiam até ½ salário mínimo.
O trabalho por conta própria representa 25% do total de pessoas
ocupadas (25,4 milhões) e 66,4% não contribuem para a
previdência social. Se considerarmos apenas os que estão fora do
sistema de proteção social, são 16,8 milhões por conta própria, 13,4
milhões de assalariados sem carteira, 4,4 milhões de empregadas
domésticas sem carteira e 1,4 milhões que trabalham em auxílio as
famílias. No total, são 36,1 milhões, ou seja, 36% do total de
pessoas ocupadas. Mas se incluirmos as pessoas que estão
desocupadas, subocupadas, em desalento ou na Força de Trabalho
Potencial teremos 52,2 milhões de pessoas que se encontram com
algum grau de vulnerabilidade ou de precariedade.
O desmonte nos direitos do trabalho com a aprovação da reforma
trabalhista e a ampliação da terceirização em 2017 aprofundou
ainda mais o nosso já frágil mercado de trabalho e a sua reversão
pressupõe reduzir a pressão sobre o elevado número de pessoas
que compõem o exército de reserva.Essas formas atípicas podem - São as pessoas ocupadas na
semana de referência que
trabalhavam habitualmente
menos de 40 horas e gostariam
de trabalhar mais horas que as
habitualmente trabalhadas, ou
seja, com disponibilidade para
trabalhar mais horas no período
de trinta dias a partir do início da
semana de referência.
ser contidas desde que haja um vigoroso programa de geração de
ocupações por parte do Estado.
Outro aspecto igualmente importante diz respeito a distribuição
dos rendimentos. Conforme os dados do IBGE, em 2023, os 10% da
população brasileira com maiores rendimentos domiciliares per
capita tiveram renda 14,4 vezes superior aos 40% da população com
menores rendimentos. Essa diferença é a menor já registrada pela
PNAD contínua. O 1% da população com maior rendimento recebe
39,2 vezes mais em relação aos 40% de menor renda. Em 2019, a
diferença era de 48,9 vezes⁵. Os fatores que ajudam a explicar essas
diferenças mais favoráveis para redução das diferenças estão
associados à ampliação do valor do bolsa família, à redução do
desemprego e à valorização do salário mínimo. Ainda que estes
resultados sinalizem melhoras na distribuição dos rendimentos,
seguimos como um dos mais países mais desiguais do mundo. Em
2023, 57,9% das pessoas viviam em domicílios cuja renda per capita
domiciliar era de até 1 salário mínimo.
Entre a esperança dos brasileiros e uma nítida dinâmica de sua
realização está o sistema de poder do neoliberalismo, herdado das
últimas décadas e dramaticamente aprofundado nosgovernos Temer
e Bolsonaro, que impõe uma dinâmica de financeirização da
economia. Esta é definida como um processo de acumulação
capitalista orientada para os ganhos financeiros improdutivos, que
reforça os laços coloniais de subordinação histórica-estrutural do
país, subordina em redes toda a economia e a própria ação do
Estado à sua lógica. - Disponível em:
https://agenciabrasil.ebc.com.b
r/economia/noticia/2024-
04/renda-dos-10-mais-ricos-e144-vezes-superior-dos-40-
mais-pobres.
NEGOCIAÇÃO SUBORDINADA AO
NEOLIBERALISMO
O que isto significa na prática? Para 2024, o pagamento de juros
da dívida pública está previsto em 740 bilhões, ou seja, 6,9 % do
PIB. É mais do que o triplo dos investimentos em saúde pelo
governo federal, cerca de nove vezes o investimento federal em
educação, mais de sete vezes o gasto do governo Lula com
infraestrutura. A financeirização afeta gravemente o consumo das
famílias, já que a taxa média de credito pessoal em 2022 era de
cerca de 30 % ao ano. E os investimentos empresariais, que diante
do alto custo são desincentivados em prol da aplicação rentista em
títulos de valor pré-fixado. De acordo com cálculos do professor
Ladislau Dowbor, 82 % do estoque da dívida pública de 7 trilhões de
reais são o resultado da dinâmica de juros sobre juros e não de
gastos diretos do Estado.
Ora, esta dinâmica de financeirização impede o enfrentamento
profundo e estrutural do desemprego e precarização do trabalho, a
recuperação dos salários e o investimento necessários e
incontornáveis nas políticas sociais, além de incentivar cada vez
mais a concentração de renda.Em suma, impede a reconstrução das
bases sociais da democracia no país.
Uma excelente plataforma para pensar este impasse, de um ponto
de vista histórico e estrutural, está na reflexão da economista Leda
Paulani em um longo ensaio “Caminhando sob gelo fino – O Novo
Arcabouço Fiscal e seus antecedentes”, escrito em maio deste ano.
Ele visa explicar por que o Brasil sem dívida líquida externa e com
vastas reservas em dólar, sem a injunção do FMI, com uma dívida
interna relativamente baixa se comparada internacionalmente,
persistia na aplicação de políticas macroeconômicas neoliberais,
praticando juros exorbitantes e a mal chamada austeridade fiscal.
A resposta que constrói é histórica e remonta a 1980, com a
chegada de Reagan ao governo dos EUA, e a súbita e radical elevação
da taxa de juros dos EUA, que levou à crise das dívidas externas em
países endividados a juros flutuantes, como o Brasil. A partir daí, no
governo Fernando Henrique Cardoso foram-se construindo novas
regulações, leis e dinâmicas institucionalizadas que, de fato,
significavam a cristalização de uma estrutura de poder de
financeirização da economia, tendo como centro agora a dívida
pública. Os governos Lula, mesmo após 2006, operaram nas brechas
existentes, explorando uma conjuntura favorável à exportação de
commodities, mas “sem mexer nos marcos legais, institucionais e
socioeconômicos que davam protagonismo à riqueza e aos interesses
financeiros”. Houve um importante momento, como resposta à crise
financeira internacional de 2008, no qual se iniciou um processo de
saída desta dinâmica mas ela não se consolidou. Os governos Dilma
se instalaram em meio a esta limitação institucional estrutural, já
diante de uma conjuntura econômica internacional adversa, tendo
uma dinâmica irregular e em desequilíbrio, terminando por ceder,
no início de seu segundo mandato, o próprio Ministério da Fazenda a
uma governança abertamente neoliberal.
Esta herança institucional neoliberal teria sido aprofundada com
as leis anti-trabalhistas aprovadas durante o governo Temer, que
levaram à generalização dos processos de terceirização e
precarização, e a mal chamada autonomia do Banco Central,
aprovada no governo Bolsonaro, que retirou do controle soberano
do presidente eleito a escolha da direção daquela instituição
inteiramente hoje capturada pelos grandes bancos e financistas.
Neste contexto, o Novo Arcabouço Fiscal seria uma espécie de
escolha pragmática, fortemente circunstanciada pela existência da
EC-95 (que impedia novos investimentos públicos e sociais
constitucionalmente por um longo período) e por um Congresso
Nacional, fortemente conservador e neoliberal. Ele seria menos um
ato soberano de uma vontade e mais uma decisão fortemente
constrita e que exporia o terceiro governo Lula a um passo
fortemente limitado e sob risco permanente.
Pode-se e deve-se dialogar com uma reflexão tão inteligente e que
expõe, sobretudo, a política da economia e como ela condiciona o
próprio caminho da reconstrução democrática do país. O seu centro
é expor a contradição entre a vontade soberana saída das urnas
com a eleição de Lula, condicionada pela forte votação da extrema
direita neoliberal, e o legado institucional do regime de poder
neoliberal. Há, neste sentido, três hipóteses que deveria se
trabalhar.
A primeira hipótese seria a de claramente sobrepor a vontade
soberana resultante das eleições ao legado institucional do regime
de poder neoliberal. Isto é, iniciar já na instalação do governo um
processo de ruptura e transição para uma nova institucionalidade
macroeconômica, que permitisse uma forte retomada do
crescimento econômico, com uma retomada e aprofundamento
estrutural das políticas sociais de inclusão e distribuição de renda.
Chama-se esta hipótese de transição para a superação da
financeirização. Esta hipótese estaria, no entanto, impedida
institucionalmente pela “autonomia” do Banco Central (dirigido por
um bolsonarista orgânico) e por um Congresso Nacional
conservador, que provavelmente resistiria a uma revisão da EC-95,
que precisaria de uma maioria de 2/3 para ser revogada. Frente a
uma tentativa de golpe militar, que exigiu a formação de uma frente
ampla em defesa do mandato do recém eleito, uma tal hipótese de
transbordamento da legalidade neoliberal instituída não teria
legitimidade democrática para se processar.
Uma segunda hipótese, que foi praticada pelo governo Lula após
2006 e pelo primeiro mandato de Dilma, seria arbitrar através de
uma estratégia decidida pelo Ministério da Fazenda, bancos
públicos, estatais um contraponto à institucionalidade neoliberal,
para criar dinâmicas autonomizadas em relação à financeirização.
Como a opção dos governos Lula e Dilma foi a de sempre manter
uma direção neoliberal no Banco Central, em um claro compromisso
de governança com o capital financeiro, este contraponto significou
sempre uma permanente instabilidade, exposta às conjunturas
econômicas internacionais, e incapaz de estabilizar um ciclo
sustentado de crescimento com reindustrialização, consolidação de
um mercado de trabalho formalizado, distribuição de renda e uma
qualitativa reconstrução, em um novo patamar, das políticas sociais.
Chama-se a esta hipótese de arbitral, isto é, ela pragmaticamente
arbitraria políticas desenvolvimentistas, de sentido trabalhista e de
inclusão social em disputa permanente com a lógica da
financeirização, que permaneceria.
Uma terceira hipótese, que está sendo praticada pelo terceiro
governo Lula, é a de uma subordinação negociada. Ela se
diferenciaria da segunda hipótese, no sentido de que o contraponto
do Ministério da Fazenda, dos bancos públicos, das estatais se daria
de modo constrangido por um poder sistêmico da financeirização
mais desenvolvido institucionalmente do que nos governos Lula e
Dilma anteriores. Pode haver diferentes graus de subordinação e
negociação. Em uma análise objetiva, o Novo Arcabouço Fiscal
apresenta um grau importante de subordinação, ainda mais
aprofundado a partir da meta de um déficit zero no superávit
primário em seu primeiro ano.Ele já se instala e projeta-se em meio
6.IBGE.
7.IBGE.
a uma tal dinâmica de financeirização, sem um contraponto
decisivo, que impede um curso de reconstrução.
Os meses finais do primeiro semestre de 2024 viram dramatizar
o impasse da subordinação negociada ao sistema de poder
neoliberal. Em uma clara campanha midiática liderada pelo
presidente bolsonarista do Banco Central, ao mesmo tempo que o
presidente do Senado barrava projetos para aumentar a
arrecadação do governo diante de escandalosos privilégios fiscais,
houve uma paralisação do processo de redução dos juros básicos da
economia, e uma pressão, apoiada por neoliberais inseridos no
Ministério da Fazenda, pela desarticulação dos pisos constitucionais
de investimento em saúde e educação, uma nova investida sobre
direitos dos trabalhadores, uma proposta de desvincular as
aposentadorias do INSS dos reajustes do salário-mínimo. Enfim,
trata-se de passar de uma subordinação negociada para um
processo de aberta autodestruição do governo Lula frente às suas
bases sociais.
Três fatos altamente positivos até agora se contrapuseram a este
movimento da extrema direita neoliberal. O primeiro foi a maior
greve nacional de técnicos-administrativos e professores das
universidades e institutos federais do país da última década,
reivindicando reajustes salariais após anos de arrocho,
recomposição dos orçamentos das universidades e mudanças
fundamentais na carreira dos técnico-administrativos. A greve,
apesar de não obter plenamente a sua pauta, foi capaz de mover o
governo Lula para a mesa de negociação e fazer concessões que al
INICIAR A SUPERAÇÃO DO SISTEMA DE
PODER NEOLIBERAL
alteram a posição inicial de incorporar em seus quatro anos o
arrocho do funcionalismo herdado dos governos Temer e Bolsonaro,
além de iniciar uma recomposição orçamentária do investimento nas
universidades.
O segundo foi o movimento geral do governo Lula frente à
tragédia anunciada do Rio Grande do Sul. Legitimado pela resposta à
situação de calamidade, o governo federal aprovou um plano, com o
apoio do Ministro da Fazenda, de investimento de dezenas de
bilhões de reais não contingenciados pelo Novo Arcabouço fiscal.
O terceiro foi a movimentação da Frente pela Vida, que reúne
unitariamente entidades do movimento sanitarista, o Conselho
Nacional de Saúde e entidades democráticas de todo o país, em
defesa aberta dos pisos constitucionais de investimento em saúde e
educação. Após terem sido recebidos pelo Ministério da Fazenda,
houve uma declaração pública do próprio Lula de que não haveria
nenhuma redução em relação aos pisos constitucionais definidos.
A estes três movimentos positivos, soma-se a vitória nas ruas e
nas redes obtida pelo movimento feminista e pelas mulheres
brasileiras, obrigando ao recuo do chamado PL do estupro, apoiado
por Lyra, pelos evangélicos bolsonaristas e vergonhosamente pela
direção da CNBB, agora dominada pelos setores conservadores, em
uma posição das mais obscurantistas da entidade nas últimas
décadas. A grande lição deste episódio, em torno a uma agenda sob
forte pressão conservadora, é que há um potencial feminista e
também social de mobilização por agendas de transformação que
precisariam ser mais ativadas, até como modo de alterar a correlação
de forças conservadora quem emana da institucionalidade
neoliberal.
Não deixa de ser interessante, que duas pesquisas divulgadas
nos últimos dias, do DataFolha e da CNT, registraram melhoras na
margem mas importantes da popularidade do governo Lula. Elas
certamente revelam estes momentos positivos antes indicados.
Esta micro conjuntura de retomada de posições de princípio, de
valores fundamentais, de justa indignação e mobilização contra a
ofensiva da extremadireita neoliberal, pode e deve ganhar corpo
neste período imediato em cinco grandes iniciativas.
A primeira grande iniciativa é sair da posição pública
governamental de se conformar, justificar e, alguns momentos, até
fazer apologia da subordinação negociada ao sistema de poder
neoliberal, traduzido no Novo Arcabouço Fiscal. A extrema e aberta
politização da estratégia neoliberal, capitaneada pelo Banco Central
e apoiada por Lyra, pode e deve ser denunciada publicamente com
a defesa dos valores republicanos e os direitos fundamentais do
povo brasileiro e das classes trabalhadoras. É preciso falar em
uníssono governo, partidos de esquerda e centro-esquerda e
movimentos sociais contra este verdadeiro golpe no programa eleito
democraticamente em 2022. Foi muito importante, neste contexto,
o posicionamento da direção Executiva Nacional do PT em forte
denúncia do Banco Central, seguindo o posicionamento de Lula e de
outras lideranças parlamentares. Quem define a agenda já tem
metade da luta política ganha. Que os bolsonaristas paguem caro
nas urnas neste ano por serem contra os direitos fundamentais do
povo brasileiro!
A segunda grande iniciativa é liberar o BNDES, os bancos
públicos, a Petrobrás e todos os instrumentos que o governo federal
dispõe para agir imediatamente contra a política de
financenceirização e recessionista organizada pelo Banco Central. Na
posição de subordinação negociada, estes instrumentos poderosos
de alavancagem do investimento e do crédito estão amarrados e em
grande medida neutralizados. Não há nenhuma razão para não
romper com este vergonhoso conformismo.
O terceiro movimento político é o de iniciar já a construção de
uma alternativa que permita a saída da saúde, educação e
previdência da canga do arcabouço fiscal neoliberal, como já foi
proposto pela esquerda petista em seu posicionamento público em - A redução do déficit público deve priorizar o corte dos gastos
financeiros e aqueles subsídios e isenções fiscais escandalosos. Uma
campanha como esta tem todo o potencial de ganhar o apoio
entusiasmado da maioria do povo brasileiro, ainda mais se
visualizado com programas de investimento fundamentais nestas
áreas que passam, em particular a saúde, por situações emergenciais
de carecimento.
O quarto grande campo de iniciativas é o de criar oportunidades
por meio da economia solidária, empreendimentos solidários,
economia popular e ação direta do Estado para que as pessoas
tenham acesso a trabalho e renda, especialmente entre os mais
desfavorecidos. O Estado atuaria por meio da criação de um
programa de geração de “Ocupações Sociais” para incluir pessoas
que estejam desempregadas ou empregadas de forma precária. Ele
seria o embrião de uma proposta mais ampla e estruturante de
criação de ocupações que sejam relevantes para sociedade, a partir
de três pressupostos essenciais: atender as necessidades
socioambientais, ampliar a oferta de bens públicos e garantir maior
soberania nacional (política de cuidados, ciência, tecnologia, domi
biodiversidade, entre outras). Isto será fundamental para iniciar um
verdadeiro movimento de reconstrução do mercado de trabalho dos
brasileiros, hoje tão desestruturado pelas políticas neoliberais. Além
disso, o consumo é um componente fundamental de nossa matriz
econômica. Em geral, os trabalhadores gastam tudo o que ganham.
32,6% das pessoas ocupadas recebem até 1 salário mínimo. Uma
política vigorosa de recuperação do valor do salário mínimo deve
ser considerada uma prioridade para o governo. Assim como no
passado recente, ela pode ser decisiva para a retomada do
crescimento econômico, da capacidade de consumo e da redução
do endividamento das famílias. Essa política é perfeitamente
compatível com nossos objetivos econômicos e sociais com efeitos
distributivos reais entre as pessoas mais pobres.
Enfim, o quinto grande campo de iniciativas é o de retomar os
fundamentos e iniciativas de participação popular no governo Lula.
Frente a uma conjuntura que aponta cada vez mais para iniciativas
de desestabilização do governo Lula por parte do mal chamado
“Centrão”, a governabilidade vai depender cada vez mais do apoio
direto de mobilização e de participação social como modo de ir
legitimando suas agendas.
Este cinco campo de iniciativas poderia certamente permitir às
esquerdas e centro-esquerdas brasileiras retomaram o diálogo com
a esperança majoritária dos brasileiros, preparando já um novo
momento macroeconômico e de governança do Banco Central após
a substituição de seu atual dirigente bolsonarista.
REVISTA DEMOCRACIA SOCIALISTA | NÚMERO 13 | JUNHO 2024
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